"... Com o povo aprendi tudo quanto sei, dele me alimentei e, se meus são os defeitos da obra realizada, do povo são as qualidades porventura nela existentes. Porque, se uma virtude possui, foi a de me acercar do povo, de misturar-me com ele, viver sua vida, integrar-me em sua realidade. Quem não quiser ouvir pode ir embora, minha fala é simples e sem pretensão (...)". (Jorge Amado, em Os Pastores da Noite)

 

Para os experts em literatura de um modo geral, estamos entre Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, como os maiores e melhores escritores brasileiros de todos os tempos. Mas, de literatos ditos populares mesmo no mundo inteiro, acrescentamos a esses nomes os de Érico Veríssimo, de Porto Alegre, e principalmente Jorge Amado da Bahia. Jorge Amado com sua literatura que fica entre crítica social, um lado belamente exótico, e mesmo o lado bat-macumba do norte-nordeste brasileiro, mais a sensibilidade louca de suas personagens arrancadas de becos, bordéis, bares e ruas. Foi esse Brasil popularesco que Jorge Amado ventilou nas plagas do mundo inteiro, porque, certamente é o escritor brasileiro mais lido de todos os tempos, e, ainda certamente infinitamente melhor do que Paulo Coelho e até Luis Fernando Veríssimo. Enquanto Érico Veríssimo fica entre O Tempo e o Vento, e Incidente em Antares, como duas obras-primas, do nível de Dom Casmurro, Macunaíma, Vidas Secas e Grandes Sertões:Veredas, Jorge Amado, com mais de trinta livros, pontua no cenário bibliográfico mundial com clássicos extremamente difundidos e populares, como Dona Flor e seus Dois Maridos, Os Subterrâneos da Liberdade, Morte de Quincas Berro D'Água, Seara Vermelha, Gabriela Cravo e Canela, Capitães de Areia, Tenda dos Milagres, Teresa Batista Cansada de Guerra, Tieta do Agreste, entre outros. Todos eles, vendendo o Brasil moreno-tropical, sensual, exótico, terras do sem fim com suas plagas de muito sol, latifúndios de cacau, praias e becos, os cultos afros, as crendices, as prosopopeias que cativaram, mais, seduziram leitores de centenas de países do mundo, muitos deles virando temas musicais, minisséries, novelas e até mesmo filmes, inclusive em Hollywood.

A biografia de Jorge Amado é bem extensa e muito bem retrata seu potencial criativo sem igual, e que num resumo imediato podemos relatar assim, em rápidas pinceladas: 

 

Jorge Amado, o maior representante do ciclo do romance baiano, nasceu na Bahia, em 1912. É o romancista brasileiro mais lido no Brasil e no mundo. Com livros traduzidos para diversos idiomas, suas obras refletem a realidade dos temas, as paisagens, dramas humanos, secas e migrações, êxodos, sensualidade e rituais afros. Escritor desde a adolescência, Jorge Amado segue o estilo literário do romance moderno. Em seus livros existe o domínio do físico sobre a consciência. Suas personagens geralmente são plantadores de cacau, pescadores, artesãos e gente que vive próximo ao cais, em Salvador, Capital da Bahia.  O estilo do autor também é conhecido como "romances da terra" e seus livros possuem uma linguagem agradável e de fácil compreensão. Suas obras literárias conquistaram não só os falantes da língua portuguesa como de outros idiomas: inglês, espanhol, francês, italiano, alemão, etc.  O literato Jorge Amado morreu em Salvador (Bahia), no dia 6 de agosto de 2001, poucos dias antes de completar 89 anos de idade. Em 1994 viu sua obra ser reconhecida com o Prêmio Camões, o chamado prêmio Nobel da língua portuguesa. É também o autor mais adaptado da televisão brasileira, verdadeiros sucessos televisivos como Tieta, Gabriela e Tereza Batista são criações suas, além de Dona Flor e Seus Dois Maridos. A obra literária de Jorge Amado conheceu inúmeras adaptações para cinema, teatro e televisão, além de ter sido tema de várias escolas de samba do Brasil, o que o consagrou. Seus livros foram os mais  traduzidos do Brasil, existindo também exemplares em braile e em fitas gravadas para cegos. Mesmo dizendo-se materialista, era simpatizante do candomblé, religião na qual exercia o posto de honra de Obá de Xangô no Ilê Opó Afonjá, do qual muito se orgulhava. Amigos que Jorge Amado prezava no candomblé, são as mães-de-santo Mãe Aninha, Mãe Senhora, Mãe Menininha do Gantois, Mãe Stella de Oxóssi, Olga de Alaketu, Mãe Mirinha do Portão, Mãe Cleusa Millet e Mãe Carmem. Com Rachel de Queiroz, Jorge Amado é representante do modernismo regionalista, a segunda geração do modernismo.

