Os uxoricidas e a sociedade brasileira

 

...et je deteste l'orgueil qui veut qu'on s'honore et qu'on honore autrui,

 comme si quelqu'un dans Ia postérité d'Adam pouvait être trouvé digne d'honneur!

Anatole France, M. Jérôme Coignard

 

Entre os livros que me legou, ao morrer, o meu saudoso amigo Gastão Soares, a quem chamávamos "Chambá", quando era ele servente da Escola Politécnica, veio um muito curioso. É edição da antiga casa Laemmert; e pelo tipo, papel e outros pequenos indícios, deve ela ser de 1840 a 1850. Tem por título Crimes espantosos e, tendo eu um único volume, o primeiro, não sei de quantos se compunha a obra.

 

Como diz o seu título, o volume é formado com a narração de vários e estranhos crimes ocorridos todos em França, pois é o trabalho — o que me esquecia de dizer — uma tradução da língua desse país para o português.

 

Em começo, eu quis desfazer-me do livro. Estava incompleta a obra; era evidentemente uma cousa de fancaria e não valia a pena figurar e ocupar lugar na minha modesta biblioteca. Pus-me, porém, a ler a tradução do senhor desembargador Henrique Veloso d'Oliveira, pois assim se chamava o tradutor, e não mais quis atirar fora a semi-secular publicação da defunta livraria Laemmert.

 

Narrava ela muitos crimes, alguns curiosos, inesperados e inexplicáveis, e outros de uma estupidez, de uma tal ferocidade, que me enchiam de pasmo haver homens que os cometessem.

 

Na categoria última, estava o assassinato de um filho pelo seu próprio pai. Um tal Gilberto Augusto de Vandègre, nobre de quatro quarteirões de nobreza, vivia, apesar da sua autêntica fidalguia, a vida de um simples camponês, ele e a família, nos arredores de Riom, Puy-de-Dôme, Auvergne.

 

Casado com uma mulher de extração obscura, todos os seus filhos cresceram com os gostos, afeições, hábitos e usos de humildes camponeses. Um deles, o mais velho, André, aí pelos trinta anos, muito naturalmente, veio a apaixonar-se por uma rapariga aldeã, Maria Bourdu, então criada de servir em casa de Gilberto Joannet, fermier vizinho dos Vandègres. Tratou de casar-se; os pais, porém, puseram todos os obstáculos, já os que podiam com a sua autoridade doméstica, já os de natureza judiciária e extra judiciária. A mais encarniçada, contra a rapariga e o casamento, era a mãe; entretanto, como já lhes disse, a sua origem não era lá muito superior à de Maria Bourdu. Para encurtar razões: dias antes de realizar-se afinal o casamento, André foi morto a tiros pelo próprio pai.

 

Por que isso? Embora fidalgo e nobre, a vida que o filho levava era de simples camponês, de pequeno cultivador aldeão, os seus gostos deviam ser equivalentes à vida que tinha; e, muito naturalmente, havia de afeiçoar-se por uma rapariga de seu âmbito de existência, que não podia, senão como ele, por exceção, ser nobre de nascimento. O pai mesmo já tinha dado exemplo semelhante com o seu matrimônio; mas, por que, então, se opunha e se opôs até com tão hediondo crime ao casamento do André?

 

Foi por causa da honra, a Honra feudal da nobreza de antanho, que via como um crime aquela mésalliance. Naquela cabeça dura, limitada e estúpida, de nobre que se degradara em simples camponês, tinha sobrevivido a obsoleta e cruel concepção de Honra dos tempos antigos dos cavalheiros e barões.

 

Faltam-me elementos para afirmar que tudo o mais que caracterizou a antiga nobreza ele tivesse perdido; mas estou disposto a crer que sim.

 

Entretanto, o fato de seu filho nobre, unicamente pelo lado paterno, vir a casar-se com uma criada de servir, aparecia-lhe no lusco-fusco da sua fidalguia crepuscular como cousa horrenda, como uma ofensa aos seus foros de nobreza, a dissolverem-se em vulgar e plebeu camponês.

 

A honra, como todas as concepções que têm guiado as sociedades passadas, inspira atualmente muitos crimes ou os desculpa. Essas concepções não devem ser totalmente varridas da nossa mentalidade; há nelas muita cousa a aproveitar e as aquisições que nos trouxeram não são de desprezar; mas devem ser empregadas com precaução para nos serem úteis e nos servirem, de modo a não entrar em conflito com o nosso atual sentimento da vida. Elas devem perder alguma cousa, em face de nossas idéias contemporâneas sobre o mundo e o homem.

