No Rio de Janeiro...

 

O futebol, todos  sabemos, surgiu no limiar do século XX no Rio de Janeiro como "uma grande novidade", mas por ser esporte de origem inglesa, logo cairia no gosto das rodas elegantes da cidade (que na época cultivavam quase que exclusivamente o remo) — e de imediato, por suas próprias características, despertaria paixões acirradas, não apenas entre torcedores e admiradores dos clubes então formados (Payssandu Cricket Club, Fluminense Foot-Ball Club, The Bangu Athletic Club, etc.).

O futebol, mais genericamente o esporte, na verdade, constituiu um elemento dos modismos aos quais a sociedade da cidade do Rio de Janeiro, inclusive os literatos e intelectuais, aderiu, no afã de se integrar a um processo de modernização advindo e preconizado pela República, implantada em 1889 e que tinha entre seus projetos de afirmação ideológica e política revelar-se como meio e suporte de  transformar um país  "atrasado não só institucionalmente, porquanto monarquia até então, como também econômica, socialmente e até urbanisticamente" e mostrar ao concerto das nações mundiais ser o regime mais adequado a superar e sustentar as exigências  de um processo capitalista de transformação e evolução.

Por  essa época, nas principais cidades do Brasil começou a fervilhar entre seus jovens — explicitamente por influência dos ingleses que aqui viviam1— as práticas esportivas mais variadas: o rowing (remo), o tênis, a luta greco-romana, o turfe, a pelota, o box, o ciclismo, a esgrima, o golfe, a patinação, o hipismo, além do tiro ao alvo, automobilismo e, notadamente, o cricket,  modalidades que  rapidamente espraiaram-se por setores da sociedade local.

Ainda que desde os tempos de Colônia persistisse no Brasil uma espécie de postura/ideologia 'anti-esportiva' por força da cultura escravocrata, que sedimentara entre brasileiros e portugueses o valor do ócio e a convicção de que o esforço físico "não era digno" (o que viria a ser revertido na década de 1910 pelo culto ao esporte e à educação física), e também por causa  do medo da febre amarela, que mantinha as pessoas afastadas de aglomerações (a epidemia de febre amarela assolou o País até 1906, quando foi debelada pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz). Não se praticava esportes também, porque não havia, entre os brasileiros e portugueses, o hábito de frequentar clubes — somente por volta de 1860 começaram a surgir os primeiros embriões de agremiações esportivo-sociais, sempre graças à iniciativa de ingleses para efeito da prática do cricket: pois foi justamente um clube dessa modalidade que em 1901 deu origem ao primeiríssimo clube de futebol do Rio de Janeiro2.

Pelos registros 'oficiais', o futebol teria surgido no Brasil — mais precisamente no estado de São Paulo — com Charles Miller, que retornando da Inglaterra em 1894, trouxe com ele as bolas e o sonho de ver o futebol crescer no país.  Na capital paulista surgiram os clubes São Paulo Athletic (que só praticava o cricket), o Sport Club Internacional e o Club Atlético Paulistano. No Rio de Janeiro os pioneiros clubes especificamente de futebol, com tal denominação, foram o Fluminense Football Club, fundado em 1902, e o Botafogo de Foot-ball e Regatas, em 1904. 

Mas informações de igual credibilidade histórica induzem a admitir-se que as origens da prática do futebol no Brasil remontam a épocas, formas e locais outros que os 'fields' e os clubes elitistas do início do século XX: estariam também nas ruas e em colégios. Ainda no século anterior a este, escravos e jovens pobres já procuravam imitar os marinheiros ingleses que corriam com uma bola no porto do Rio de Janeiro e, segundo fontes insuspeitas, seminaristas eram incentivados pelos jesuítas a praticar futebol como parte da educação física.

Justamente por ter vindo da "Old Albion" (assim era chamada a Inglaterra, 'na intimidade', pelas elites), em seus primeiros anos na cidade, o futebol teve um caráter restrito, praticado preponderantemente por jovens ricos e bem-nascidos — mas já no final da década de 1910, alcançava uma popularidade nunca vista, logo fascinando um significativo contingente de jovens, primeiro atraídos pela praticidade — jogar futebol era tão possível quanto assisti-lo, ao contrário do remo, do turfe, do pólo — depois  maravilhados com a dinamicidade e plasticidade que aliava ritmo e vibração, movimento e velocidade de maneira bastante peculiar — e, tanto quanto os demais esportes trazidos por migrantes de boa estirpe do Velho Mundo, enquadrou-se naqueles anseios elitistas de transformar as cidades brasileiras segundo modelos  das metrópoles europeias. Nesse sentido, jogar futebol simbolizava estar sintonizado com um novo modelo de sociedade e inserção num padrão 'civilizado'. Até porque as autoridades e dirigentes do País impuseram-se a tarefa de "organizar a sociedade" — a começar pela capital da República, modificando o traçado urbano, e atuando também no âmbito da saúde, do trabalho, da educação e do lazer. Uma atuação 'pedagógica' que  contou com um forte aliado: o esporte.

Só que a incontrolável difusão veio a extrapolar esses primeiros limites sociais. Na segunda metade da década de 1910, por exemplo, já era o esporte "de maior número de praticantes e adeptos", segundo a revista Época Sportiva; a popularidade ímpar do futebol, além de obrigar a criação de seções especiais  nos jornais de então — como O Paiz, Gazeta de Notícias, A Noite,Correio da Manhã — mas mantidos os tradicionais espaços para o remo e o turfe, fez nascer publicações especializadas, como a citada  Época Sportiva, Sport Ilustrado, Sportmen (esta, de São Paulo). O crescimento e o interesse despertado pelo jogo de bola não tardariam a ocupar maiores espaços nas  páginas dos jornais.

Se em 1901 o público presente na primeira partida disputada no Rio de Janeiro era menor que o número de atletas em campo, em 1904 o futebol já atraía tanta gente, que foi preciso a Federação Carioca das Sociedades de Remo oficiar aos clubes um apelo para que não fossem realizados jogos nos dias de regatas. E em 1906, no campo do Fluminense, cerca de mil e quinhentas pessoas aglutinaram-se para ver um "match" entre brasileiros e ingleses (estes, na verdade, ingleses residentes no Rio de Janeiro).

A extraordinária e avassaladora difusão do futebol nos primeiros anos do século XX, não apenas no seio das chamadas rodas elegantes da sociedade brasileira, encontrou também generosa guarida entre intelectuais e escritores — contingente social e profissional que passou a adquirir notável significância e papel de proa no contexto histórico de então3: afinal, conferia-se uma nítida feição de elegância e distinção para o futebol — e o elitismo originário se manifestava tanto no fato de ser praticado pelas camadas 'endinheiradas' como notoriamente pela exclusiva utilização dos termos ingleses que faziam parte do vocabulário do chamado "jogo bretão". Bastante apropriado para aquele tipo de 'cultura belle èpoque' então vigente...

