©beto candia
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Minha dívida de gratidão para com o escritor Monteiro Lobato é eterna, e eu não teria nenhuma Chave do Tamanho que abrisse as portas da compreensão, e aferisse toda a influência que a leitura de suas obras infantis produziu em meu espírito infantil, ávido e curioso.

Esse homem, nascido no findar do século XIX, em 18 de abril de 1882, em Taubaté, São Paulo, bacharel em Direito, hábil desenhista, promotor público, fazendeiro, empresário fez a minha cabeça e agradeço. De leitora de Lobato à descoberta de outros e outros autores, foi um passo; para a produção de textos, idem.

Pelas mãos escreventes de José Renato Bento Monteiro Lobato viajei em companhia de Narizinho, Pedrinho, Rabicó, Tia Anastácia, Dona Benta, Visconde de Sabugosa e, principalmente, estive atônita com a figura espetacular de Emília, verdadeiramente alter ego do autor, encarnação ficcional de toda a sua irreverência, perspicácia e acuidade crítica mental.

Nas narrativas do Sítio do Picapau Amarelo, descobri a felicidade que pode haver na companhia de um livro e o encantamento da ficção produzida por um mestre. Aos meus olhos de pequena leitora, tudo foi verdade naquela fantasia; e a verdade toda se espelhava ali, uma vez que sentia como se as histórias estivessem sendo escritas para mim, atendendo a meus mais recônditos desejos. Como foi bom! Certamente, repito o que milhares de brasileiros poderiam dizer: Monteiro Lobato é o maior escritor para crianças do Brasil, e um dos maiores do mundo!

Entre os leitores de Lobato, cito alguém do calibre de Clarice Lispector, que retrata um momento de deleite e de angústia como leitora, no conto "Felicidade Clandestina", um dos mais conhecidos e admirados da autora. Nele, a menina clariciana narra o episódio de desejo exatamente pelo livro Reinações de Narizinho, objeto cobiçado e, a princípio, cruelmente negado.

Felizmente, não foi meu caso, que cedo tive a sorte de possuir a coleção completa do escritor, joia rara que me acompanhou e que continua à disposição para ser compartilhada. Todas as reinações infantis de Monteiro Lobato conduziram os meus passos de leitora para um diálogo simultâneo entre a tradição do ocidente letrado, a tradição da oralidade no Brasil, e a modernidade; entre os rodopios do Saci, a mula-sem-cabeça, o Jeca Tatu, a novidade das histórias em quadrinhos e a ainda adolescente arte do cinema.

Segundo Luiz Costa Pereira Jr.1, Lobato "foi contra a corrente dos textos para criança de seu tempo, marcados pela linguagem complicada e pelos personagens estrangeiros em ambientes estranhos à cultura brasileira". Para a professora da Unicamp Marisa Lajolo2, uma especialista em Monteiro Lobato , entre as suas características mais importantes, destaca-se o fato de o escritor ter sido um homem muito conectado com a realidade que o cercava.

A mitologia grega — Hércules, e todos os deuses e personagens do Olimpo, o mundo clássico da Hélade, Troia, o cavalo alado Pégaso; as fábulas de Esopo, de La Fontaine, tudo me foi apresentado pelas vozes e visão peculiar dos personagens de Lobato, entre eles, Quindim, o inusitado e prosaico rinoceronte, administrado pela desfaçatez da boneca Emília. Com Lobato, aprendi que o universo é composição ilimitada entre o interior e o exterior de nossos pensamentos, entre passado, presente e o direcionamento ao futuro.

Com Lobato, aprendi um olhar crítico sobre o mundo; sobre um certo modo de considerar a brasilidade; sobre um certo tipo de ensino escolar e um certo modo de considerar a língua portuguesa. Sobre isso, Pereira Jr. explica que Lobato "solta o verbo contra a aprendizagem tradicional do idioma, ainda em voga em muitas escolas mais de 74 anos depois. E encara o ensino de português como o momento em que, mais do que ser apresentado a conceitos e nomenclaturas descontextualizadas dos textos em que os exemplos gramaticais foram retirados, vivencia-se o conhecimento, num divertido passeio".

Lobato3 compreendia a língua como produto popular; que a variedade linguística português brasileiro "nasceu no dia em que Cabral pisou no Brasil". "A variedade de coisas novas que tivemos necessidade de expressar, num mundo novo como o Brasil, forçou e força no povo um surto copiosíssimo de vocábulos", explica ele. "Eles brotam por aí como cogumelos durante a chuva. Lutam entre si. Os fracos, os inúteis, caem, como frutos temporões, bichados antes de maduros. Os bons, os expressivos e necessários, vencem e ficam na língua. A princípio, a língua falada".

