— Fleming. Paula Fleming.

 

— Que nome bonito, minha linda! Nome e pessoa, aliás... Em que posso servi-la, moça?

 

Pronto, sabia, lá vem esse idiota, mais um. Claro, é homem e acha que esse é seu papel, com essa baboseira meio-troglodita.

 

— Deixe de gracinha, e faça sua função com respeito e seriedade. Preciso desse documento, que tudo indica, só se encontra aqui nesta repartição, já passei por praticamente todas as outras. Pode ver pra mim? É urgente.

 

— É a tal coisa, todos pedem urgência, repetem que é importante, tudo igual. Urgente e importante é resolverem aqui nossa situação, há quatro anos não temos aumento, salário de fome, condições de trabalho precárias, e tendo de atender a todo mundo bem. Coloque-se no meu lugar... Preencha o formulário de requisição, por favor.

 

Falava, falava, mas não desviava os olhos docorpo de Paula, bem formado, as pernas, ah!que pernas bem torneadas, e de quebra que rosto... corpo de Paula, bem formado, as pernas, e que pernas!  Bem torneadas e, de quebra, que rosto...

 

Sim, Paula era uma bela mulher, atraente e sedutora, ainda mais com aqueles olhos verdes e os negros cabelos encaracolados. A Paula poderia se aplicar — ela  sempre se lembrava do comentário do amigo Sérgio Augusto (preciso  voltar a visitá-lo, lembrou-se) com relação a Nastassja Kinski: "com aquele corpo, não precisava daquele rosto, e com aquele rosto pra  que tanto talento?".

 

Bela, sensual, e mais: talentosa, competente, obstinada estudiosa, eficientíssima em tudo que fazia — e não se diga que contrariasse o estereotipado perfil de uma intelectual, uma 'nerd' (muito por ser afinal uma 'cdf', talvez por causa dos óculos de alto grau, que por vezes tinha de usar), escritora, pesquisadora, verdadeira arqueóloga literária, sempre à busca de raridades bibliográficas.

 

Anos de convivência com Mauro, até mais — digamos — íntima, a fizeram garimpeira de preciosidades textuais. Como agora, sob os olhares voluptosos daquele funcionário público, quase que a despindo, sem disfarçar, de alto a baixo. É certo que ela gostava — qual mulher não gosta de sentir-se desejada? — e fomentava isso, com sua sensual picardia e um jeitinho todo especial de seduzir para obter o que queria.

 

— Mas no caso esse documento tem uma importância que o senhor nem imagina e ter acesso a ele é urgente. O senhor, que tanto me elogia, e acho que já me admira, não vai querer que eu saia daqui de mãos abanando e decepcionada com o senhor, que é  tão simpático e dedicado a fazer o melhor para quem precisa, não é mesmo?

 

Embevecido, era a sensação, o estado daquele voraz devorador ocular, e de outros sentidos fisiológicos (que mulher, meu Deus! gataça e cheia de manha, que faço?).

 

Esse cara todo embasbacado podia ser bom para facilitar e agilizar a recolha do documento, mas não sei: de repente, excitado, vai entrar numa de fazer uma troca, o documento pelo meu, digamos, afeto, já conheço o lance (bem feito, culpa sua, com essa mania de charme, não se emenda mesmo, né, Paula? não basta valer-se dos meios protocolares, normais? não, tem que fazer joguinho, seduzir, estimular tentações — não sabe como são os homens, ô idiota? vê se contorna e resolve isso, logo logo).

 

Absorta nos pensamentos, mas sem perder de vista os olhares e gestos do homem, Paula percebeu que ele acionava o computador e acessava alguma coisa, um arquivo talvez, um link, uma entrada. Fingiu-se distraída, consultou o celular — ah! um SMS, é de Vera, grande amiga, ainda ontem à noite, jantamos juntas e falei dessa minha incursão aqui, e agora ela me envia — "Vamos ajudar a procurar o documento. Deve ter coisas muito importantes nele". Querida, só você mesmo, sim tem coisas muuuuito importantes, será uma revelação, ou confirmação bombástica em torno do nosso Machado na política, 'quem viver, verá'...