João do Rio foi o primeiro cronista a  detectar a importância do jogo para a cidade, assinando com o pseudônimo de José Antonio José (um de seus 'disfarces' jornalísticos: com esse nome, escreveu por exemplo Memórias de um rato de hotel) uma crônica intitulada "Pall Mall Rio — Foot-ball", em O Paiz de 4 de setembro de 1916, onde vaticinava: "Tenho assistido a meetings colossais em diversos países, mergulhei no povo de diversos países, nessas grandes festas da saúde, da força e do ar. Mas absolutamente nunca eu vi o fogo, o entusiasmo, a ebriez da multidão assim".

Na esteira de João do Rio, impressionados com a avassaladora popularidade do futebol, os intelectuais e notadamente os escritores se entregaram à  tentação e ao desafio de interpretá-lo, o futebol vindo a  sensibilizar, em maior ou menor grau, a quase todos, como Olavo Bilac, Luis Edmundo, Afrânio Peixoto a quem se atribui  participação decisiva nesse despertar de interesse pelo futebol entre os literatos: médico que também era, foi o primeiro a legitimar, sob argumentação científica, o futebol como atividade 'respeitável', ligando-o ao intelecto e à educação. Peixoto chegou  a declarar, em 1918, que "esse jogo de foot-ball, esses desportos que dão saúde e força, ensinam a disciplina e a ordem, fazem a cooperação e a solidariedade, me enternecem, porque são grandes escolas onde está se refazendo o caráter do Brasil (...) o futebol estará reformando, senão refazendo o caráter do Brasil" (em "A educação nacional", no livro Poeira de estrada, 1918).

Sob outro prisma, pode-se da mesma forma entender a notável receptividade que o futebol encontrou, de pronto, junto aos literatos por força do culto então vigente no seio da sociedade carioca a 'traços e coisas da modernidade, à europeia'. Logo, escritores como Coelho Neto e Olavo Bilac, por exemplo — até mesmo por sua 'índole estilística' — não hesitaram em 'literatizar' o esporte, pincelando-o com tons e matizes da Grécia e da mitologia, dedicando-se  integral e incondicionalmente à louvação  — e, de certa forma, mitificação —  do novo esporte, apregoando as vantagens 'filosóficas' de sua prática e disseminação:  o futebol enquanto prática de aprimoramento físico e instrumento de otimização social. A função do novo esporte seria "(...) criar no país uma 'nova raça que deixasse definitivamente para trás a sua malfadada herança cultural (...)'". O modo pelo qual isso poderia ser conseguido era bastante claro: abrindo mão dos interesses pessoais, todos deveriam trabalhar por uma mesma causa, por um mesmo ideal — não por acaso uma das preocupações básicas dos defensores da melhoria da raça brasileira, que faziam da propaganda cívica uma das estratégias básicas de sua atuação. Era o 'discurso eugênico', que então permeava e prevalecia no meio científico brasileiro — e mundial — divulgando e enfatizando os 'sentimentos nobres' atribuídos às "raças superiores", como o senso de disciplina, a harmonia social e o amor à Pátria.

De resto, a prática e aceitação do futebol se expandia entre todas as camadas da população, inclusive e notadamente entre trabalhadores e operários: os esportes seriam em geral uma lídima expressão de educação física, "saudável ao corpo e à mente". Por considerá-los verdadeiras fontes de energia, cada vez mais intensificava-se uma campanha a favor dos esportes: assim, o futebol iria contribuir para a criação de uma sociedade "saudável, forte, altaneira, os de homens adestrados pelo exercício físico e preparados, em corpo e mente a fazer o progresso da Pátria" e justamente aí reside um elemento capital das excepcionais aceitação e admiração por parte de muitos intelectuais e literatos: viam no futebol, mercê de sua notável popularização e dotado de 'sentido tão nobre', "uma força de transformação sociológica", adequado a alguns dos projetos de cunho político e social que sustentavam e se propunham a promover.

A par de 'instrumento de regeneração social', o esporte abrigava os princípios do 'helenismo' e do 'espírito olímpico' inerente a Atenas: o futebol  derivava-se  em linha reta dos jogos atléticos da Hélade (e por outro lado, como hoje interpretado, resgataria e expressaria a katarsis, individual e coletiva, almejada e idealizada originalmente pela filosofia grega — e se retirava dele o caráter 'bretão'. Os praticantes do futebol e os jogadores dos clubes oficialmente constituídos seriam  uma espécie de missionários de 'uma causa nobre', que dariam ao País exemplo de disciplina, solidariedade, energia, força... e civismo. Esporte e Nação, patriotismo e futebol, eram conceitos e elementos inseparáveis.

Entre todos, um logo se notabilizou como  o maior dos adeptos, o mais vibrante entusiasta do novo esporte, tornando-se em pouco tempo grande ideólogo do jogo, mergulhando obstinadamente na defesa apaixonada das vantagens de sua disseminação: Coelho Neto. A atração que o futebol logo exerceu sobre ele manifestou-se já em seu romance Esfinge, publicado em 1908 , em que o personagem  James Marian, um inglês hóspede da pensão de Miss Barkley, tinha o hábito de "aos domingos, sair cedo com seu material de tênis e com roupa para o foot-ball". E o futebol passaria a ser, a partir daí, tema onipresente  não só nas crônicas e discursos mas também e principalmente na vida pessoal de Coelho Neto.

Sócio do Fluminense, entregou-se  cada vez mais à paixão pelo esporte e pelo clube. Tanto que chegava a assistir, no mesmo dia, quatro jogos diferentes do Fluminense, pois tinha filhos jogando em cada uma das categorias que o clube disputava; tamanha paixão, que o levou a liderar a primeira invasão de campo do futebol carioca, inconformado com o juiz que marcara um pênalti a favor do Flamengo num movimentado Fla-Flu no campo da Rua Paissandu, e que acabou provocando a anulação do jogo.Tamanha paixão, que em 1915 escreveu a letra do primeiro hino do Fluminense ("O Fluminense é um crisol / onde apuramos a energia / ao pleno ar, ao claro sol / lutando em justas de alegria / o nosso esforço se congraça / em torno do ideal viril / de avigorar a nossa raça / do nosso Brasil...)­­­­, onde fica evidente e bem mais nítida a campanha que ele começava a mover a favor do futebol.

Coelho Neto via o futebol "ajudando a criar uma sociedade na qual os homens, qual os esportistas, fossem adestrados pelo exercício físico, criando um tempo de paz e de harmonia e abrindo o peito para valores nobres de confraternização e integração social". E os jogadores, para ele, assumiam a feição de verdadeiros missionários de uma causa nobre: propagando os princípios da disciplina e da solidariedade, os atletas dariam ao país grande exemplo, ajudando a consolidar o potencial transformador do futebol. Gerando harmonia e solidariedade entre os homens, controlando seus impulsos e moldando seus corpos e suas mentes na construção de um ideal de Pátria, o futebol seria a força propulsora de uma nação forte e vigorosa e os jogadores representantes dessa nova nação que se erguia dos campos.

