vivien leigh | anna karenina | 1935
 
 
 
 
 
 

 

Confesso que, vendo muitos filmes como vejo, estou atravessando uma fase difícil, em que presencio uma atualidade sufocada pelo convencionalismo até os ossos e, quando procuro filmes do passado, topo com produções que não me permitem ilusões quanto a essa coisa muito idealizada chamada Nostalgia. Hoje em dia, em qualquer banca de revistas um pouco maior, é possível deparar-se com uma enxurrada de DVDs, filmes mais ou menos recentes já esquecidos (a maior parte não merecia senão esquecimento, realmente) e filmes de fato importantes em seu tempo, afora produções que de modo algum precisavam ser ressuscitadas, tão datadas e ruins ficaram (mas há sempre algum saudosista incauto para comprá-las).

A mediania chata domina. As escolhas se ampliaram, pode-se vasculhar o passado histórico do Cinema (especialmente do norte-americano, pois a maior parte dos DVDs clássicos vem da América) e a possibilidade de ser surpreendido agradavelmente por um bom filme existe, e sempre existirá. Mas o fato é que os muitos anos de crítica e de paixão pelo Cinema acabam por nos convencer de que a indústria pesada engolfa a arte no presente e não adianta tentar refugiar-se no passado, porque os chamados "filmes de antigamente", sempre banhados por uma aura de promessa e charme quando pegamos os DVDs, também podem ser uma frustração. A indústria sempre dominou. A mediocridade sempre deu o tom. Muita gente que perdeu o entusiasmo pelo cinema e não se reconciliou nunca mais deve ter seus motivos calcados na percepção dessa realidade.

Se assim é com os DVDs, mais desanimador é olhar para os cartazes dos cinemas normais, com as coisas que andam sendo oferecidas. Olho para a fachada de um grande cinema local e leio Os mercenários, Nosso lar, O último mestre do ar e outras coisas que sei que jamais me atrairão. O primeiro reúne Stallone e outros brucutus que nunca apreciei, e tenta reviver nostalgicamente a pancadaria insana dos anos 80, que já então era um absurdo e uma bobagem sem limites.  "Nosso lar" deve ser um banho de pieguice espírita e não me arrisco de modo algum, como nem mesmo cogitei de ir ver a vida de Chico Xavier. O Além sentimentalizado e extremamente conformista dos delírios espíritas, meloso e inconvincente de doer, não me interessa. O último mestre do ar está conseguindo ser um fracasso de crítica maior que O fim dos tempos, o penúltimo filme do mesmo Shayamalan.

Estou com 58 anos e só mesmo quando atacado de auto-complacência extrema, me permito curtir fantasias adolescentes. Filmes cheios de "magia" e efeitos digitais, com ação frenética, me deixam menos empolgado que sonolento. A explicação: tédio. Enredos bizarros, personagens bonzinhos de um lado e malvados de outro, lutas intermináveis, cenários pasmosos, dragões, resgates espetaculares, etc., parecem bailar no vazio. É preciso perder todo e qualquer senso crítico para achar isso realmente mágico e envolvente. Magia calculada demais deixa de ser magia. E como os atores andam ruins! Se os filmes são adolescentes, então, pega-se gente que talvez um dia aprenda a representar, mas, por enquanto, pura lástima...

Não entro num cinema desde o Carnaval passado quando numa noite, evitando a barulheira insana das ruas, fui ver O lobisomem, com Benicio Del Toro e Anthony Hopkins, e encontrei um filme de terror manjado, com efeitos digitais de impressionar, mas baseado num roteiro caduco dos anos 40, uma história matriz de um sem-fim de reaproveitamentos, já que os filmes de lobisomem parecem até mais limitados que os de vampiros (mesmo o momento apoteótico da transformação do ator em lobo vem dos truques executados pelo mesmo maquilador de Um lobisomem americano em Londres). Nunca vi Del Toro atuando tão mal e Hopkins tão burocrático. É um filme que acusa uma realidade inapelável: não há roteiros novos para o gênero e os produtores, desesperados, vão reciclar velhos filmes que já eram, por sua vez, duvidosos e meio ridículos em seu tempo. Parece que hoje em dia pega-se qualquer coisa para pôr um filme em pé — e este anda, mas como um espantalho cambaleante, um boneco desengonçado, embora frenético, ornamentado por todas as lantejoulas tecnológicas e destinado a ser esquecido no momento mesmo em que se pisa fora do cinema. O frenesi dura pouquíssimo. Indústria, indústria, indústria.