 

Desde que o burocrata em estado de transe sexual e mental aí na minha frente, atrás desse balcão, consultando essa máquina, resolva ser o atendente cioso de seus deveres e desista de ser o donjuán dos cenáculos documentais. Claro que é lugar comum, imagem recorrente, nada de novo nesse enredo — até Kafka, ora ora, o aludiu.

 

— Estou consultando aqui, mas não está fácil localizar. Talvez você tenha de voltar outro dia, preciso de tempo para conseguir isso, vou me empenhar ao máximo, principalmente, pelo prazer de servi-la, minha... (cacete, isso é hora de chegar gente aqui, logo agora?). Pois não, um momentinho, por favor.

 

Esse rapaz que acaba de chegar é bom alvitre, talvez faça o cara aí se tocar. Aliás, rapaz bem simpático, bonito mesmo, corpo meio sarado, e até que tem um ar inteligente. Entabulo conversa? Quem sabe...? (você não tem jeito mesmo, Messalina, Mata-Hari de meia-tigela).

 

— Bem, como ia dizendo, você me dá seu telefone, que aviso quando tiver o documento.

 

Pronto, é o que ele queria. E você também, sua burra, quando vai aprender com essa mania de sedução? (fácil e cômodo dizer que é 'técnica, estratégia de pesquisa', que aprendi com o Mauro, também um metido a sedutor, a jogar charme, a fazer gracinhas e gracejos, no caso, com as mulheres, claro. É essa a sina do pesquisador, como a do jornalista, como comecei: utilizar esses expedientes, não de todo reprováveis, para 'dobrar' as fontes?

 

Falando no bruxo, ei-lo que me procura ao celular — "mensagem urgente: Mauro" — mas não atendo: sei que está ansioso, doido pra saber se consegui o documento, compete comigo, bem sei — e eu com ele, claro. Primeiro, resolver de vez a situação aqui com esse burocrata — e, óbvio, saber quem é e qual é a desse moço recém-chegado:  professor, pesquisador, que tipo de profissional, quem é ele?

 

— Não, não posso esperar, tem de ser hoje e só hoje. Agora ou nunca, tenho de trabalhar nesse documento e enviar logo logo um relatório pra Paris, a uma universidade. Se não for hoje, desisto e perco o trabalho, inclusive, a possibilidade de ter de vir aqui, à cata de outro documento decorrente deste, conforme o parecer da universidade de lá (é a de Rennes do Massa: nem pensar em detalhar pro brucutu aí).

 

Espero tê-lo convencido, o conquistador de araque vai se tocar que nunca mais me verá, se me der o documento agora haverá uma segunda chance... E enquanto isso, exercito um pouco de charme pra cima do cara aí parado, estático, ou será extático, com minha pessoa? As mãos nos bolsos, cara de pastel à espera de o funcionário-excitado atendê-lo, ou de poder falar comigo, já adivinho (e almejo, óbvio)...

 

Entre o ar perplexo atrás do balcão, certamente impactado por minha resposta, e o ar paspalho aqui a meu lado, fatalmente traído pelo sensorial corpóreo, tiro da sacola o batom discreto e passo-o pelos lábios em suaves e lentos movimentos (e olhando de soslaio para um e para outro, dois patetas à frente da 'femme fatale'). Ah, no celular tem SMS do Mauro, só podia ser — "PF, como está o lance aí? vai conseguir? saudades... MR".

 

— Bem, já que é tão importante e urgente assim, moça, vou ver o que dá pra fazer, me aguarde, por favor (droga, será que vou ter de desistir e esperar a outra vez, de preferência, sem um chato por perto? paciência, perde-se uma batalha, mas não se perde a guerra, já dizia o Manezinho de Madureira, saudades daquele cara lá do "meu amado subúrbio", li isso no Lima Barreto). O senhor, aí, o que deseja?

 

— Ah, eu? (o cara tá mesmo embasbacado, afinal ninguém me resiste, eheh... eta, mulher danada! idiota, isso é que sou...). Recolher documentos da Fazenda sobre a economia brasileira na década de 1850, tenho a relação deles comigo. Não preciso de todos, mas pelo menos desses aqui marcados, principalmente as portarias do ministro (ih, a gata parece ter se interessado: por mim ou pelo pedido?).