Contudo, numa efetiva contramão desse contexto, emerge e insere-se Lima Barreto e seu inquebrantável repúdio ao futebol que, de resto, integrava-se à ojeriza visceral e irredutível ao estrangeirismo, a tudo que fosse alienígeno à nacionalidade, vistas também como 'estrangeiras' as elites republicanas. Via a sociedade brasileira como o fruto da combinação de distintas etnias, mestiçagem que atingira grau elevado de intimidade e adaptabilidade à natureza tropical; abominava por isso a preocupação obsessiva das elites em fomentar e transmitir a imagem de uma 'nação branca e civilizada', fato que as tornava tão estrangeiros quanto os europeus e americanos "invasores, as mais das vezes sem nenhuma cultura e sempre rapinantes".

Na crítica à violência gerada pelo futebol dentro e fora dos campos, inseria-se também a sua crença e pregão dos ideais de fraternidade, harmonia e paz entre os homens; na crítica aos elitismo, sectarismo e exclusão social promovidos pelo futebol, a manifestação de sua ideologia anarquista-maximalista. E mais: na essência mesmo do futebol, encontrava-se a figura de Coelho Neto, epígono e personificação da escrita/linguagem 'empolada, de expressões cediças e figuras de efeito, cheias de arabescos estilísticos', expressão da frivolidade e mundanismo então prevalecentes. Sobretudo, o futebol como exemplo da pretensa, falsa e "obtusa" modernização preconizada e pretendida pela, segundo ele, "nefanda República.

Lima Barreto alinhava-se entre "os tantos inimigos que pela imprensa o combatem" e que logo passou a fazer do futebol um de seus temas prediletos nas páginas da imprensa carioca. Com espaço e reconhecimento já assegurados nos círculos literários, com três romances e uma infinidade de  crônicas, Lima inaugurou seus ataques em 15 de agosto de 1918, no artigo "Sobre o Foot-ball" no jornal Brás Cubas:

"Diabo! A coisa é assim tão séria? Pois um divertimento é capaz de inspirar um período tão gravemente apaixonado a um escritor?

 (...) Reatei a leitura, dizendo cá com os meus botões: isto é exceção, pois não acredito que um jogo de bola e sobretudo jogado com os pés, seja capaz de inspirar paixões e ódios. Mas, não senhor! A cousa era a sério e o narrador da partida, mais adiante, já falava em armas...

Não conheço os antecedentes da questão; não quero mesmo conhecê-los; mas não vá acontecer que simples disputas de um inocente divertimento causem tamanhas desinteligências entre as partes que venham a envolver os neutros ou mesmo os indiferentes, como eu, que sou carioca, mas não entendo nada de foot-ball".

Lima atentava, desde o princípio, para a força social do jogo: longe de ser um mero passatempo sem sentido, era capaz de inspirar paixões e ódios — e o futebol adquiria para ele uma seriedade ímpar, que o obrigaria como 'crítico de costumes' a dedicar-se profundamente ao novo fenômeno. Transformando-se no paladino do combate ao jogo de bola, Lima elegeria justamente Coelho Neto como o principal adversário. Iniciava-se então um acirrado confronto pelas páginas da imprensa carioca, logo depois de mais um empolgante discurso de Neto, por ocasião da inauguração da piscina do Fluminense, em 1919 — discurso que para Lima parecia um verdadeiro pecado, manifestado na crônica "Histrião ou literato", na Revista Contemporânea, de 15 de fevereiro de 1919: Lima Barreto acusava Coelho Neto de fazer "somente brindes de sobremesa para satisfação dos ricaços", e sustentava que a simpatia de Neto pelo futebol seria mero oportunismo, um meio de agradar às ricas famílias, vindo de "um homem que não entende sequer a alma de uma criada negra". A partir daí, Lima aumentaria a quantidade e virulência dos ataques, em crônicas quer em tom agressivo quer irônico, nas quais surge a imagem de um jogo brutal e sem sentido, totalmente diferente do elemento de regeneração social preconizado por Coelho Neto, para desespero da imprensa carioca, quase toda ela empenhada em prestigiar o futebol — com raríssimas exceções como, por exemplo, a do jornalista e escritor Carlos Sussekind de Mendonça, que se incorporou à luta de Lima Barreto contra o futebol, que ele considerava entre outros aspectos "micróbio de corrupção e imbecilidade", "estrangeirismo estéril e inútil". Propunha  sobretudo   combater, de todas as formas, a "nefasta defesa do futebol" feita por intelectuais e escritores — rejeitando, inclusive, qualquer teoria de que "o esporte possa manter alguma relação com a razão e o intelecto" — e denunciar as "verdadeiras atrocidades, até dentro dos próprios clubs" promovidas pelo futebol: como Lima Barreto, enfatizava o "blefe de  regeneração social" contido no futebol e "os malefícios físicos, sanitários,sociais e culturais" de sua disseminação "que só pode ser bocado de feitiçaria" em campos "onde se apinham centenas de ociosos assistindo inertes, a transpirar, os vinte e dois heróis de maxambona ou caixa pregos". Em 1921, então editor do jornal A Época, do Rio de Janeiro, Sussekind de Mendonça teve seu livro O sport está deseducando a  mocidade brasileira — hoje obra raríssima — publicado com o subtítulo "dedicado a Lima Barreto".

Ainda em 1919, crescente sua oposição ao futebol, Lima Barreto passa a contar com a solidariedade de outros adversários do jogo: junto com ele, o Dr. Mário de Lima Valverde — quem, cerca de dois meses antes, discorrera para Lima sobre os malefícios à saúde provocados pela prática de futebol — o jornalista Antonio Noronha Santos e o "homem de letras" Coelho Cavalcanti resolvem criar, em março de 1919, uma "Liga Contra o Futebol", cuja constituição é  anunciada em pequena nota na edição do Rio-Jornal de 12 de março.

As aludidas "verdadeiras atrocidades promovidas pelo futebol", eram denunciadas por Lima Barreto — como na crônica intitulada "Divertimento?", publicada na revista Careta, em 04 de dezembro de 1920, em que  destacava os inúmeros conflitos e constantes brigas ocorridos nos campos, com tumultos e batalhas entre torcidas diferentes, registradas nos jornais diários a cada segunda-feira, culminando  com o tiroteio num jogo entre o Metropolitano e o São Paulo e Rio em 18 de dezembro de 1920 — como atestados de que, mais do que casos isolados, seriam "o fim próprio e natural do jogo", como sustenta no artigo "Uma conferência esportiva", na revista Careta, de 1º de janeiro de 1921.