A obra de Lobato para adultos, na maior parte, é o resultado da reunião de artigos escritos para jornais ou revistas. Comprometido com as grandes causas de seu tempo, engajou-se em campanhas por saúde, defesa do meio ambiente, reforma agrária e petróleo, entre outros temas que continuam atuais. Ele arrebatava o público com artigos instigantes, que hoje, vistos de longe, constituem um precioso retrato de época, um painel socioeconômico, político e cultural do período. Dono de estilo conciso e vigoroso, com forte dose de ironia, utilizava uma linguagem clara e objetiva, compreensível ao grande público. Lobato revelou o mundo rural, então ignorado pelos escritores de gabinete que ele tanto criticava. "A nossa literatura é fabricada nas cidades", dizia, "por sujeitos que não penetram nos campos de medo dos carrapatos".

Como empresário, segundo Roberto Pompeu de Toledo4, Lobato foi o "mais interessante, imaginativo e audaz editor que o Brasil conhecera". Que, após compreender que sem petróleo e sem ferro um país não poderia desabrochar para a era industrial, lançou-se a maiores empreitadas, tornou-se "o apóstolo obcecado do investimento em siderurgia e da pesquisa de petróleo no Brasil". Mas isso contrariaria interesses de grupos — inclusive do Estado —, que tudo fizeram para derrotá-lo. Assim, em 1941, Lobato passou três meses preso, por efeito de suas denúncias contra a política petrolífera do governo e críticas ao regime varguista, e depois disso, faliu. Para Toledo, era "um raro intelectual que metia a mão na massa" e, ao mesmo tempo em que não tinha vergonha de ser homem de negócios, tinha vergonha de aceitar uma sinecura do Estado. Chegou a ser convidado por Getúlio Vargas para diversas missões, inclusive a chefia de um ministério da Propaganda. Não aceitou".

Compreender Lobato, agora que a infância é lembrança, é ver que são inúmeras as facetas da complexa personalidade do gênio. Homem de grandes paixões e grandes arrebatamentos, segundo seu biógrafo, Edgard Cavalheiros5, havia em Lobato um "endiabrado saci". Meu prezado Monteiro Lobato faleceu a 4 de julho de 1948, aos 66 anos. O "endiabrado saci" viverá para sempre!

 

 

 

Notas

 

 

1 PEREIRA JR. Luiz Costa. Atual. Revista Língua Portuguesa. Edição nº 27, ano III, janeiro de 2008.


2 FILHO, Manuel Alves. Obra organizada por Marisa Lajolo conquista o Prêmio Jabuti. Portal Unicamp. Acesso em: 25/02/2010.


3 LOBATO, O dicionário brasileiro. In: LOBATO, Monteiro. A onda verde e o presidente negro. São Paulo: Brasiliense, 1955. 6.ed. Obras Completas de Monteiro Lobato. 1ª Série. Vol.5. p.101.


4 TOLEDO, Roberto Pompeu de. O Presidente Negro. Revista Piauí, nº 25, ano 3, outubro de 2008.


5 Apud TOLEDO, Roberto Pompeu de. O Presidente Negro. Revista Piauí, nº 25, ano 3, outubro de 2008.

 

 

 

junho, 2010

 

 
 
 
 
France Gripp [de Oliveira] (Governador Valadares/MG). Formada em Letras, interessou-se pela literatura, colaborando com crônicas para os jornais de sua cidade, e participando da edição do periódico cultural "Poet'Arte". Professora de Letras, mestre em Teoria Literária pela UFMG, leciona Língua Portuguesa e Produção de Textos na PUC Minas, em Belo Horizonte, onde vive. Publicou Eu que me destilo (1994) e Vinte lições (Dimensão, 1998). Letrista, é parceira de Basti de Mattos no CD Luanaluz (2002). Tem poemas, contos e crônicas publicadas nas coletâneas A arte do professor e Palavra de mestre, (SINPRO/MG, 1996/1997/1999), Saboreando palavras (SESC/MG, 2006), Terças Poéticas jardins internos (2006), Antologia ME 18/Mulheres Emergentes (2007) e Antologia Poesia do Brasil (RGS, 2008). Participa da coleção didática de língua portuguesa Tudo da trama/tudo dá trama (Dimensão, 2000), e obteve o 2º lugar no 4º Concurso Internacional Mulheres Emergentes (2002). Tem publicado regularmente no "Jornal Aldrava", Mariana/MG, e realizou a exposição "Poesia e Forma", com a participação do design gráfico Roberto Marques, no Parque Municipal Renné Giannetti, em Belo Horizonte.
 
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