 

Pode alguém hoje desculpar ou perdoar o infame e hediondo crime que acabo de narrar, em nome da Honra? Não. Entretanto, a literatura e a crônica estão cheias deles, e embelezados, quando acontecidos nos tempos feudais.

 

Sabe-se bem a que torturas, cintos de casticidade, etc., etc., sofriam as mulheres dos tempos dos castelos e manoirs, quando os seus brutais maridos delas se afastavam em expedições e guerras longínquas. Tudo, em nome de quê? É de rir. Em nome da Honra. Pode-se admitir isso, atualmente?

 

Não há necessidade de responder...

 

Uma das sobrevivências nefastas dessa idéia medieval, aplicada nas relações sexuais entre o marido e a mulher, é a tácita autorização que a sociedade dá ao marido de assassinar a esposa, quando adúltera. No Brasil, então, é fatal a sua absolvição, no júri.

 

Eu mesmo já absolvi um destes matadores de sua própria mulher e contei isto, com o pseudônimo de "Doutor Bogóloff", na A Lanterna, em 28 de janeiro do ano passado.

 

Contei como o caso se deu, nas seguintes palavras que transcrevo, por me parecerem oportunas:

 

Dentre as muitas cousas engraçadas que me têm acontecido, uma delas é ter sido jurado em mais de uma sessão. Da venerável instituição, eu tenho notas que me animo a qualificá-las de judiciosas e, um dia, hei de publicá-las. Antes de tudo, declaro que não tenho sobre o júri a opinião dos jornalistas honestíssimos, nem tampouco a dos bacharéis pedantes. Sou de opinião que a instituição deve ser mantida, ou, por outra, voltar ao que foi. A lei, pela sua generalidade mesmo, não pode prever tais ou quais casos, os aspectos particulares de tais ou quais crimes; e só um tribunal como o júri, sem peias de praxistas, de autoridades jurídicas, de arestos, de comentadores trapalhões, etc., pode julgar com o critério muito racional e concreto da vida que nós vivemos todos os dias, desprezando o rigor abstrato da lei e os preconceitos dos juristas.

              A massa dos jurados é de uma mediocridade intelectual pasmosa, mas isto não depõe contra o júri, pois nós sabemos de que força mental são a maioria dos nossos juízes togados.

              A burrice nacional, sobretudo no seu quinhão parlamentar, julga que deviam ser os "formados" a compor unicamente o júri. Há nisto somente burrice, e às toneladas! Nas muitas vezes em que servi no tribunal popular, tive como companheiros de conselho 'doutores' de todos os matizes. Com raras exceções, todos eles eram excepcionalmente idiotas e os mais perfeitos eram os formados em direito.

               Quase todos eles estavam no mesmo nível mental que o senhor Ramalho, oficial da Secretaria da Viação; que o senhor Sá, escriturário da Intendência; que o senhor Guedes, contramestre do Arsenal de Guerra, etc., etc.

                Podem objetar que esses doutores todos exerciam cargos burocráticos. É um engano. Havia-os que ganhavam seu pão dentro das habilidades fornecidas pelo 'canudo', e eram bem tapados. Não há país algum em que, tirando-se à sorte os nomes de doze ou sete homens, dez ou cinco sejam inteligentes; e o Brasil, que tem os seus expoentes intelectuais no Aluísio de Castro, no Hélio Lobo e no Miguel Calmon, não pode fazer exceção da regra.

             O júri, porém, não é negócio de inteligência. O que exige de inteligência é muito pouco, está ao alcance de qualquer. O que se exige lá é independência, coragem moral, força de sentimento da vida e firmeza de caráter; e tudo isto não há "lata doutoral" que dê. Essas considerações vêm-me ao bico da pena, ao ler que o júri, mais uma vez, absolveu um marido que matou a mulher, sob o pretexto de ser esta adúltera.

             Eu julguei um crime destes e foi das primeiras vezes em que fui sorteado e aceito. O promotor era o senhor Cesário Alvim, que já é juiz de direito. O senhor Cesário Alvim fez uma acusação das mais veementes e perfeitas a que eu assisti no meu curso de jurado. O senhor Evaristo de Morais defendeu, empregando o seu processo predileto de ler autores cujos livros ele leva para o tribunal, e referir-se a documentos particulares que, da tribuna, mostra aos jurados. A mediocridade de instrução e inteligência dos juízes de fato e a sua falta de senso crítico fazem que fiquem eles impressionados com as "coisas de livro"; e o doutor Evaristo sabe bem disto e nunca deixa de recorrer ao seu processo predileto de defesa.