 

— Gozado, a bela moça me pede documento que é da década de 1860, o senhor me vem com 1850: estão combinados? Um se junta ao outro, são do mesmo projeto? Vocês trabalham juntos? (se deu bem, hein, cara!). Preencha o formulário de requisição, por favor, senhor. Bem, vou lá dentro verificar para um e para o outro, veremos o que consigo (queria mesmo é reter mais a gata por aqui, ou fazê-la voltar). Sabem perfeitamente que vão levar a reprodução, né? E que reproduzir demora, ainda mais se os documentos forem velhos, e são, pela data, o que exige cuidados especiais.

 

Ei, o que é isso? Mas esse período, e a grande expansão econômica de então, que o Sérgio Buarque descreveu tão bem no Raizes do Brasil e o Caio Prado reafirmou no História Econômica do Brasil, é justamente um dos atuais estudos do Mauro prum livro (como trabalha o bruxo!), que até me chamou para participar... Quem é esse moço, afinal? Hum, vou apurar (como jornalista que fui)...

 

— Pelo visto, companheiro, parecem ser dados importantes, não? Desculpe perguntar, não me leve a mal (a voz singela ajuda a quebrar resistências), qual seu ramo de pesquisa?

 

— Bem, nem tanto, mas um pouco, sim, importantes: apenas preciso saber certos elementos de política fiscal da época, que faz parte de um projeto de finanças públicas para a Ebape, da FGV (creio ter me saído bem, não posso abrir o jogo, mesmo pra essa beleza de mulher, que agora me sorri com um pouco de malícia, acho). Sou economista e professor. Raphael Lambertti.

 

— Fleming, Paula Fleming.

 

No aperto de mãos sinto a mão firme dele, embora delicada: me vem até certo frenesi, que é isso, Paula? Te cuida, caraca.

 

Que sensação gostosa ao tocar a mão dela, quase não resisto, me excito, para com isso, rapaz....

 

Entre suspiros, pelo pensamento nela lá fora, e a frustração do plano fracassado, o funcionário espantava-se com a consulta que lhe revelava quem era Paula.

 

— Esse Google mostra muita coisa, ou tudo mesmo, maravilha. Mas essa moça, tão gataça, tão gostosa, é uma verdadeira sumidade, caramba! Olha só o que está aqui, tem formação lá no estrangeiro e trabalhos feitos em várias universidades do exterior, além de projetos em entidades de Portugal, da França e da Alemanha! Isso só aumenta meu desejo, ao mesmo tempo em que me dá um certo medo, é muita areia pro meu caminhão.

 

Tenho de extrair o máximo desse moço, será verdade o que ele diz? Aliás, como me preocupo com o Mauro e ele, às vezes, quase sempre, não reconhece, acha que me formou, moldou e aprimorou e, por isso, me dá uma esnobada. Mas eu tô ali, oh, tenho paixão por ele, paixão intelectual, fique claro (mas rola também de outro tipo, todo mundo sabe, tantas foram nossas vivências, tempos de estudos, trabalho e... amor).

 

Mas agora, sem deleites de passado, o presente me instiga. Com esse cara aí e sua pesquisa, além de ter de continuar a administrar o burocrata, que, imagino, antes dos documentos, aposto que foi fuçar pra saber quem sou eu, e se viu alguma coisa deve, no mínimo, estar tonto e meio deslumbrado, e deve também querer ver se descobre email, telefone, endereço — ih, estaria eu perdida!

 

— O interesse maior, na verdade, é pela dívida pública federal de então, que já se formava e pautaria — ainda pauta — historicamente a existência econômica do Brasil (acho que continuo me saindo bem, com esse discursinho que tem certo fundamento e consistência, sem revelar a essência da verdade de tudo. A qualquer hora ele vai me ligar, ou mandar um SMS, vou ter de informar, mas sem essa belezoca aí perceber... e tenho também de saber dela que documentos de 1860 são esses, o problema é que não tô conseguindo controlar minha excitação, fico descentrado e meio bocó).