Por trás da oposição crítica barretiana estava muito mais do que uma questão literária ou mera contestação do papel de redenção social que Coelho Neto atribuía ao futebol: Lima via nele um fator de degeneração da cultura e da política nacional, pois patrocinava uma injusta e gritante diferenciação social e regional, como declarou em entrevista ao Rio-Jornal, em  13 de março de 1919: "Está aí, uma grande desvantagem social do nosso foot-ball. Nos dias em que, para maior felicidade dos homens, todos os pensadores procuram apagar essas diferenças acidentais entre eles, no intuito de obter um mútuo e profundo entendimento entre as várias partes da humanidade, o jogo do ponta-pé propaga sua separação e o governo o subvenciona".  

Lima criticava os "favores e favorezinhos" que os clubes de futebol recebiam do governo para "criar distinções idiotas e antissociais entre os brasileiros, e longe de tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral entre as divisões políticas da União, separa-as": segundo ele, os clubes de futebol seriam "portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça, etc" — haja vista que os defensores do futebol sustentavam ser "um sport que só pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo" (jornal Sports, de 6 de agosto de 1915) e reclamavam "que alguns jogadores não tinham o nível social de há uns anos atrás" (Jornal do Brasil, de 3 de maio de 1920).

Não eram apenas econômicas e sociais as distinções combatidas por Lima Barreto, mas também raciais, vedando aos negros participação nos grandes clubes de futebol: em 1921, quando o próprio presidente Epitácio Pessoa proíbe jogadores negros de fazer parte do selecionado que ia à Argentina disputar um campeonato, Lima foi duro nas críticas,  publicando no mesmo dia 1º de outubro de 1921 dois artigos — "O meu conselho" e "Bendito foot-ball" — no jornal A. B. C., onde afirmou que "quando não havia foot-ball, a gente de cor podia ir representar o Brasil em qualquer parte" e  aponta o caráter nocivo do futebol para o país". "É o fardo do homem branco: surrar os negros, a fim de trabalharem para ele. O foot-ball não é assim: não surra, mas humilha, não explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam".

Vendo nos sócios dos grandes clubes os herdeiros dos antigos senhores de escravos, Lima enxerga no futebol "uma das formas de continuação da dominação exercida durante décadas pelo regime escravista, onde se troca a violência pela humilhação de quem paga impostos para sustentar, com subvenções oficiais, um jogo ao qual não tem acesso". O futebol aparece em seus  textos como "um poderoso instrumento de domínio utilizado por uma raça que se julga eleita por Deus graças às suas habilidades nos pés; como a escravidão, sua única finalidade é criar uma separação idiota entre os brasileiros, perpetuando as desigualdades e continuando um passado de diferenciação e segregação" (artigo "O nosso esporte", publicado no jornal A. B. C., de 26 de agosto de 1922).

Direta ou indiretamente, não há dúvida de que os literatos como Coelho Neto e Lima Barreto e suas polêmicas alimentavam um processo que anos depois faria do futebol, como o é hoje, uma verdadeira instituição nacional. A dinâmica da transformação do jogo em fenômeno nacional — com suas implicações sociológicas, políticas e culturais — no entanto, foi muito menos compreendida por Coelho Neto do que por Lima Barreto, que indignado com o fato de "indivíduos que não davam para nada" ser transformados em verdadeiros "heróis nacionais", refutava  no último artigo escrito antes de morrer ("O herói", para a revista Careta, de 18 de novembro de 1922) a lógica que fazia desses "pobres esforçados, que nada fazem para o benefício comum, injustas 'glórias do Brasil'".

A realidade incontestável é que o futebol continuou — e continua — ao longo do tempo, sua meteórica ascensão e disseminação entre todas as camadas e estratos, como 'força esportiva', 'força social', 'força cultural'. Seguiu sua trajetória, eletrizando todas as camadas sociais e sensibilizando escritores, artistas e intelectuais — de Graciliano Ramos, que o repudiava ("Futebol não pega, tenho certeza; estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho", em 1916), a Orígenes Lessa, Fernando Sabino, que o inseriram em contos; de Gilberto Freyre, um entusiasta de primeira linha, que incluiu o futebol em muitos de seus escritos, a Mario Filho — autor do memorável O negro no futebol brasileiro — e chegando ao auge da paixão futebolística 'a serviço' da literatura, nela integralmente enfronhada e estigmatizada, em José Lins do Rego e Nelson Rodrigues.

 

 

... e em São Paulo

 

Por sua vez, na esteira e na órbita do pioneirismo que sempre caracterizou a cidade, São Paulo foi "o berço do futebol no Brasil" [o introdutor do futebol no Brasil, Charles Miller, descendente de ingleses e escoceses, era um paulistano, nascido no Brás, que aos 9 anos seguiu para a Inglaterra com a finalidade de estudar, e lá aprendeu — e bem — a jogar futebol. No ano de 1894,  retornando de seus estudos na Inglaterra, trouxe na bagagem uma bola de futebol e começou então a catequizar seus companheiros de trabalho e de críquete — altos funcionários da Companhia de Gás, do Banco de Londres e Ferrovia São Paulo Railway, fundando em 1888 o primeiro clube de futebol do Brasil, o São Paulo Athletic, que congregava os britânicos residentes em São Paulo], a primeira cidade a organizá-lo e disseminá-lo em campos oficiais, pelas ruas e pelos terrenos baldios. Principalmente, por causa dos imigrantes europeus, sobretudo ingleses, que — a exemplo do Rio de Janeiro — contribuíram para a  disseminação  dos esportes em geral e para a fundação de clubes esportivos, a princípio de cricket e depois, de futebol.

Na verdade, nenhuma cidade brasileira como São Paulo apresenta tamanha precocidade na introdução do futebol: já no final do século XIX era praticado em clubes, empresas (de capital inglês) e escolas; em 1896, por exemplo, o velódromo da família Prado, na Consolação, foi reformado para abrigar partidas de futebol; em 1902 a cidade organiza o primeiro campeonato de futebol do país — a primeira partida de futebol realizada no Brasil, dentro das regras oficialmente estabelecidas na Inglaterra em 1863, aconteceu na Várzea do Carmo, entre as equipes inglesas São Paulo Railway e The São Paulo Gaz, em 14 de abril de 1895 (jogo ganho pela primeira por 4 x 2); e o primeiro clube de futebol formado essencialmente por brasileiros foi o Mackenzie College, criado em 1898.