           Mas... Eu julguei um uxoricida. Entrei no júri com reiterados pedidos de sua própria mãe que me foi procurar por toda a parte. A minha firme opinião era condenar o tal matador conjugal. Entretanto, a mãe... Durante a acusação fiquei determinado a mandá-lo para o xilindró... Entretanto, a mãe... A defesa do senhor Evaristo de Morais não me abalou... Entretanto, a mãe... Indo para a sala secreta tomar café, o desprezo que um certo Rodrigues, campeão de réu, demonstrava por mim, irritando-me, mais alicerçou a minha convicção de que devia condenar aquele estúpido marido... Entretanto, a mãe...Acabando os debates, Rodrigues queria responder os quesitos, sem proceder à votação prévia: 'Vamos acabar com isto, dizia ele: são quase seis horas e a mulher está à minha espera, para jantarmos'. Protestei e disse que não assinaria as respostas, se assim procedessem. Rodrigues ficou atônito; os outros confabularam, em voz baixa, com ele. Um veio ter a mim, indagar se eu era casado. Disse-lhe que não e ele concluiu: 'É por isso; o senhor não sabe o que são essas coisas'. Tomem nota desta... Afinal, cedi. A mãe... Absolvi o imbecil marido que lavou a sua "Honra", matando idiotamente uma pobre mulher que tinha todo o direito de não amá-lo mais, se o amou, porventura, algum dia, e amar um outro qualquer ... Eu me arrependo profundamente.

 

Arrependi-me e me arrependo hoje ainda; e, desde então, logo que se me oferece ocasião, tenho verberado semelhante prática, por isso que as constantes absolvições de uxoricidas dão a entender que a sociedade nacional, por um dos seus mais legítimos órgãos, a admite como normal e necessária.

 

Não diria a verdade se não dissesse que assim é. De alto a baixo, todos nós outorgamos esse direito de matar a mulher que prevarica,  direito cruel e estúpido, ao marido infeliz.

 

Vão já muitos anos que eu, de calaçaria com Ari Foom, já falecido, fomos ao necrotério visitar o cadáver de uma rapariga do conhecimento daquele meu infeliz camarada, cujo maquereau, "por motivos de encontro de contas", conforme se suspeitou, a tinha assassinado e se suicidado em seguida, no interior de uma casa da rua de Santana.

 

O necrotério era no Largo da Batalha, e, ao redor, havia um poviléu de lavadeiras, cozinheiras, de desgraçadas raparigas na mais ínfima degradação social, etc., etc. Pois bem: dos grupos de raparigas dessa natureza, só se ouvia a condenação da rôdeuse assassinada que elas julgavam  casada com o seu assassino, e isto em termos bem duros e crus, mas que eu posso pôr aqui em mais corteses: "Bem-feito! Por que ela foi enganar o marido?"

 

Este fato muito me surpreendeu, a ponto de tomar dele notas mais desenvolvidas que ainda tenho nos meus papéis.

 

Levado por esse espírito de crueldade, de inumanidade em que entram erros de uma antiga e tola concepção da nossa natureza, no júri da semana passada, quando foi julgado um uxoricida, o trabalho do promotor, o meu amigo doutor Martins Costa, consistiu na sua acusação ao réu, em tentar provar que a assassinada não era adúltera. Admiro que o doutor Martins Costa, uma inteligência lúcida, moderna, que já de há muito rompeu com esses preconceitos, da nossa farisaica sociedade, fizesse tal coisa. Não podia ele, em sã consciência, desculpar o assassinato da mulher, por ser ela adúltera. Não há lei que tal autorize e nós, hoje, os avançados, não podemos compreender que tal cousa seja consagrada com absolvições iníquas, que desculpem o assassino e animem outros.

 

Estamos a toda a hora mudando; não só nós, como a própria natureza. As variações do nosso eu, de segundo para segundo, são insignificantes; mas em horas, já são palpáveis; em meses, já são ponderáveis; e, em anos, são consideráveis. Não é só o nosso corpo que muda; mas também é o nosso espírito e o nosso pensamento. Que se dirá, então, no tocante às nossas inclinações sentimentais, e, sobretudo, nesta parte tão melindrosa de amor, no que se refere à mulher?

 

Então, quando tudo muda, tudo varia, ela não pode nem deve variar, mudar, transformar-se, uma vez que parece ser a essência da natureza inteira, de que nós também fazemos parte, a mudança?