 

— O que você procura trata de quê? Deve ser muito importante, por sua ansiedade, e pela seriedade profissional que você mostra ter, de pessoa inteligente e preparada (e com esse visual de 'miss-sexy das pesquisas inglórias'... nossa, que pernas, que cruzada e descruzada genial!).

 

A gata é fera, olha só essa boazuda, uma intelectual de primeira, tô naquela de que uma mulher bonita e gostosa não pode ser tão cabeça assim, já me disseram que isso é preconceito, e preconceito burro, completamente fora de lógica. Mas o que fazer, é minha cabeça, não sou inteligente mesmo, não tive lá muita instrução, só o suficiente para entrar no serviço público, graças a Deus, e isso é que me segura e leva minha vida (emprego público! bah, grrr! com esse salário de merda, aumento só de vez em quando, e nesse lugar respirando poeira, e tendo de atender a cada um, cada chato, cada feiúra — diferente dessa belezoca aí — e cada pastelzinho como o moço que tá lá fora, no mínimo, na paquera da gracinha. Por falar nisso, tenho de saber também quem é, rapidinho, pra destrinchar logo esses documentos que eles querem, primeiro o dela, óbvio...).

 

Não posso também abrir o jogo, não sou burra, fica aí jogando essa conversa mole pra cima de mim, e pensa que caio nessa? Tô meio interessada em você, não só por sua pesquisa, mas por ter um jeito bem atraente, meio sensual. E quem garante que tá me dizendo a verdade? (aprendi a desconfiar e depurar certos depoimentos, mesmo os dados nos documentos e fontes de nossas pesquisas. O carinha aí é simpático, pode ser sincero, mas não me convenceu de todo, e agora quer extrair de mim algo mais...).

 

— É sobre a culinária no Brasil imperial. Justo na década de 1860 intensificou-se, nesse campo também, a influência da França e da cultura francesa, incluída a culinária, na sociedade por aqui. (Ih, lembro agora que o Mauro ainda tem de lapidar o estudo de "Machado e os Franceses", e tocar as outras obrinhas, o pessoal lá da Universidade do Porto tá esperando, minha prezada Profa. Malato outro dia me indagou sobre isso. Aliás, quando vou voltar a Portugal, terrinha de meus amores? Saudades de meus 4 anos lá, naqueles dois projetos fascinantes; saudades carinhosas também do Gonçalo Ferreira, aquela gracinha do Alentejo, e sua mansarda aconchegante, seu jeito machão...).

 

— ...

 

— Estou agora dedicada a examinar esse 'francesismo' no Brasil do século XIX (consegui convencê-lo? Acho que sim. Pra distrair sua atenção e concentração, vou fazer outro exercício — invencível, ah, 'a dor e a delícia de ser mulher' — agora de olhar, com aquele famoso olhar 38, malicioso e paralisante...).

 

Vejo aqui no formulário que ele preencheu, que o moço também é fera, eta doutorzinho gabaritado e, como ela, tem 42 anos, não é que também esteve lá fora, pós-graduação, PhD, estágio? — epa, que estagião esse nos States. É historiador elogiado, professor, autor de três livros, um em inglês.... Isso é que é. Peraí, se a gata souber disso vai ficar na dele, não dá pra competir (também para pra pensar, oh Geraldo, tu pensa que é o quê? o máximo que conseguirá é ficar sonhando com ela... por falar na beldade, tenho de ver logo esse bendito documento que ela quer, deixe ver no formulário pra não errar. não posso errar, senão me dano...).

 

Ela quer me enlouquecer, agora com esses olhos e esse olhar 'oblíquo e devastador', não bastam as pernas, querida? Num tô aguentando muito não e não consigo me concentrar o suficiente, como resistir, meu Deus? É duro ser homem, valham-me os deuses. Estranho, ou coincidência, em que não acredito: esse lance de influência da França e dos franceses é tema de estudo do Mauro, que tá tocando muito devagar, atolado em tantos outros projetos, o cara é doido mesmo (epa epa, será que ela tá junto com ele nesse projeto? mas ele nunca falou de mulher nenhuma em projeto nenhum — a não ser que... não. não, deixa de paranoia, Rapha, mantenha sua mente arejada, não começa com formulações conspiratórias, justo uma das matérias-primas de teu métier, a história — e eu dizendo a ela ser economista, argh — mas do jeito que o Mauro é sensível à beleza, rrrsss).