Em 1899 são fundados primeiro o S.C. Internacional, e quinze dias depois o S.C. Germânia. Em 1900, pode-se dizer, nasceu a verdadeira organização do futebol paulistano quando chegou, de volta de seus estudos na Suíça, o jovem Antonio Casimiro da Costa, que começou a lutar para a constituição de uma Liga dos clubes já existentes, e pela organização de um campeonato. No mesmo ano deu-se a fundação do Clube Atlético Paulistano; e em 1904 apareceu a Associação Atlética das Palmeiras — que até 1915 foi constituída por doutorandos, engenheiros e futuros advogados. Isso porque o futebol era a coqueluche  da mocidade estudiosa de São Paulo, no início do século: quase que se limitava aos estudantes naquele tempo, quase todos filhos de famílias abastadas; a verdadeira diversão domingueira da alta sociedade paulistana, não se compreendia então um acadêmico de direito sem ser integrante de um dos clubes já existentes. A classe dominava abertamente no Paulistano, Palmeiras, Mackenzie e Internacional: muitos rapazes, grandes craques do início do século, foram e são homens públicos, cientistas, diplomatas, jurisconsultos e engenheiros famosos: tornaram-se os ídolos máximos dessa geração Rubens Sales e Arthur Friedenreich, este considerado o primeiro craque do futebol brasileiro (e autor do primeiro gol da seleção nacional, em 1914). Em 1920 o futebol já dominava a cidade inteira — memorável entre os fatos esportivos, foi a excursão do Paulistano à Europa em 1925 (que, inclusive, propiciou o poema "E a Europa curvou-se ante o Brasil", de Oswald de Andrade).

Estudiosos sugerem duas hipóteses para tentar explicar a razão pela qual São Paulo — que já contava desde o início com um espaço específico, o velódromo da Consolação — antecede o Rio de Janeiro na adoção do futebol: primeiro, o Rio já possuía um esporte de relativa popularidade, o remo, que o futebol somente conseguiu destronar por volta de 1910; segundo, por causa da índole de modernidade paulistana, embrião da metrópole frenética, que naquele momento melhores condições possuía para assimilar inovações, e dentre elas o futebol. E São Paulo foi a primeira cidade a atrair grandes multidões aos campos: de um lado, o futebol, como prática popular de entretenimento, insere-se na própria formação da classe operária paulistana, como elemento de sua cultura; de outro, certamente  o grande número de imigrantes e operários contribuiu para a rápida popularização do futebol na cidade.

Mas um dos proeminentes vetores da popularização do jogo de futebol teria sido resultado direto da intervenção dos patrões, das autoridades, do Poder Público: no Rio, como contraposição à capoeira, já prática proibida; em São Paulo, a emergência e fortalecimento do movimento operário, por volta de 1917, 'revelou' ao governo e aos empresários que a cidade precisava de "um esporte de massas" (sic) como antídoto contra as greves — os operários seriam então 'mandados a jogar futebol', para o que os patrões "deveriam construir grounds". O futebol seria assim um eficiente instrumento 'disciplinador', utilizado e patrocinado pelos industriais "para ordenar os trabalhadores e dinamizar a produção", "um ensinamento de disciplina e de harmonia" — o esporte sendo muito mais uma imposição ou uma  'dádiva', muito menos prazer e desejo e iniciativa de quem o praticava. Ao mesmo tempo, em São Paulo, os campos de futebol se constituíram em importante elemento na caracterização das vilas operárias, que eram "espaços de ordenação": o futebol ajudava a manter o operário  em 'ordem e disciplina, livre do caos e da desordem' e proporcionava aos trabalhadores  'o relaxamento necessário para depois produzirem mais e melhor...'.

Em São Paulo, o Poder Público isentava os campos de impostos, os industriais construíam grounds, e a polícia deixava de reprimir os "rachas" em terrenos baldios,  já era bastante difundida e rotineira a prática do jogo nas várzeas. Naquele ano de 1902 em que os paulistas organizam o primeiro campeonato de futebol no Brasil, surgiram os primeiros campos de várzea, que logo se espalham pelos bairros operários; já em 1908/1910 a várzea paulistana congregava vários e concorridos campeonatos, de forma que São Paulo não é apenas pioneira nacional no futebol 'oficial', mas também (e sobretudo) no 'futebol popular'. Não por acaso, surge em 1910 aquele que, dentre os grandes clubes do futebol brasileiro, foi o primeiro a se formar a partir de uma base popular: o Sport Clube Corinthians Paulista.

Um mais abrangente pano de fundo histórico registra que, pela necessidade de um reordenamento geral de todo o contexto social, o futebol passou a ser considerado como parte do processo modernizador e o desenvolvimento de práticas esportivas considerado uma forma de atenuar as tensões políticas. Caracterizado já nas décadas de 1930/40 como um fenômeno popular e de massa, o futebol, assim como as atividades esportivas em geral, já era visto pelas elites governantes como um componente fundamental a ser atingido numa "cruzada disciplinadora", correspondendo a um movimento cultural e político mais amplo, envolvendo tanto os interesses de disciplina social do Estado quanto a produção de uma identidade nacional (expressa e reforçada, por exemplo, pela participação da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo de 1938 ).

Nacionalismo e autoritarismo constituíam-se em eixos fundamentais na prática política e uma tarefa urgente se impunha: construir a nação brasileira. Para tal, o futebol, com sua extraordinária adesão popular, foi sem dúvida um excepcional instrumento. A relação dos esportes com a identidade da nação tornara-se decisiva, acionando a ideia de uma unidade nacional que tinha a seleção brasileira como uma das instâncias principais de representação simbólica, coincidindo com um projeto de configuração do Estado-nação de Getulio Vargas nas décadas de 1930 e 1940.

Nesse particular, por exemplo, a construção de estádios de futebol passou a constituir prioridade para sua disseminação e arregimentação de massas populares: em abril de 1940 foi aberto ao público, em São Paulo, o Estádio Municipal do Pacaembu, "de linhas tão imponentes quanto harmoniosas, maravilhosa obra coletiva que encarna plenamente a modernidade paulistana", com o qual nasceu uma das principais tradições políticas do futebol brasileiro: a construção generalizada de estádios com recursos públicos.

 

 

Os  intelectuais entram  em  campo

 

Embora por volta de 1905 o futebol ainda fosse desconhecido para a ampla maioria dos brasileiros, em São Paulo já atraía grande interesse popular — tanto que até Monteiro Lobato, então acadêmico de direito, numa carta a Godofredo Rangel, em 11/07/1904, escrevia: "(...) E cá estou de novo em São Paulo, mas ainda atribulado. Mudei-me para um quarto de frente na Rua Araújo 26, com um lampião de rua bem junto à minha janela. Tenho luz de graça. E defronte há uma vizinha janeleira que já piscou. Em vez de namorá-la, meti-me no futebol 'Palmeiras!' Joguei vários dias seguidos e fiquei mais derreado que com as léguas do sertão. Estou cheio de pisaduras e dodóis. Isto deve ser o que na Vida intensa o Th. Roosevelt quer. O futebol empolgou-me de alma e corpo; escrevo crônicas de futebol e jogo. Diz o Tito que é mania e diz-lhe o Raul: 'Jacques, tu es un âne'. Seja como for,  asseguro-te que o futebol apaixona e contunde". O mesmo Lobato de um discurso fervoroso em 1905 após assistir a jogos entre paulistanos e ingleses: "(...) Essa luta tinha para a população de São Paulo um significado moral dez vezes maior do que a eleição para um presidente do Estado (...) O último goal do Paulistano provocou a maior tempestade de aplausos jamais conhecida em São Paulo (...) É desta espécie de homens que precisamos. Menos doutores, menos parasitas, menos bajuladores, e mais struggle-for-life. Mais homens, mais nervos, mais corpúsculos vermelhos, para que um Camilo Castelo Branco não possa repetir que ele tem sangue corrompido nas veias e farinha de mandioca nos ossos".