 

Por economia de esforço sentimental, por hábito, pelas aquisições que a marcha da sociedade tem trazido à nossa "psique", somos levados insensivelmente à monogamia e a viver durante a vida toda com uma única mulher; mas não é geral e não o pode ser, por não ser o espontâneo da nossa organização, quer a fisiológica, quer a psicológica. Esta então é que reage poderosamente sobre a mulher para levá-la ao adultério.

 

Em geral, na nossa sociedade burguesa, todo o casamento é uma decepção. É, sobretudo, uma decepção para a mulher. A sua educação estreitamente familiar e viciada pelas bobagens da instrução das Dorotéias (jesuítas de saia) e outras religiosas; a estreiteza e monotonia de suas relações, numa única classe de pessoas, às vezes mesmo de uma só profissão, não dão às moças, que, comumente, se casam em verdes anos, critério seguro para julgar os seus noivos, senão os exteriores da fortuna, títulos, riqueza e um nome mais assim.

 

Mas, quando eles se despem, um diante do outro, quando eles consumam o ato do casamento, a mulher ganha logo um outro sentido, muda não só de corpo, ancas, seios, olhar, etc., mas de inteligência e pode julgar então, com muita penetração, o que é e vale o seu senhor para toda a vida. O menor defeito dele, devido ao sentimento da perpetuidade de sua submissão àquele homem, amplia-se muito; e ela se aborrece, sente a longa vida que ainda tem de viver, sem uma significação qualquer, sem sentido algum, sem alegria, sem prazer. O homem, quando chega a esse sem i-aniquilamento da Esperança, tem o álcool, a orgia, o deboche, para se atordoar; a mulher só tem o amor. Vai experimentar e, às vezes, é feliz.

 

Nós todos conhecemos desses casais irregulares que têm vivido longas vidas felizes; às vezes, porém, não é e é assassinada broncamente, sem o perdão dos parentes, e das amigas, das conhecidas, de ninguém!

 

Lembro aqui que, quando saí do júri a que aludi mais acima, os irmãos da vítima vieram-me agradecer o ter eu absolvido o matador de sua irmã...

 

Contra um ignóbil e iníquo estado de espírito dessa ordem, que tende a se perpetuar entre nós, aviltando a mulher, rebaixando-a ao estado social da barbaria medieval, de quase-escrava, sem vontade, sem direito aos seus sentimentos profundos, e tão profundos são que ela joga no satisfazê-los a vida; degradando-a à condição de cousa, de animal doméstico, de propriedade nas mãos dos maridos, com direito de vida e morte sobre ela; não lhe respeitando a consciência e a liberdade de amar a quem lhe parecer melhor, quando e onde quiser; — contra tão desgraçada situação da nossa mulher casada, edificada com a estupidez burguesa e a superstição religiosa, não se insurgem as borra-botas feministas que há por aí. Elas só tratam de arranjar manhosamente empregos públicos, sem lei hábil que tal permita. É um partido de "cavação", como qualquer outro masculino.

 

Voltando, porém, ao último júri de uxoricídio, eu notei que os jornais pouco falaram na defesa do senhor Evaristo de Morais, a não ser para dizer que ele se alegrava de ver o réu cercado, ali, de muitos camaradas. Isto traz água no bico; mas quero crer que o júri decidiu com completa liberdade de ação.

 

O outro advogado, porém, teve a honra de ser resumido com mais largueza; e a sua defesa, que foi brilhante, merece por isso alguns comentários, tanto mais que, segundo me parece, não é a de advogado profissional.

          

Sobre a parte sentimental, que é a única forte e lógica do seu discurso, porque também há uma lógica dos sentimentos, nada posso dizer, porquanto não conheço nem de vista o seu constituinte; e, escrevendo isto aqui, não me anima nenhum sentimento de animadversão contra o pobre moço que ele defendeu.

 

Continuo aqui uma campanha a que me impus, de combater essa toleima espiritual e sentimental que leva um rapaz como o seu colega que era o réu, a praticar o maior, e talvez o único crime absoluto, que é o homicídio, por causa de abusões e superstições burguesas, religiosas e feudais.

 

O jovem advogado e oficial de Marinha — vem a pêlo falar nisso — conforme li no jornal (Correio da Manhã, de 26 de fevereiro de 1919), disse que o réu:

 

               Levantou o seu inexprimível grito de revolta contra esse crime de adultério que não tem nenhuma circunstância atenuante, que o desculpe.

 

Diga-me uma cousa, senhor tenente: e o de assassinato tem? Qual o mais grave dos dois? Qual dos dois invade sacrilegamente o domínio das forças misteriosas que nos governam? Diga-me, senhor tenente: quem tem o direito de matar?