 

Tenho certeza de que tá meio desarticulado de pensamento, sem saber bem se acredita e leva a sério isso que lhe disse, se é válido esse tipo de pesquisa, mesmo que o tema mereça — claro que merece, não sei se ele, como economista que diz ser (e se não for? se for por exemplo da área de história, ou de literatura? ei, aí a coisa fica meio complexa, aí mesmo que aumentaria minha desconfiança em relação à verdade de sua pesquisa).

 

Com ela — ah, musa indelével deste cenáculo — eu também tenho de manter a desconfiança e o cuidado de todo pesquisador com depoimentos e declarações alheias, é a regra básica pro nosso meio, senão acaba-se revelando segredos, e lá se vai o ineditismo, o pioneirismo, a descoberta, o resgate de coisas preciosas. Não se descompense, Raphael, mantenha-se íntegro... (mas sensível a essa mulher e seus movimentos, suas palavras, seu odor, sua...).

 

— Seu celular deu um toque aí, deve ser mensagem, Raphael.

 

— Obrigado, Paula. Sim, é mensagem (é o Mauro, já esperava — "RL, como estão as coisas, difíceis ou fáceis? e tá escondendo o lance? MR").

 

— Muito bem, senhores, ou melhor, senhora e senhor! (vou ser bem formal e protocolar, senão espanto a gata e pode me dar problema se o moço achar que não cumpro meu dever de ofício e apresentar queixa à direção: estaria lascado). Verifiquei suas solicitações, a demanda de cada um, recolhi o que me era possível, a mim e à repartição, o que está nos acervos. Prezada jovem, o documento que procura (que coisa, Machado de Assis na política, esse partido aí, ele candidato... hum) aqui está devidamente reproduzido. Caro senhor, entrego-lhe seus documentos, reproduzidos (dezenas, centenas de dados e números, e relatórios, e pareceres, sobre a economia aqui de 1849 a 1861 — quase se junta com o da moça, pela época). Desculpem a demora, mas a reprodução é lenta, bem sabem. Espero tê-los atendido bem e cumprido meu dever, estou aqui pra isso, e esta repartição espera ter cumprido sua função. Se desejarem e precisarem, estaremos às ordens para vos servir, inclusive (principalmente você, gostosinha) a senhora, que pode ser que precise voltar depois do parecer da universidade lá de Paris, como me falou.

 

Hum, ótimo, aqui estão os documentos, vai acabar de vez com esse lance do distanciamento político de Machado, a turma não se convence nem pelo que escreveu nas crônicas e nos contos, ah o Mauro tem de publicar logo isso, não basta os artigos que já lançou por aí. Aliás, tô aqui fazendo isso só pra quebrar um galho — isso não é linguagem acadêmica, Paulinha, de estudioso, pô... — estou em outro projeto, aquele sobre a "Queda que as mulheres têm para os tolos": meu lance com Paris, que citei pro burocrata aí, é sobre isso, pro Massa, e não pra esse. Vamos ver se o Mauro reconhece, desviei-me de meu projeto pra atendê-lo, e sei que ele não espera que consiga o que consegui aqui. Tenho de ligar pra ele e cantar vitória, quero ver a reação... antes tenho de resolver a parada com o moço aí.

 

Muito bom, muito bom, cá está o que preciso, aliás de que precisamos eu e o Mauro, vamos tocar — quer dizer, acho que eu vou tocar sozinho, vai sobrar pra mim — o projeto do grande surto econômico da década de 1850, que tem elementos importantes para aquele estudo do liberalismo social que o Mauro tá afim de fazermos juntos também. Vou dar um jeito de ligar pra ele, e não posso deixar de entabular logo um lance com a gata aí.