 

 

FAZENDO DESCOBERTAS NADA INGÊNUAS NO BAÚ

 

Converso com regularidade com um amigo que, quando se trata de filmes de passado, ao começar a descobrir tudo que andava saindo em DVD, ficou, tal como eu, empolgado. "Vamos ver agora cinema de verdade", dissemos meio que em uníssono, acreditando piamente que nada foi melhor do que o cinema dos anos 30, 40 e 50 em Hollywood, com uma pequena concessão para os anos 60 e 70. Bem, tivemos sustos e mais sustos com produções horríveis ou dignas de esquecimento que nossas memórias indulgentes envolviam naquela aura de coisa maravilhosa e intocável, quase mística (também, eram apenas a mais vaga lembrança), e fomos vendo que certas estrelas e astros não sabiam representar e certos diretores eram uma empulhação e certos roteiros eram risíveis. Claro que certas coisas eram mesmo muito boas, e tanto melhor, mas já eram exceções também, pois a Nostalgia engana muito: o "filme antigo" parece vir sempre carimbado por um prestígio automático e não é assim. Basta vê-lo com os olhos de presente, que já não são mais ingênuos (mudamos muito, ora, e como não mudar?), e tudo fica relativo ou meio patético.

Todo saudosista de cinema é assim, de certo modo — quer que a qualidade de certas lembranças se perpetue menos pela qualidade indiscutível dos filmes que lhes deram origem do que por alguma razão pessoal, de fortes raízes emotivas. Saudosismo e complacência andam de mãos dadas: pelo fato de nos trazerem belas lembranças ou nos despertarem suspiros por um mundo que nunca foi daquele jeito e nem poderia ser, perdoamos filmes maus ou medíocres, ainda mais quando revivem o rosto de uma atriz amada ou uma trilha-sonora particularmente venerada. Mas, basta um pouco de lucidez e a embriaguez se desfaz. A operação de cálculo comercial, com sua chantagem emocional, seu melodrama caça-níquel, logo transparece. Ninguém que se puser a rever Amores clandestinos, por exemplo, poderá deixar de ver, depois de anos e anos de cinema, que Sandra Dee era bonitinha e má atriz, Troy Donahue era um ator ridículo, e que aquilo era um dramalhão comercial de Delmer Daves embalado pela música — extremamente popular naquele fim de anos 50 no Brasil — do compositor Max Steiner, autor de tantas trilhas famosas para Hollywood. Pior ainda, no filme, era o casal dos pais dos jovens lindinhos, Richard Egan e Dorothy McGuire. As bancas andam cheias de DVDs desse tipo, afora musicais esquecidos e outros itens embolorados.

Thomas Mann dizia, em Morte em Veneza, que "o anseio é produto de um conhecimento falho". Verdade: basta que se as conheça precisamente, e as coisas perdem facilmente seu ar fantástico e encantador. No caso da Nostalgia no cinema, o anseio é derivado de visões parciais, fragmentadas, de deslumbramentos não claramente compreendidos quando aconteceram, e os filmes são mesmo assim — as emoções que produzem não podem ser dissociadas de estados de espírito datados, coisas que sentimos em certas épocas e que são irrecuperáveis. A ingenuidade morre, e de modo irreversível.

Com os olhos abertos e a carga infalível da experiência, fazemos a viagem retrospectiva ao adquirir o DVD este ou aquele, e não é mais aquilo de modo algum. Outro dia, encontrei numa banca um senhor de seus 60 e tantos anos que me jurava que havia determinada cena num faroeste de James Stewart, dos dirigidos por Anthony Mann, que ele venerava e que ele o comprara por isso. Daí viu que o filme não tinha tal cena, e ficou irritado, mas era possível que houvesse se confundido, que o filme fosse outro, e títulos na cabeça de espectadores comuns, bem como atores  (nem se fale de diretores) se perdem e confundem. Tais confusões são comuns, e ainda mais porque a Nostalgia é um apelo especialmente para pessoas que já começam a fenecer e ver os dados da memória se embaralharem. No caso dele, não queria, teimoso, renunciar ao seu ponto de vista. O filme tinha que ter aquela cena, ponto final, e ela devia ter sido cortada na edição do DVD — não era ele que estava errado de modo algum. Também reclamou que o filme não era tão bom como lembrava, mas, quando lhe perguntei quando o tinha visto, disse que lá com uns vagos 15 anos. "O senhor mudou muito desde então, não é mesmo?", disse, brincando. Pareceu perplexo. Não havia pensado nisso — que entre sua visão de adolescente e sua visão atual, de sexagenário, haveria no mínimo um abismo a levar em conta. Nada permanece intacto, nós mudamos, mas como é difícil para certas pessoas admitir essa coisa tão óbvia, no terreno das emoções! Imaginamos sempre que certos tesouros têm o dom da eternidade, não os percebemos condicionados ao tempo como são. Deliramos, mas ai de quem duvidar da validade do nosso delírio...