 

O senhor tenente talvez ficasse um pouco embaraçado para responder-me; eu continuo, mas toco em outros pontos. Por que acusar este ou aquele? Por que, cheio de sua enfatuação militar, chamar de reles "primo Basílio" de lugarejo a terceira personagem da tragédia, aquela que ficou nos bastidores?

 

O culpado não é ela, não é ele, não é estoutro. É a fatalidade da nossa carne, dos nossos ossos, do nosso sangue de homem; e foram também e, especialmente, os sonhos dela e essa necessidade de fugir do plúmbeo tédio da vida terrena, que é muito poderoso na mulher, para os paraísos artificiais, da imaginação de cada um. Continuemos, para não perder tempo!

 

Como diz o senhor que o assassinato foi conseqüência do "desespero que se não domina, do ato reflexo que se não contrai"? Curiosa espécie de desespero é esse que, primeiramente, faz a seu portador ir pacientemente à cidade, comprar revólver, para depois emitir ele o ato reflexo que não pode contrair, sob o império da paixão cega!

 

O segredo de sua defesa, onde o senhor tenente denunciou bem o ponto fraco do réu, é aquele em que indica como um dos culpados:

 

            a sociedade corrompida que com a sua indiferença estimula o adultério e dele só tira motivos de galhofas e de irrisão para o marido.

 

Quase sempre é esse terror do ridículo, mais, talvez, do que as sobrevivências da Honra medieva; é o pavor pusilânime do cochicho da maledicência que leva os maridos em tais condições a matar as suas mulheres infiéis. Eles não temem sofrer na sua consciência a opressão do remorso de um homicídio; eles temem os boquejos das esquinas, das confeitarias, dos botequins.

 

Não me animo a comentar semelhante preferência: cada qual pensa e age, segundo o seu próprio entendimento, e de acordo com a sua lógica interna.

 

Eles, esses maridos, não são absolutamente passionais. Seriam passionais, se entre a concepção do crime e a sua execução a quantidade de tempo que medeasse fosse quase nenhuma, e, solicitados imperiosamente pela paixão, agissem quase instantaneamente. Tal não se dá; eles se armam e precavidamente esperam a ocasião propícia. É tomo se Otelo fosse procurar a adaga ou o espadagão, para matar Desdêmona... Todos, ou quase todos, esses crimes por adultério, bem analisados, resultam na convicção de que são perfeitamente premeditados; e no ponto relativo à individuação da pena, o jovem defensor foi infeliz.

 

Quanto mais bem-educado é o réu, menos direito, se assim me posso exprimir, tem de o ser por assassinato. A instrução e a educação são freios que se põem aos nossos fundamentais e maus impulsos de matar; e poucos são aqueles que as podem receber, por isso devem ser mais responsáveis os que as têm, do que  os outros, órfãos desses dons inestimáveis.

 

Vão longas estas linhas; e eu não posso terminá-las sem confessar que tenho muita pena dessa pobre moça que teve a coragem moral de dizer ao marido que o filho a palpitar-lhe no ventre não era do esposo. "Sim", disse ela, "é dele; e só a ele é que eu amo" (Correio da Manhã, de 25/2/19).

 

Ainda bem que não negou a sua falta, como tantos que negam os seus crimes evidentes; é uma heroína de Ibsen. Onde está a honra? Decididamente a descendência de Adão não pode falar em semelhante senhora...

 

 

Revista Contemporânea, 08/03/1919

 

 

 

 

Habeas corpus curioso

 

Na semana passada os jornais noticiaram um interessante julgado. Creio que é assim que os arcaizantes jurisconsultos denominavam as decisões de seus tribunais e juízes.

 

Trata-se de um cidadão de São Paulo que raptou uma moça com quem desejava casar-se. Consumado o casamento natural e adamítico, mesmo assim o pai, que, antes dele, havia negado consentimento para o consórcio burocrático, pretoriano ou eclesiástico, continuou na sua teima, não permitindo que o rapaz "reparasse a falta", sob a alegação de vários motivos que não vêm ao caso citar. Resolveram pessoas autorizadas pelo Estado internar a moça num asilo e o cidadão, que tinha as melhores disposições para aumentar o coeficiente de nupcialidade, foi muito juridicamente parar na cadeia, regularmente condenado, porque o seu desejo era casar-se com uma dada e determinada moçoila.

 

Esse fato jurídico-policial em todo o seu desenvolvimento prestar-se-ia a muitas considerações sutis sobre leis, tribunais e autoridades, se fosse tratado por outra pena que não a minha,  inábil e canhestra.