 

— Vamos, Raphael? Ao senhor, atencioso e dedicado funcionário, como é seu nome, prezado?...

 

— É Geraldo, Geraldo Neves, às suas ordens, volte logo (tomara...).

 

— Muito obrigada por tudo, voltarei sim, pra ser bem atendida e bem tratada pelo senhor (e lá vai aquele olhar, o boboca, deve estar até tremendo).

 

— Vamos, Paula. De minha parte todos os agradecimentos, Sr. Geraldo. Fui muito bem atendido, até a próxima.

 

No elevador, descendo para o térreo, Paula pensa e avalia se deve sair com Raphael — claro, ela antevê que ele vai propor ir a algum lugar, um café, um lanche, vai vir até com ideia de jantar mais tarde, etc., faz parte do script (certo que o carinha me despertou a curiosidade, ele em si e o projeto dele, tenho de procurar saber tudo, usar de meus 'métodos femininos' pra arrancar o possível, 'eu gosto de ser mulher", lalarilalá).

 

Olhando de soslaio para ela — algo desconfortável no elevador, que tem mais duas pessoas — Raphael planeja o que lhe parece o corolário da empreitada: obtidos os documentos, obter a gata (pena essa gente toda aqui no elevador, mas lá embaixo lanço o "vamos tomar um café", quem sabe lanchar, ou tchantchantchantchan mais tarde jantar, tô a fim dela, vai firme cara...).

 

Mas todo cuidado é pouco, pra não abrir o jogo e revelar a verdade de meu projeto e dessa pesquisa, por isso, tenho de pensar muito, usar de toda a minha intuição e razão, Paula, não dá bobeira... (tenho mesmo é de ligar pro Mauro, e quem sabe ir lá falar com ele e entregar os documentos. Ou não? Valorizo um pouco, deixo passar o tempo, levo amanhã, só pra sentir o clima, e a sensação dele — jogar é comigo mesmo...).

 

Pensando bem, preciso tomar cuidado, caso se dê a continuação desse convívio, de não revelar nada do verdadeiro propósito do projeto e dessa pesquisa, ela é sedutora demais, pode me envolver, aliás já faz isso, acabo abrindo o jogo (antes, tenho de avisar ao Mauro, que, acho, está ansioso, na verdade, nunca se sabe, porque ele disfarça e fica, às vezes, meio blasé...).

 

Poderia até envolvê-lo facilmente em minha teia, levando com ele um papo meio acadêmico, falando de pesquisa, interessada em saber de seu trabalho, suas atividades, projetos, emendaria com considerações sobre a economia brasileira, deixaria ele falar e falar, poderia aí escapar algum indício ou informação, reforçaria os olhares, tocaria em sua mão meio sem querer, e coisa e tal (por falar em envolver, onde estará Ricardo? Preciso reencontra-lo, "alô amor, saudades?", ele tem elementos importantes, pra mim, sobre Alencar...). Mas não, não, te segura malandra, pode ser um risco e pôr em risco o plano, com consequências sérias, acho (tô certa, Mauro?). É isso, fica pra próxima, dou a ele meu email, e pronto.

 

Seria elementar, dear Raphael, entabularia um papo meio acadêmico, falando de pesquisa, interessado em saber de seu trabalho, suas atividades, projetos, emendaria com considerações sobre a cultura brasileira, ela gostaria, não falha. E iria envolvendo, e coisa e tal (por falar em envolver, onde estará Bianca? também não a procurei mais, ela até que tinha informações importantes pra mim sobre Nabuco...). Pensa bem, Raphael, usa da racionalidade que tanto elogiam em você, pode ser até que ela esteja a fim, me seduziu lá em cima o tempo todo, e com uma mulher assim vai ser quase impossível resistir. Não, não, não, por maior que seja meu desejo, paro por aqui, dou meu telefone e até à próxima (não sou tolo, como aqueles a quem as mulheres do século passado, até hoje em parte, preferiam, já revelava mestre Machado. O Mauro, aliás, me disse que vai trabalhar nisso, falta-lhe tempo e gente pra auxiliar, vou ver se lhe indico alguém, de preferência uma mulher...).