Apesar disso, não conseguia suscitar grandes paixões que extrapolassem o âmbito esportivo. Intelectuais e escritores — caso de Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, Hilário Tácito — apenas esparsa  e timidamente o registravam em seus escritos: quando muito admitiam e exaltavam a plasticidade do jogo, a elasticidade das jogadas, a empolgação dos que praticam e assistem às partidas. Mais tarde, já pelo final da década de 1910 e início de 1920 em São Paulo dava-se a dedicação documental-historiográfica de Antonio Figueiredo e Leopoldo Santana, um relativo envolvimento de Menotti Del Picchia — registrando-o em poemas, nos roteiros dos dois primeiros filmes do cinema brasileiro sobre futebol, "Alvorada de glória" e "Campeão de futebol", ambos em 1931, e na frase "o Corinthians é um fenômeno sociológico a ser estudado em profundidade" — referências de Cassiano Ricardo, a simpatia de Raul Bopp — em artigo sobre o "élan magnético" que o atraía para o futebol — e sobretudo o 'fervor' de Alcântara Machado — não só pelo famoso conto "Corinthians (2) vs. Palestra(1)", e pela crônica "Notas sobre a visita do Bologna F.C" , mas por uma relação direta com a difusão dos esportes no Brasil, fundador da primeira Liga Atlética Acadêmica do Brasil, entidade poliesportiva — o completo envolvimento de Francisco Rebolo — artista plástico e jogador de futebol, autor de "Jogadores de futebol" (1936), e um dos pioneiros na luta pela incorporação do negro no futebol brasileiro — a motivação de Candido Portinari — em duas séries de trabalhos "Futebol em Brodósqui" (1933) — dos artistas Rodolfo Chambelland ("Menino com bola", 1914), Ismael Nery ("Em caminho do goal", 1917), André Lhote ("Football", 1933), Djanira ("Futebol", 1948), Antônio Gomide ("Futebol no morro", 1959).

O futebol posteriormente encontraria acolhida em muitos contos de João Antonio, Ignácio de Loyolla Brandão; 'receptividade' em escritos de Sergio Milliet, de Sergio Buarque de Holanda, Paulo Emilio Salles Gomes e, especialmente, em dois grandes intelectuais, Anatol Rosenfeld e Vilém Flusser. O alemão Rosenfeld em fins da década de 1930 auto-exilou-se no Brasil devido às perseguições sofridas na Alemanha hitlerista e aqui deu continuidade à sua vasta produção intelectual, escrevendo contos, poemas e crônicas, além de opinar sobre arte, sobre o pensamento europeu, sobre teatro, imprensa, rádio, filosofia, política ,antropologia — e sobre o futebol: no texto "O futebol no Brasil", publicado originalmente em alemão no Anuário do Instituto Hans Staden em 1956, comenta sua introdução no país, e preocupou-se em analisar os elementos socioeconômicos do futebol, da ascensão das massas aos componentes típicos dos jogos de bola — o torcedor, o ídolo, o clube, explicando ao público germânico que "em terras brasileiras (...) entre os negros, mulatos e brancos pobres, havia um grande número de jogadores de primeira classe, seja porque os ajudava o talento natural, seja porque a 'sucção de subida' e o remoinho das chances do futebol os envolvia e canalizava, seja porque eles não eram estudantes de medicina ou direito e frequentemente não tinham uma profissão, podiam lançar toda a sua paixão no jogo; em suma, porque levavam o jogo a sério e 'não tinham nada a perder'. (...) Dar pontapés numa bola era um ato de emancipação (...)". Flusser, filósofo tcheco, radicado em São Paulo na década de 1940, debruçou-se sobre o futebol por via do tema da alienação, que inclusive intitulou brilhante ensaio no qual contrapõe-se ao  conceito de que o futebol exerceria somente uma função evasiva da realidade, ao contrário, vindo a constituir-se num  elemento, isso sim, de engajamento por ter o futebol extravasado de sua seara original, como esporte e prática esportiva, para praticamente todas escalas — sociais, culturais, antropológicas, sociológicas, políticas, econômicas; chegou a formular o conceito de "um novo homem brasileiro, um homo ludens".

Intelectuais paulistanos, paulistas e migrantes/radicados — como Décio de Almeida Prado, Nicolau Sevcenko, Waldenir Caldas, José Sérgio Leite Lopes, Francisco Costa, Luiz Henrique de Toledo, Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes — que se dispuseram a buscar uma compreensão do futebol construíram uma percepção do esporte como uma ágil e poderosa forma de expressão do caráter nacional; uma codificação positivista da estrutura social brasileira: o indivíduo, valendo-se de características muito peculiares, sobressairia-se a quaisquer empecilhos à sua sobrevivência e/ou ao relacionamento social, e assim alcançaria o sucesso e aceitação coletiva.

O futebol, interpretado sob a ótica da representatividade nacional, era uma forma de se chegar a concepções sobre a brasilidade, colocando-o também no terreno da cultura popular, sob o projeto  de construção de símbolos nacionais, que a música popular e o folclore já haviam tornado possíveis e que, naquele momento, por meio de uma 'brasilidade esportiva', também facultava. Refletiam e retratavam emblematicamente as tradução e  decodificação sofridas pelo futebol ao longo das décadas de 1920, 1930 e 1940, metamorfoseando-se de esporte elitista estrangeiro em esporte nacional-popular.

 

 

Adesão e rejeição entre os  modernistas

 

Relevante observar especificamente o relacionamento dos intelectuais modernistas com o futebol, recebido de modo diametralmente oposto na primeira, na segunda e na terceira fase (assim Afrânio Coutinho caracterizava o ciclo modernista). O fenômeno futebolístico no Brasil dos anos de 1920 passou muito ao largo das preocupações missionárias dos primeiros, o esporte visto como "subproduto de importação, a adoção de mais um artigo de luxo, com sua linguagem integralmente inglesa e seu vestuário britânico desconhecido, provindo de uma matriz europeia transplantada por uma elite anglófila e francófila, ávida por novidades e exotismos, típico da dependência cultural brasileira"; depois, já na década de 1930, o futebol interpretado sob a questão da representatividade nacional, uma forma de se chegar às suas concepções sobre a brasilidade; e no decênio seguinte, ao entrar em cena os regionalistas oriundos do Nordeste, a interpretação modernista colocando o futebol também no terreno da cultura popular, retomando o projeto modernista de construção de símbolos nacionais, que a música popular e o folclore já haviam  tornado possíveis e que, naquele momento, por meio de uma 'brasilidade esportiva', o futebol também facultava. Gilberto Freyre, por exemplo, em consonância com a noção de antropofagia desenvolvida por Oswald de Andrade em seu manifesto de 1928, identificou no futebol um exemplo indubitável da capacidade do brasileiro de transplantar, de assimilar e de reinterpretar os inúmeros produtos que historicamente vinham importados e impingidos da Europa.