 

Em todo o caso, porém, eu me animo a dizer alguma coisa, para sugerir a outras inteligências mais capazes que a minha, a necessidade de interessar-se por ele e comentá-lo como é merecedor.

 

Na primeira parte, o pai, que julgava muito mal o seu genro espontâneo, não o queria artificial, por isso o casamento não se efetuou, de acordo com a lei 142.238 A, de 30 de agosto de 1327, § 7°, letra alfa; permissão de 15 de outubro de 1447; carta régia de 18 de novembro de 1637; resolução da mesa do bem comum, de 2 de fevereiro de ln2; acórdão da Casa de Suplicação de 44 do Ramadã de 1427, da Hégira, etc., etc.

 

Bem. Toda a legislação romana, arábica, visigótica, portuguesa, etc., etc., dava-lhe poderes bastantes para impedir o matrimônio da filha menor. Concordo porque, a ter quem me governe, prefiro meus pais a todos os luminares do Catete, do Supremo Tribunal e do Congresso, mas o pai, que tinha esse extraordinário poder, não tinha o menor de dar destino conveniente à sua filha, tê-la em sua companhia, guiá-la para o arrependimento, como autoridade natural que era sobre a moça. Quem teria essa força senão ele? perguntarão  os senhores. Deus? Não.

 

Sabem quem a tinha, acima do pai?

O curador de órfãos. É engraçado!

 

O pai pode impedir que a filha siga as inclinações do seu sexo, mas não pode tê-la sob a sua guarda e tutela. Quem pode indicar um guarda e um tutor conveniente não é ele; é um funcionário do Estado, que não conhece a moça, que nunca a viu mais gorda, não lhe sabe as qualidades, os defeitos, nem lhe adivinha a força dos sentimentos.

 

De acordo com a legislação dos iberos e lusitanos, dos carlovíngios e suevos, dos alanos e bizantinos, sobrepondo-se à autoridade paterna, que, no caso, me parece era pessoa perfeitamente capaz, determina que a moça seja internada numa casa de religiosas sem indagar se a menina gosta dessas coisas de missas e rezas.

 

O melhor, o mais lógico, era o que acontecia antigamente: os pais podiam meter as filhas, nas mesmas condições que a moça ora em causa ou em outras, no convento. A sua autoridade de pai era completa.

 

Hoje, com os nossos bizantinismos legais, judiciais e toda essa trapalhada de leis, códigos, portarias, acórdãos, a autoridade paterna é vacilante e incoerentemente exercida.

 

Uma hora, o pai pode impedir o casamento e o curador de órfãos pode anular a decisão paterna; outra hora, o pai impede como na sua primeira fase deste caso, mas logo vem o bacharel curador de órfãos, quando a paciente não era órfã, e grita tendo na mão todos os digestos de todas as legislações passadas, presentes e futuras de todas as nações do mundo:

 

— Você tem o direito de pôr impedimentos ao casamento da pequena, mas quem lhe indica a moradia sou eu. Você é pai para empatar o consórcio, mas não o é para dar comida e casa à filha. Quem dá o ensino não dá o pão.

 

É uma decisão das mais extraordinárias que se pode conceber e esperar em matéria de lógica. Os raciocínios se articulam aí tão perfeitamente para se chegar a conclusão tão fatal que, creio, nem na geometria do velho Euclides se encontrará demonstração tão rigorosamente arquitetada e perfeita.

 

Continuemos, porém, a estudar o caso do rapto de São Paulo.

 

O pai, que não queria a filha no asilo, veio afinal a dar o seu consentimento para o matrimônio.

 

Parecia que a causa estava resolvida; as autoridades jurídicas, porém, que até aí tinham julgado como único impedimento para se efetuar o consórcio a oposição do pai, vetaram o negócio.

 

Então, o "velho", a filha e o genro de fato ligaram-se e pediram habeas corpus para legalizar a união consumada dos dois últimos. Nesse ponto, começam a entrar os luminares da ciência jurídica; e o Tribunal Superior de Justiça de São Paulo, consoante um embrulho de leis enumeradas até no infinito, nega o habeas corpus, para que os pacientes realizem uma coisa que, quase sempre, os simples delegados obtêm, mais ou menos sob ameaças.

 

Toda essa barulhada que não quero esmiuçar mais vem mostrar que, além de inúteis, muitas  dessas leis são contraditórias, umas destruindo as outras, e concorre não para simplificar a nossa vida e as nossas relações sociais, mas para complicá-las, obscurecer o que é claro e, quase sempre, dar razão a quem não a tem, mas que pode dispor de argumentadores e trapalhistas jurídicos de profissão que se fazem pagar caro.

