[Clique aqui e leia o poema "Cálidas Mineiras em Termas Goiás", de Luiz de Aquino, que originou este artigo] 
 

  

As mineiras são quentes pelo contato com as águas ou as águas são quentes pelo contato com as mineiras? O título nos leva a um quiasmo, esquecida figura de linguagem resgatada na propaganda de "Tostine".

Nas duas primeiras estrofes há predominância  de frases nominais. Essa total ausência de verbos determina o estado contemplativo do emissor. Sereias, expressão que metaforiza as morenas mineiras, torna-se expressão catalisadora, cujas palavras secundárias (louras, morenas, faceiras, etc.) compõem com ela (sereias) toda a atmosfera poética do texto. Além de forte conteúdo expressivo, sereia, no poema, tem significação ampliada, chegando ao campo semântico de elemento universalizante do encantamento do poeta em estado de devaneio, que o aproxima de Ulisses, ao se deixar levar pelo canto da sereia.

O poema é bem pictórico. Os adjetivos lhe dão variados matizes, podendo ser comparado a uma aquarela, cuja paisagem retratada inspirou o artista no passado, dando-lhe voz colorida que ainda hoje soa aos ouvidos e olhos dos que a ouvem e leem,oferecendo  sempre ao receptor o sabor do novo, com os mesmos viço e vigor que teve o texto, à época de sua Gênese.

As Águas Termais de Caldas Novas e suas banhistas, realidades do cenário goiano, foram o "Faça-se a luz" do criador(o poeta), no momento de sua criação (o poema). Alguém já disse que "no túnel do tempo, as palavras da poesia têm a velocidade da luz, iluminando o passado". Certamente foi essa "remota iluminação" que brotou do coração do poeta, quando este se viu diante daquela a(bunda)nte passarela de louras, morenas, sóbrias, faceiras mineiras.

Percebe-se, em todas as palavras, que foram essas "cálidas sereias das águas termais" que brilharam no passado romântico do eu-lírico, refletindo-lhe a luz que provocou a epifania do poeta.

As sensações e emoções do poeta vão mudando  segundo a cadência das a(bunda)ncias anatômicas das sereias (de tetas pequenas e nádegas plenas). De repente (não mais que de repente), dessa paisagem, de início estática pelo excesso de frases nominais, surge uma ação: a carne (tetas e nádegas) se fez verbo e o verbo se fez ação  e a domin(ação) (Comê-las cruas). Daí a angústia do "comprometedor livre arbítrio" (são suas? são minhas?), dúvida esta que figurativiza também a dimensão erótica que se instaurou no poema.

Da incerteza da posse (são suas? são minhas?) nasce também a inquietante angústia sobre o local em que se serviria a ceia (quem sabe a última), expressa pelos versos: "nos clubes, nas ruas, nas piscinas, nos lençóis, à lua". A quinta estrofe estabelece a serenidade do apetite saciado, do clima "pós-sesta" (Em termas piscinas /as vejo meninas... louras vindouras).

Segundo Camões "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança / Todo mundo é composto de mudanças / Tomando sempre novas qualidades". Estes versos camonianos reportam à contraditória mudança que o tempo opera sobre tudo e sobre todos, ficando sugerida a ideia de desconcerto do mundo. O desconcerto operado no interior do poeta nos é transmitido pelas últimas palavras de cada estrofe, todas grafadas entre parênteses, sugerindo algo que deveria ficar apenas subentendido, ou seja, sentimentos e  sensações inconfessáveis, talvez por apresentarem certos laivos de sensualidade que  a civilização judaico cristã nos deixou como fruto proibido, embora saibamos que "crescer implica em multiplicar".

A mesma musa que inspirou o poeta, investiu-lhe toda a energia mental e emocional na elaboração da seiva libidinal do poema, cujas palavras, ao entrarem na engrenagem do fazer poético, dão ao leitor a impressão de que se consumou a união de Eros com a Lira, pois, na "engenharia" social  da alma  e ciência das relações humanas está a necessária catexe libidinal" (Marcuse, Herbert, p.13, 8.ed.).

Abundantes, expressão última da primeira estrofe, revela sensação visual captada pela exposição de fartas e plenas nádegas. Contudo, a expressão espácio-temporal "além-horizonte" trouxe ao poeta a certeza da transitoriedade daquele cenário, cuja fugaz abundância se comprova pela palavra "visitante" (passageiro). Na terceira estrofe, a sensação gustativa (é comê-las cruas) reflete a fúria incontrolável do  apetite sexual, seguida da inquietação advinda da traição ao possuidor da coisa possuída (são suas?) para, a seguir, o eu-lírico assumir de vez a posse do objeto dos seus desejos (Gatinhas. São minhas?)

O verbo comer em "é comê-las cruas" nos leva também ao sentido lato da palavra, além de resgatar a arte autóctone de Oswald de Andrade com seu manifesto Antropofágico de 1928. "Só a Antropofagia nos une. Socialmente.  Economicamente. Filosoficamente".

Ainda na esteira do antropofagismo "comer as gatinhas que eram suas e agora são minhas"  faz jus a outra expressão do citado manifesto Antropofágico: "Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do Antropófago".

As águas Termais de Caldas Novas equivalem às águas do rio Aquelou, mãe das sereias que têm Calíope por pai. Segundo a lenda, as sereias  atraiam os marinheiros com seus cantos harmoniosos e mágicos. Muitos de tais marinheiros perderam a própria vida para ouvi-las. Ao nosso poeta porém, não interessam as sereias da Sicília, seu interesse único eram as sereias das Minas Gerais — prefiro as mineiras, serenas sereias.

 

 

 

dezembro, 2010

 

 

 

 

Jô Sampaio [Josefa Martins Lopes Sampaio]. Graduada em Letras, especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira Contemporânea, mestra em Literatura e Crítica literária, Professora aposentada e docente do Ensino Superior na Universidade Estadual de Goiás (EUG).