 

Segundo Dorine Cerqueira (Professora de literatura, jornalista e ensaísta), "O estilo de Jorge Amado caracteriza-se por dois modos opostos: a crueza da linguagem e o tratamento poético do tema. O duramente realista e o de clima de poema, pois sua força poética está principalmente na conjugação do tema com a concepção das coisas populares que vivem animicamente em seus romances. Para Miécio Táti, o autor corre o risco de vir a jogar "artisticamente" com o sofrimento alheio, de tal forma que a simpatia do leitor seja levada a interessar-se mais pela "expressão poética do fato", do que pelo "próprio fato". O escritor confessa contudo que continua comprometido com o povo e que seus livros "buscam servir à transformação da sociedade".

Em sua obra, Jorge Amado dá ênfase aos problemas sociais. É considerado um escritor de grande talento narrativo e de grande força sociopoética — "Um contador de estórias" — como ele mesmo se achava. Sua linguagem é rica de elementos populares e folclóricos, e de grande conteúdo humano, além de narrativa descontraída e oralista. O escritor é um dos representantes do regionalismo brasileiro, e seus romances documentam a passagem de uma sociedade agrária para a industrial, e ainda trazem a preocupação com os problemas coletivos, ambientando suas narrativas no quadro rural e urbano da Bahia, sua terra. Sua obra, por essas e outras faces, é importante para a compreensão de nossa realidade social e histórica. Jorge Amado escreveu sobre a infância abandonada e delinquente, meninos de rua (Capitães da Areia); a miséria do cais do porto da cidade (Mar Morto); os retirantes da seca, o cangaço (Seara Vermelha); a exploração do trabalhador urbano e rural (do cacau) e o coronelismo latifundiário (Cacau; Terras do Sem fim; São Jorge dos Ilhéus; Gabriela, Cravo e Canela; Tocaia Grande); denunciou a discriminação racial, abordando a vida do povo, a participação política, cultural e social das camadas humanas (Tenda dos Milagres, Pastores da Noite), entre outros temas que aborda com talento e preciosidade.  O autor fixa ainda toda a atmosfera de encantamento e mistério da Cidade do Salvador, da Bahia de Todos os Santos: os orixás, os pais de santo, as rezas em nagô para Iemanjá, Oxóssi, Oxalá, os negros e as populações operárias, os saveiristas do recôncavo baiano, os pardieiros do velho Bairro da Sé, com seus malandros e suas prostitutas. Enfim, o mundo mágico da Bahia. Num processo intertextual, Jorge Amado entrelaça a fantasia na realidade da vida do povo baiano, e todas as crendices parecem se transformar numa força superior às teorias, força atávica, mitos que a inteligência do escritor assimila, como personagens ativos e presentes. Ele interpenetra, às vezes, o mito e a realidade, criando um clima sobrenatural e grandemente poético, como em Mar Morto: Iemanjá, Oxóssi, os demais orixás e mães-de-santo; em Jubiabá; nos despachos, em todos os feiticeiros, no poder milagroso das ervas, no olho da ruindade, nos cabelos perfumados da princesa de Aiocá, em Iansã, Exu e Ogum, no lobisomem, na caipora e nas mulas-de-padre, na macumba e no próprio candomblé, e na poesia da cidade negra, numa bonita e preciosa intertextualidade.