 

Não é este o caso do habeas corpus de que trato; mas outros exemplos mais eloqüentes e elucidativos do que afirmo devem existir e existem por aí. É ter paciência de procurá-los.

 

O que se chama — "saber jurídico" — mete-me mais medo do que toda a ciência astrológica dos antigos; e se me ameaçassem de morte para estudar-lhe um pedaço que fosse,  eu preferia mesmo morrer.

 

Quando será que os homens se hão de convencer da inutilidade e da importância de leis que só servem para complicar a sua existência e esmagar os fracos?

 

 

  1. B. C.,  14/02/1920 

 

 

 

Mais uma vez

 

Este recente crime da rua da Lapa traz de novo à tona essa questão do adultério da mulher e seu assassinato pelo marido.

 

Na nossa hipócrita sociedade, parece estabelecido como direito, e mesmo dever do marido, o perpetrá-lo.

 

Não se dá isto nesta ou naquela camada, mas de alto a baixo.

 

Eu me lembro ainda hoje que, numa tarde de vadiação, há muitos anos, fui parar com o meu amigo, já falecido Ari Toom, no necrotério, no Largo do Moura por aquela época.

 

Uma rapariga — nós sabíamos isso pelos jornais — creio que espanhola, de nome Combra, havia sido assassinada pelo amante e, suspeitava-se, ao mesmo tempo maquereau dela, numa casa da Rua de Santana.

 

O crime teve a repercussão que os jornais lhe deram e os arredores do necrotério estavam povoados da população daquelas paragens e das adjacências do Beco da Música e da Rua da Misericórdia, que o Rio de Janeiro bem conhece. No interior da morgue, era a freqüência algo diferente sem deixar de ser um pouco semelhante à do exterior, e, talvez mesmo, em substância igual, mas muito bem-vestida. Isto quanto às mulheres — bem entendido!

 

Ari ficou mais tempo a contemplar os cadáveres. Eu saí logo. Lembro-me só do da mulher que estava vestida com um corpete e tinha só a saia de baixo. Não garanto que estivesse calçada com as chinelas, mas me parece hoje que estava. Pouco sangue e um furo bem circular no lado esquerdo, com bordas escuras, na altura do coração.

 

Escrevi — cadáveres — pois o amante-cáften se havia suicidado após matar a Combra — o que me havia esquecido de dizer.

 

Como ia contando, vim para o lado de fora e pus-me a ouvir os comentários daquelas pobres pierreuses de todas as cores, sobre o fato.

 

Não havia uma que tivesse compaixão da sua colega da aristocrática classe. Todas elas tinham objurgatórias terríveis, condenando-a, julgando o seu assassínio cousa bem-feita; e, se fossem homens, diziam, fariam o mesmo — tudo isto entremeado de palavras do calão obsceno próprias para injuriar uma mulher. Admirei-me e continuei a ouvir o que diziam com mais atenção. Sabem por que eram assim tão severas com a morta?

 

Porque a supunham casada com o matador e ser adúltera.

 

Documentos tão fortes como este não tenho sobre as outras camadas da sociedade; mas, quando fui jurado e, tive por colegas os médicos da nossa terra, funcionários e doutos de mais de três contos e seiscentos mil-réis de renda anual como manda a lei sejam os juízes de fato escolhidos, verifiquei que todos pensavam da mesma forma que aquelas maltrapilhas rôdeuses do Largo do Moura.

 

Mesmo eu — já contei isto alhures — servi num conselho de sentença que tinha de julgar um uxoricida e o absolvi. Fui fraco, pois a minha opinião, se não era fazer-lhe comer alguns anos de cadeia, era manifestar que havia, e no meu caso completamente incapaz de qualquer conquista, um homem que lhe desaprovava a barbaridade do ato. Cedi a rogos e, até, alguns partidos dos meus colegas de sala secreta.

 

No caso atual, neste caso da rua da Lapa, vê-se como os defensores do criminoso querem explorar essa estúpida opinião de nosso povo que desculpa o uxoricídio quando há adultério, e parece até impor ao marido ultrajado (sic) o dever de matar a sua ex-cara-metade.

 

Que um outro qualquer advogado explorasse essa abusão bárbara da nossa gente, vá lá; mas que o senhor Evaristo de Morais, cuja ilustração, cujo talento e cujo esforço na vida me causam tanta admiração, endosse, mesmo profissionalmente, semelhante doutrina é que me entristece.