 

 

marlene dietrich | o expresso de xangai | 1932

 

 

Fiz duas dessas viagens, recentemente, a dois mitos de cinema que aprendi a amar muito depois dos tempos em que já eram artigos fanados: Marlene Dietrich e Vivien Leigh. Nasci em 1952 e comecei a ver filmes ainda garoto, no início dos anos 60, e, na época, Marlene Dietrich e Vivien Leigh eram nomes célebres de gerações bem passadas. Faziam ainda cinema, mas como autênticas grandes damas envelhecidas e respeitáveis em produções esparsas, e de Leigh ainda vi, sem entender nada, o filme em que ela era uma senhora madura e decadente convivendo com Warren Beatty bem jovem em Em Roma, na primavera. Quando vi Marlene pela primeira vez, foi em alguma reprise do Testemunha de acusação, filme em que já estava madura, não era mais a estrela ímpar dos anos 30 (mas, dirigida por Billy Wilder, tinha uma boa interpretação).

Dei azar: peguei para ver Marrocos, o mítico Marrocos de 1930 com que Marlene pisou em Hollywood, dirigida por Joseph Von Sternberg, que já a tinha lançado no sucesso internacional de O anjo azul. Se não houvesse ficado tão irritado com a tremenda afetação e o ritmo morto da produção, talvez houvesse dado grandes risadas, tal o ridículo da história e das interpretações. O filme é de um tempo em que o cinema falado era ainda uma novidade e os diálogos têm entre si intervalos em que os atores ficam olhando uns para os outros por tempo longo demais, não há ritmo ágil e as réplicas não surgem com a enxutez com que nos acostumamos, são preenchidos com um langor abestalhado, porque vazio de significado. Bons atores talvez houvessem superado isso, mas Marlene não se preocupava em ser uma atriz, era uma estrela, uma escrava de "atitudes" e figurinos, e Von Sternberg abusou dessa sua condição de manequim lânguido e insolente por muito tempo.

Ela faz uma cantora, Amy Jolly, que chega a Marrocos com um passado obscuro, sobre o qual se pode especular, e se apaixona por um soldado da Legião Estrangeira que a aplaude num show de um cabaré decadente. Tudo é mero pretexto para Von Sternberg exercitar sua paixão pela fotografia (de Lee Garmes) e é de uma frivolidade estúpida, com Gary Cooper jovem, bonito e boçal parecendo mais objeto sexual do que Marlene, visto que é adorado por todas as mulheres que circulam pelo filme. Marlene, o que faz? Andrógina, vestida de paletó e gravata, dá um beijo numa mulher do público, tira uma rosa que estava com esta e a joga para o legionário Cooper. Por isso, o filme é considerado o máximo em ousadia, e acho que ninguém nem prestou atenção ao resto. Que, por exemplo, a paixão que ela tem pelo legionário é um primor de masoquismo e submissão, e no final ela até tira seus sapatos de salto para segui-lo, junto com mulheres árabes que seguem seus bravos guerreiros machões, pelo deserto. Se ele vai prestar atenção ou não a ela, parece pouco importar: é o supremo sedutor cafajeste, o homem, o dono da jogada, e a ela cabe se submeter com total cegueira e idolatria, é "apenas uma mulher", ora. Tudo isso é assistido por um pintor milionário (Adolphe Menjou) que não tem aparentemente o que fazer e passeia pelo mundo e está em Marrocos não se sabe por que, e se apaixonou tanto por ela (ou teria sido por Cooper?) que incentiva todas essas atitudes, com a generosidade absurda do corno mais manso e inverossímil que já existiu na tela. O filme é lixo glamouroso, como a maior parte do que Marlene fez com Von Sternberg, e, a meu ver, há uma condescendência grande demais com esse tipo de produto até hoje. Marlene, com aquela beleza, claro que era objeto de culto, mas parecia encarar sua carreira de atriz como um apêndice de sua condição de estrela e nada mais.