O modernismo pareceu à primeira vista lidar com certa cautela e muitas reservas,  quando não, com explícita antipatia, diante do crescente e contagiante processo de popularização de um esporte de origem e teor eminentemente europeus. Mas a tradução e a decodificação sofrida pelo futebol ao longo das décadas de 1920, 1930 e 1940, metamorfoseando-se de esporte elitista estrangeiro em esporte nacional-popular, possibilitou aos escritores modernistas da segunda fase uma paulatina alteração no enfoque do fenômeno, ainda que não de maneira unânime e consensual.

De  Mário de Andrade e Oswald de Andrade o futebol recebeu imediatamente crítica e repúdio — mas em ambos amenizando-se ao longo do tempo, muito mais em Oswald, sem nunca alcançar porém o engajamento empolgado. Mário de Andrade o  via como "uma moda fútil entre tantas que aportam da Europa" em Pauliceia desvairada; "uma praga" em Macunaíma; não deixa de realçar em algumas crônicas a violência e o teor elitista do futebol, permeado de expressões estrangeiras (a la Lima Barreto), embora na crônica "Brasil-Argentina", em 1939, acentue a transformação verificada em torno do futebol, o processo de apropriação pela identidade da nação, chegando a adquirir — em uníssono com a tese de Oswald — um caráter antropofágico, onde se afirmava a capacidade brasileira de deglutição, bem como de assimilação das influências estrangeiras e de sua transformação em expressões genuinamente nacionais.

Oswald de Andrade, por sua vez, referiu-se  com uma  certa simpatia — carregada de  ironia — nos versos do poema "E a Europa curvou-se ante o Brasil" (em que se refere à excursão do Paulistano à Europa em 1925), e em "Bungalow das rosas e dos pontapés", sarcástico poema sobre a violência do futebol;  a rigor, sempre combateu o futebol, como "veículo de alienação", "ópio do povo", inclusive elegendo para esse confronto de ideias (reprisando o espírito de polêmica de Lima Barreto x Coelho Neto)  José Lins do Rego — embora mais  tarde fosse ligar-se a Mario Filho e a Candido Portinari justamente por causa do futebol...

 

 

Indagações e reflexões

 

Impõe-se, de resto, a especulação reflexiva sobre duas instâncias do mesmo núcleo de questão: primeira, por que o futebol em São Paulo, a cidade natal do introdutor do futebol  no Brasil, a cidade onde se fundou o primeiro clube de futebol do País, onde se realizou o primeiro campeonato organizado de futebol, a cidade berço do 'futebol de rua, de terreno baldio', a cidade que produziu o primeiro craque do futebol brasileiro, não teve já em seus primórdios, por parte de seus intelectuais, a mesma acolhida entusiástica como, por exemplo, no Rio de Janeiro? E depois, como avaliar o comportamento dos modernistas — da "primeira, segunda e terceira fases"  — com relação ao futebol? Entende-se que os modernistas da primeira fase tenham visto no futebol, em seu início de implantação no Brasil, um elemento elitista, "burguês e estrangeirista, alheado dos aspectos considerados essenciais e originais da cultura brasileira" — mas por que, depois da avassaladora popularização do futebol, transformado a partir da década de 1930 (o ano de 1938 como claro ponto de inflexão) em 'símbolo de identidade nacional', não se engajaram em sua aceitação, com o entusiasmo esperado, como elemento essencialmente ligado a seus ideais de nacionalidade, ou pelo menos não o encararam devidamente como um instrumento para chegar às suas concepções sobre a brasilidade, a exemplo do que tinham feito ao acolher, por exemplo, o folclore e a música popular? O futebol tinha tudo para cair nas graças também dos modernistas da primeira fase (muito além dos registros de Alcântara, Menotti, Bopp, Cassiano) lado a lado com os da segunda fase (os do Nordeste) e da terceira fase, e mesmo dos 'pós-modernistas' — mas deu-se apenas na efêmera simpatia de ordem plástico-estética de Mário de Andrade e na contestação de cunho ideológico de Oswald de Andrade.

 

 

E por  que o futebol empolga e 'joga' tanto com paixões e ódios?

 

São muitas as razões, sob várias órbitas, porque o futebol, no Brasil, empolga  e apaixona tanto, a todas as camadas sociais, todas as raças, todas as escalas culturais — de trabalhadores a intelectuais, de operários a literatos, etc. — a todas as esferas:

§         por ser extremamente lúdico (até criando um "homo ludens" [sic]), por sua plasticidade, que permite e estimula o drible, a ginga, a finta, o 'jogo de cintura', o malabarismo, a malícia, a dança — elementos bem incorporados à 'brasilidade';

§         pelo contato físico direto, combate corporal, choque — a excitar o desejo de conquista, poder, dominação, inclusive com conotações sexuais [sic]: a violência que acompanha o futebol, quase que a ele inerente — claro, uma distorção do espírito que deve  primar a prática de esportes — está ligada a esses conceitos e elementos;

§         por resgatar e  expressar a katarsis, individual e coletiva — almejada e idealizada pela filosofia grega e outras; ou mesmo de 'anestesiamento' (como preconizado pelos patrões e empresários em São Paulo no início do século XX) e torpor;

§         por permitir, como nenhum outro esporte, a ocorrência de resultados imprevistos (em que o time mais fraco em tese vence o mais forte, onde a chamada 'zebra' se faz presente): incerteza, imprevisibilidade, 'mistério', suspense, que guardam nítida — e psicologicamente explicável — relação/ilação com, p. e. o gênero (romance, filme, etc) policial, de suspense (hitchcookniano [sic]), de terror, etc.: quem matou, quem é o assassino?, que time vai vencer?, quem se salvará, quem matará o monstro?, que time sairá classificado, qual será campeão? — etc.;

§         por emblematizar, no caso da seleção brasileira, elementos de identidade nacional, pátria, etc. (como, p.e., se deu e foi incentivado, como política pública, na década de 1930 o Estado Novo, e depois na de 1970, a ditadura militar 64-85);

§         pela necessidade de identificação e aceitação social — e/ou 'familiar' — por meio de um clube ou time (um processo familiar, de pertinência: "preciso pertencer a tal clube para ser aceito").