 

O liberal, o socialista Evaristo, quase-anarquista, está me parecendo uma dessas engraçadas feministas do Brasil, gênero professora Daltro, que querem a emancipação da mulher unicamente para exercer sinecuras do governo e rendosos cargos políticos; mas que, quando se trata desse absurdo costume nosso de perdoar os maridos assassinos de suas mulheres, por isto ou aquilo, nada dizem e ficam na moita.

 

A meu ver, não há degradação maior para a mulher do que semelhante opinião quase geral; nada a degrada mais do que isso, penso eu. Entretanto...

 

Às vezes mesmo, o adultério é o que se vê e o que não se vê são outros interesses e despeitos que só uma análise mais sutil podia revelar nesses Iagos.

 

No crime da rua da Lapa, o criminoso, o marido, o interessado no caso, portanto, não alegou quando depôs sozinho que a sua mulher fosse adúltera; entretanto, a defesa, lemos nos jornais, está procurando "justificar" que ela o era.

 

O crime em si não me interessa, senão no que toca à minha piedade por ambos; mas, se tivesse de escrever um romance, e não é o caso, explicaria, ainda me louvando nos jornais, a cousa de modo talvez satisfatório.

 

Não quero, porém, escrever romances e estou mesmo disposto a não escrevê-los mais, se algum dia escrevi um, de acordo com os cânones da nossa crítica; por isso guardo as minhas observações e ilusões para o meu gasto e para o julgamento da nossa atroz sociedade burguesa, cujo espírito, cujos imperativos da nossa ação na vida animaram, o que parece absurdo, mas de que estou absolutamente certo — o protagonista do lamentável drama da rua da Lapa.

 

Afastei-me do meu objetivo, que era mostrar a grosseria, a barbaridade desse nosso costume de achar justo que o marido mate a mulher adúltera ou que a crê tal.

 

Toda a campanha para mostrar a iniqüidade de semelhante julgamento não será perdida; e não deixo passar vaza que não diga algumas toscas palavras, condenando-o.

 

Se a coisa continuar assim, em breve, de lei costumeira, passará a lei escrita e retrogradamos às usanças selvagens que queimavam e enterravam vivas as adúlteras.

 

Convém, entretanto, lembrar que nas velhas legislações, havia casos de adultério legal. Creio que Sólon e Licurgo os admitia; creio mesmo ambos. Não tenho aqui o meu Plutarco. Seja, porém, como for, não digo que todos os adultérios são perdoáveis. Pior do que o adultério é o assassinato; e nós queremos criar uma espécie dele baseado na lei.

 

 

A.B.C., 1920

 

 

 

Coisas jurídicas

 

Este negócio de assassinatos perpetrados pelos maridos, por adultério da mulher, dá lugar a muitas reflexões. A estupidez desses matadores é evidente; a sua perversidade não é menos.

 

Mas, os jornais, no dever de forçar a publicidade e provocar a curiosidade, trazem à tona cousas bem interessantes.

 

Não quero falar bobagens e quinquilharias da vida doméstica de um qualquer casal: não quero falar do caderno da venda nem das reclamações do vizinho; não quero falar do choro das crianças nem das palmadas paternas e maternas. Tudo isto é igual em todas as notícias desses casos tristes em que um bobo ou perverso de marido mata a mulher porque adulterou.

 

No último caso, porém, em que isso se deu, surgiu uma situação onde a bodega de lei dança uma dança macabra com a justiça e a razão. Relembro um pouco. Um sujeito qualquer que descobre a mulher em flagrante adultério. Tenta matá-la à faca; o amante se interpõe e o marido o mata. Bem. Até aí, nada de novo.

 

O que de novo aparece, é o código civil ou criminal ou lá que for. Qualquer de um desses famosos calhamaços diz que a essa pobre mulher que escapou de ser morta, e, se o não foi, deve-o à generosa coragem do seu amante; a essa pobre mulher o calham aço dá direito ao matador manqué de processá-la e arranjar a sua condenação a um ano de prisão celular.

 

Ora bolas! O que é mais grave é o adultério ou a tentativa de assassinato ? Então o tipo que me mata ou tenta matar-me porque furtei um pão à sua padaria, pode processar-me por crime de furto?

 

Então eu que atiro e firo o gatuno que me vai furtar as galinhas do quintal, posso processá-lo por crime de furto?

 

Já se viu uma coisa dessas?

 

Essa jurisprudência é uma coisa muito engraçada!

 

 

Careta,19/02/1921

 

 

 

março, 2010