Vivien Leigh, que era essa coisa rara — uma estrela lindíssima e uma atriz de alto talento — é outra história. Há algo de verdadeiramente trágico na vida dessa mulher, cuja beleza nos arrepia mesmo quando os filmes são melodramas absurdamente rançosos como A ponte de Waterloo, em que faz uma bailarina que, por passar fome na guerra, acreditando que o seu  homem (Robert Taylor) morreu em combate (segundo o que lê num jornal que dá as baixas militares), vira prostituta, e um dia, quando ele volta, acha-se tão indigna dele que se joga sob caminhões bélicos. Era um desperdício colocá-la em filmes assim, mas Vivien era mesmo de um talento miraculoso e sobrevivia até a esse lixo sentimental todo. Teve uma carreira cinematográfica confusa devido à sua obsessão pelo teatro e por Laurence Olivier e fez filmes duvidosos em que só ela acabava valendo. É o caso de sua Ana Karenina, dirigido por Julien Duvivier em 1948, que só vi agora, depois de conhecer a mitológica feita por Greta Garbo em 1935 e uma mais recente (1997) feita pela atriz Sophie Marceau. A heroína de Tolstoi é perfeita para Vivien, mas o filme é muito morto e adapta o escritor de modo convencional, reverente e apagado. A versão existente no mercado, ao menos a que me chegou às mãos, está péssima em som e imagem, uma mutilação da fotografia de Henri Alekan. É, aliás, outro dos riscos desse mercado de DVDs clássicos que se instalou nas bancas: desconfiar da qualidade é preciso, porque todos vêm lacrados e não raro guardam defeitos revoltantes.

 

 

RECICLAGENS, ARTIFICIALISMOS E RAPINA INDISFARÇÁVEL

 

Acredito que, com os VHS e DVDs, tendo acesso a todo o passado cinematográfico, fomos aprendendo todos, cinéfilos ou críticos, a amar um cinema que não foi em absoluto o da nossa geração, nosso tempo, que nos chegou embalado no prestígio de eras recobertas por boa quantidade de "nobreza de antiquário" ou bolor. Os brilharecos do passado nos ofuscaram. Aumentaram a nossa cultura cinematográfica, mas também nos tornaram mais indulgentes e acomodados e às vezes até mesmo cegos. Os anos 60 foram violentamente desmistificadores, e os 70 fizeram também de suas misérias com os mitos românticos e os heroísmos e as hipocrisias do passado hollywoodiano, mas, quase como numa reação compensadora, meio que ressentida e vingativa, os 80 foram muito reverentes na reciclagem das velhas formas de fazer cinema, e aí a Nostalgia se instalou comodamente — foram revividos os policiais "noir" (Corpos ardentes, Chinatown), as aventuras de seriado (Indiana Jones) e toda a limitação dos filmes de gênero com o artificialismo das poses e estereótipos clássicos — o  que pareceu atingir o ápice com o "néon-realismo" de Francis Ford Coppola em Do fundo do coração. De repente, referindo-se ao Cinema, exibindo-se repletos de citações e preciosismos saudosistas, os filmes ficavam como que eximidos de crítica, e o que houve foi, sob muitos aspectos, um passo para trás. Os 90, mais violentos, paródicos e cínicos, foram apenas reforçando defeitos de uma indústria cada vez mais predadora e cada vez menos preocupada com disfarçar sua cupidez e falta de qualidade, e aí já nem mais importava a reciclagem dos mitos e velhas formas. Desde então, os buracos terríveis da indústria só fizeram aumentar e o vale-tudo, contanto que dando lucro, começou a ficar insano.

Pauline Kael, a maior crítica de cinema que os EUA já tiveram, deixou de fazer crítica nos anos 80, não aguentava mais. Não sei o que pensaria, se viva estivesse, e ainda ativa. Como teria reagido a coisas como Adam Sandler, Mike Myers, Steven Seagal, Vin Diesel, etc., etc., etc.? O que é que estaria achando bom, hoje em dia?

Em todo caso, é dela o livro que recomendo para os que quiserem entender os mecanismos da indústria e como o cinema, mesmo o melhor cinema nostálgico, foi parar no cemitério da televisão ou se degenerou na mão de produtores cujo máximo interesse é o lucro óbvio e que fazem tudo para que o público fique à sua mercê. Com todo o aparato publicitário que está à sua disposição, esmagador, a verdade é que vencem a batalha, porque a publicidade é a grande sedutora de nossa época e quem acha que o público em geral  está disposto a ser crítico se engana redondamente. Uma coisa empurrada à força, formulaica, pobre, estúpida, como a maioria dos filmes no momento é, pode ser um grande sucesso ou será um sucesso médio, mas ignorada não será. A estupidez dita as regras, o comércio descarado encontra receptividade no público e vai prosseguindo,  que ninguém se iluda. Kael viu isso no fundamental Criando Kane, que saiu no Brasil pela Record. Todos nós precisamos ler e reler este livro.

 

 

 

setembro, 2010