 

— Já sei que você ia me propor um café, acertei, Raphael? Ou um lanche, um papo mais, digamos, profundo, né? (tolos, tolos, são os homens, nós sacamos tudo, e antes não sei como é que as mulheres no século XIX os preferiam, relatava e ironizava Machado. Preciso tocar e muito esse projeto, vou ter de ir a Paris, Montmartre, aqui me tens de volta (vou conversar mais com a Vera, esteve lá há pouco, vai me atualizar).

 

— Sabe, até que pensei nisso, sei de um ótimo lugar, nele poderíamos até falar de culinária, bem a propósito desse seu projeto, não? Mas tenho de levar os documentos pro diretor do departamento de economia da PUC (embuste: vou lá no Mauro, deve estar no ap. do Leblon, à espera dos documentos, ansioso...), ele quer logo começar a examiná-los e até trabalhar noite adentro.

 

— Até que eu gostaria, mas também não posso, tenho um compromisso lá no Grajaú (engodo: acho que vou ao Mauro, quer dizer, se eu decidir levar agora o documento, ou fazer suspense...), e quero logo cedo amanhã debruçar-me nesse documento pro meu projeto.

 

— Podia até te dar uma carona, Paula, estou de carro, você está? Mas vamos pra lugares opostos na cidade. Meu e-mail e telefone, me contata, ok? Foi um prazer que você nem imagina conhecê-la, e desejo todo sucesso. Continue assim, simpática com os outros e dedicada às pesquisas.

 

Merci, estou no meu carro. Toma meu e-mail e o endereço de um bloguinho em que me distraio lançando abobrinhas (como quase todos aliás, nesse mundo...). Gostei muito de conhecer você, ótimo te encontrar nessa mesma seara de pesquisas, tomara que a gente se reencontre pela aí, que você seja muito bem-sucedido, parece-me um profissional muito competente.

 

Ah, Geraldo, Geraldo, que mulher! E pode ser até que me engane, ou delire, mas ela jogou um olhar muito especial pra você, será que agradei mesmo à gata? Como vou conseguir esperar e sonhar que ela volte? Não vou aguentar, não, não, vou escavar, fuçar, e descobrir onde ela trabalha, se dá aulas, deve estar ligada a uma faculdade, deve sim. Paula Fleming, Dra. Paula Fleming, professora, pesquisadora, escritora —  vou descobrir!

 

— Até mais, Raphael (beijinhos só na face, cheri, mas toco de leve nos cantos de sua boca... eheh). Vou ao toilete (lá dentro, ligo pro Mauro...),e depois pegar a sacola ali na recepção. Au revoir.

 

— Espero revê-la, Paula (epa, tentei, não deu, ficamos só na beirinha, mas o suficiente pra me excitar, ai ai...). Também vou ao banheiro (e falar com o Mauro, lá...) e depois pegar a mochila no balcão. S'il you later...

 

É assim mesmo, na vida e na ficção, comenta Mauro com seus neurônios, diante do laptop, já deduzindo e induzindo o que ocorria lá fora com os dois. Enredos se formam, tramas se esboçam, roteiros se engendram, clímax e enlaces se anunciam, mas no fim nada sucede, tudo se imobiliza no mesmo (leitores mais dedicados estão familiarizados com isso, não só nessa contemporaneidade pós-modernista, hum, argh, brrrr!, mas desde Balzac, Proust, Tolstói, Henri James, Machado, Garret, de Maistre, e tantos, até Borges e Cortazar...).

 

Uma obra — ficcional, vale frisar, o romance, por exemplo — "existe em três planos: como o autor o imagina antes de escrevê-lo; depois, quando está escrito; e, por fim, quando o leitor abre o livro. Ao acabar de ler o romance (ou o conto), o leitor termina também de reescrevê-lo à sua maneira porque, afinal, imagina coisas que não conhece nem nunca poderá conhecê-las porque perdidas no tempo". Significativo que me venha à mente agora o que o Prof. Adelto Gonçalves, reportando-se ao escritor catalão Eduardo Mendoza, registrou na resenha que escreveu sobre o livro Leitor real e teoria da recepção: travessias contemporâneas, de Robson Coelho Tinoco, e que, gentilmente, como sempre, me enviou, para meu deleite habitual.