 

Direta e indiretamente, não há dúvida de que enaltecimentos, louvações, críticas, polêmicas e dissidências, ao longo do tempo, alimentaram um processo que  faria do futebol, como o é hoje, uma verdadeira instituição nacional.

A realidade incontestável é que o futebol continuou — e continua — ao  longo do tempo, sua meteórica ascensão e disseminação entre todas as camadas e estratos, como 'força esportiva', 'força social', 'força cultural'. Esporte mais popular, no Brasil e no mundo, seguiu sua trajetória eletrizando todas as camadas sociais e sensibilizando escritores, artistas e intelectuais.

Persiste o futebol, e assim será ad eternum, sempre provocando prazer e dor, polêmicas e alegrias, brigas, tumultos, conflitos, tristeza, paixões e ódios — nos campos, nos estádios, nos gramados, nas arquibancadas, nos terrenos baldios, nas várzeas,  nos corações e mentes de todo o País.

 

 

Notas

 

1 As atividades relacionadas à exploração mineral e ao comércio despontavam como as que mais despertavam interesse dos capitais ingleses. Não por acaso, as cidades portuárias (Rio de Janeiro, Rio Grande, Buenos Aires, Montevidéu, Valparaiso) e mineiras (Pachuca, Iquique, Coquinto) consolidaram-se como alguns dos mais importantes centros pioneiros de esportes na América do Sul. Assim como o remo, a equitação e o pólo, o futebol foi um típico produto britânico de exportação.

 

2 No Rio de Janeiro, o Rio Cricket Club passou a reunir todos os ingleses e muitos anglo-brasileiros que haviam conhecido  e aprendido o futebol em suas constantes viagens à Inglaterra: um desses jovens educados no exterior e apaixonados por esporte, Oscar Cox, traria, para o Rio de Janeiro, em 1898 a semente da futura "paixão nacional", introduzindo a prática do futebol entre os frequentadores do Rio Cricket Club e depois entre os do Rio Cricket & Athletic Association, de Niterói (RJ). Inicialmente praticado em clubes de cricket como "exercício físico", o futebol herdou desse jogo seu primeiro uniforme: camisa de tecido branca e calça preta cortada na altura dos joelhos. Em 1899, a denominação do Rio Cricket foi mudada para Payssandu Cricket Club*, onde se formou o primeiro time de futebol organizado do Rio de Janeiro e em cujo campo, no dia 1º de agosto de 1901, disputou-se o primeiríssimo "match de jogo bretão" (Payssandu Cricket Club vs. Rio Cricket & Athletic Association) — com mais jogadores em campo do que assistentes. E nos dias 19 e 20 de outubro deste ano realizaram-se, no campo do São Paulo Athletic Club, dois jogos  entre dois times formados por jogadores desses  'clubes de cricket' cariocas e paulistas: foi o primeiro 'Rio x São Paulo' de futebol.

 

* Interessante e curioso lembrar que a denominação "Paissandu" — originalmente Payssandu — deve-se em parte ao fato de o clube, hoje no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, instalar-se a princípio, inclusive com seu campo e estádio de futebol, na Rua Paissandu, no bairro do Flamengo, mas era resultado de um trocadilho, em inglês: "When a club is formed what are the main factors? That it shall pay, not from a money point of view, but as a thriving institution and of great activity. So the device of the Club: 'Pays-and-Do', which explains its amazing sucess in all walks of life" ["Quando um clube é formado, quais são os principais fatores? Que ele deve pagar (pays), não do ponto de vista financeiro, mas sendo uma instituição próspera e de grande atividade. Eis, portanto, o propósito do Club: prosperar e fazer — 'Pays and do' — o que explica seu surpreendente sucesso em todos os caminhos da vida"] , conforme Vitor Iório (2001).

 

3 O advento da República e a chegada do século XX, "o século da modernização e do progresso", como se propalou à época — contendo  em si os movimentos contraditórios da própria modernidade: atraso e estagnação de um lado, civilidade e evolução de outro, de resto, características que a cidade do Rio de Janeiro, recém-elevada a centro político, econômico, administrativo e cultural, apresentava à época — trouxeram novas formas e modos de o escritor se relacionar com a literatura, sob um processo algo 'compulsório' de aburguesamento e 'mundanismo' — de resto, condizentes com o 'espírito geral' que regia o sistema republicano que se pretendia implementar — decorrentes do esvaziamento do filão combatente contra a escravidão e a monarquia. Foi, paradoxalmente, esse processo preconizado pelo novo regime — gerando incremento de vultosos recursos, provocando a modernização da cidade, construindo a imagem de "uma sociedade ilustre e elevada" — que propiciou aos intelectuais malogrados uma espécie de atavio: passaram a ser vistos pela sociedade como "símbolos de ilustração", "expoentes da cultura", permitindo, entre outros aspectos, o desenvolvimento do 'novo jornalismo' — sob a égide do 'mundanismo' — ao qual os literatos se entregaram de corpo e alma.

 

Os intelectuais e literatos, logo integrados ao processo de construção e aceitação dos novos ideais republicanos, suficientemente impregnados do espírito mundano de então, delinearam o movimento literário da chamada belle èpoque carioca, com sua conhecida "geração boêmia", definida por uma produção narcisista, descompromissada, escapista, aristocraticamente (pseudo)refinada, de temática elitista, e com aquela escrita aristocrática, tendo como escritores típicos, entre outros, Olavo Bilac, Coelho Neto, João do Rio, Afrânio Peixoto, Elisio de Carvalho, Figueiredo Pimentel (é dele a conhecida frase "o Rio de Janeiro civiliza-se!"), Medeiros e Albuquerque. Praticava-se um estilo pretensamente sofisticado, a literatura como "o sorriso da sociedade" de que fala  Afrânio Peixoto: "A literatura é o sorriso da sociedade. Quando ela é feliz, a sociedade, o espírito se lhe compraz nas artes e, na arte literária, com ficção e com poesias, as mais graciosas expressões da imaginação (...)".

 

A literatura típica da belle époque, estéril em termos nacionais, coadunada com a própria fachada da época, era uma literatura articulada com o modo de vida das elites urbanas europeizadas, fomentador do consumo, do excesso, da sensualidade, do aristocratismo; de extrema superficialidade e caráter preciosístico, uma coligação de alta sociedade e alta cultura. Assim, os escritores, sob pena de caírem em ostracismo cultural e profissional e financeiro, tiveram de, em maior ou menor grau, se submeter à preferência ou gosto dos leitores da época: a necessidade de se expressaram no mesmo diapasão da cidade contagiada pelos anseios de modernização e marcada pela ânsia do enriquecimento rápido fizeram-lhes adotar, tanto no jornalismo quanto (mormente) na literatura, estilo, linguagem, forma e conteúdo mais superficiais e mesmo descartáveis, adequados ao gosto do consumidor pequeno-burguês formado pela República.

 

 

 

junho, 2010