 

Paula e Raphael ainda vão se encontrar, e muito: oportunidades, iniciativas, planos e desejos muito se apresentarão.

 

Paula, oh Paulinha, como és linda, maliciosa, oblíqua e dissimulada, te homenageio com essa imagem de minha musa literária; e inteligente, beirando a genialidade, intelectual obstinada, a workaholic nata, filha de D. Camila, que conheci muito bem, bela e charmosa sempre, mesmo aos 68 anos, quando a vi pela última vez, ela sempre me reportando àquela profecia da lagartixa de Heine, subindo os Apeninos, a que Machado se referia: "dia virá em que as pedras serão plantas, as plantas animais, os animais homens e os homens deuses". Assim permaneceu incólume ao tempo a mãe de Paula.

 

Raphael, querido, de nome de anjo, mas nada angélico ou espiritualizado, muito menos bíblico ou cristão, mas obcecado em refletir sobre a nada utópica, assim também penso, possibilidade de conexão filosófica do 'fides et ratio', da conciliação plena de fé e ciência, de razão e emoção, do 'sense and sensibility' (preciso voltar a ler a Austen), intelectualidade pura e suprema, uma das pessoas mais racionais que já conheci, desde quando apresentado em 1992, pela Anita Novinski, lá na USP, logo nos entrosamos e me auxiliou tanto no São Paulo, a cidade literária, como no estudo sobre Pedro II e o Brasil Imperial e hoje nesse trabalho sobre a economia de 1850, que vai abastecer três projetos, e também está naquele maravilhoso plano, que acalento sobre a linguagem literária brasileira.

 

— Droga, o celular do Mauro ocupado, justo agora! Não faz mal, ligo lá fora, depois de o moço sumir de vista. Vou decidir se levo o documento a ele, ou faço aquele joguinho: acho melhor isso; devo ir pra casa, na Barra, ou sair pela night do Rio, pra espairecer e dar um bordejo?

 

— Fala, Mauro, é Raphael, o quê? Sim, estou sozinho agora, falando com segurança total. Tudo em cima, recolhi o que tinha de recolher, vitória completa, com méritos, não? O projeto avançará a todo vapor, congratulemo-nos, e parabenize-me, amigo, atendi aos seus anseios... Ah, já foi pra casa em Petrópolis, não está no Leblon? E como lhe entrego os documentos? Ei, nada de emoção nem saudação? Claro, você sempre meio distanciado, sempre que pode, vem com esse jeito lacônico....

 

— Ah, celular livre. Oi, amor, sou eu. Hein? Tô, tô sozinha, segurança plena pra falar. Consegui tudo, vitória! Não acreditava, né, não vai me cumprimentar? Vamos festejar?... O quê? Está em casa, em Petrópolis? Mas não ia me esperar no Leblon?... Mas que descaso, tá fazendo jogo, lá vem você com isso... Não quer ver logo os documentos? E como e quando lhe mostro? Só depois de amanhã, no Leblon? Porra, pensei que estivesse ansioso, e doido pra me ver...

 

... E deixei de sair com a gata da Paula, dava até um jeito, com meu talento, pra convencê-la, mesmo com o compromisso que dizia ter: tudo pra preservar o segredo da pesquisa. É... nesses momentos que sinto nitidamente que Mauro não me tem como amigo verdadeiro, como parceiro e companheiro de estudos, projetos, pesquisas — tudo é ficção, me faz, isso sim, de mero personagem!!!

 

Estou pra matar esse cara... E eu, idiota, não saí com o Raphael, pra resguardar o segredo dessa pesquisa, que raiva! Agora mesmo é que vou pra noite carioca, me aguarde, baixo Gávea! Sabe de uma coisa? Nessas horas, vejo claramente que o Mauro, cretinão, não me tem como amiga, até mesmo companheira, como parceira de estudos, pesquisas, projetos — é tudo ficção, me tem como simples personagem!!!

 

 

 

setembro, 2010