Talvez o  mais "Amado" Jorge dos brasileiros de todos os tempos, segundo Edoardo Pacelli que dele muito bem diz: "Do encontro de mundos tão diferentes como o do índio, o do africano e o latino, temperado por óleo de dendê baiano, nasce o estilo de Jorge Amado. A novidade e a diversidade deste grande autor brasileiro são tão luxuriosas que alcançam um estado de espírito tão longe do estado recorrente de triunfo, orgulho e exaltação intelectual, característico da literatura ocidental. Com Jorge Amado as letras brasileiras enriqueceram a humanidade que experimentou e reviveu sua obra de arte, num gozo mental que acompanha o ato da cognição, da assimilação dos temas apresentados, tão novos e diferentes, tão profundamente misteriosos e místicos que provocam o desejo de viver numa vida mais intensa e radiante, moral e espiritualmente. A prosa de Amado domina os leitores pela tendência deles a identificar-se e submeter-se voluptuosamente. Conseguindo criar um mundo próprio — completo em si, com configurações convincentes e atmosfera espiritual, sem se esquecer das problemáticas sociais — Jorge Amado trata seus heróis e heroínas de modo plástico, dando sensações e vitalidades novas, deixando o leitor se identificar com uma energia maior. Descrevendo os estados de espírito e tensões, alegrias e tristezas, aspirações e decepções de seus personagens, a literatura de Jorge Amado e, com ela, a literatura brasileira, tornou-se universalmente conhecida e reconhecida, desvelando ao mundo a riqueza do patrimônio cultural do Brasil e da Bahia, a grandeza de seus escritores, a maravilha do mundo encantado do interior, a luta para a libertação dos oprimidos e dos sofridos; das minorias que são maiorias rejeitadas e ignoradas, afastadas pelo ambiente em que vivem.  Mais que crítica social, pode-se chamar, as páginas literárias de Jorge Amado de construção social. Poder-se dizer que Jorge Amado representa o desvão da noite da cultura brasileira esquecida e ignorada, tornando-se o nascer da aurora de uma nova literatura, de um mundo, até então, perdido; recuperando uma geografia de tristezas e alegrias, um mundo de lembranças e realidades, ensinando aos leigos a aprender as paisagens, a escutar os ventos, a regressar a um universo sofrido e arcaico mas que, igualmente, reluz beleza".

Tadeu Luciano Siqueira Andrade (UNEB) de Jorge Amado diz: "A obra de Jorge Amado não descreve apenas a vida do povo humilde da Bahia, mas, acima de tudo,  uma revelação de classes sociais marginalizadas e com falares estigmatizados. Como disse Antonio Cândido, a obra de Jorge Amado é 'uma ida ao povo'". E nessa ida, encontramos o falar dos pais e mães-de-santo em cultos aos orixás, quando sofriam a perseguição imposta pela polícia nos terreiros de candomblé. O falar dos grevistas, exigindo respeito e dignidade humana, liderados por Pedro Bala. O falar dos Capitães da areia que, mais tarde, ressoaria na Candelária e em outras partes do Brasil. O falar das prostitutas, vítimas da sociedade preconceituosa, em que a mulher ainda é explorada. O falar dos saveiros, tangidos pelas águas da Baía de Todos os Santos, despedindo-se das mulheres no cais. O falar de muitas Gabrielas, Terezas e Tietas que, com guerra, conquistaram os seus espaços no contexto social. O falar autoritário dos coronéis em Ilhéus. O falar sangrento na disputa pelas terras do cacau. O falar do negro discriminado que aqui chegou e constituiu grande parte de nosso patrimônio cultural. Todos os falares da gente simples e humilde que, vivendo de forma trágica, sem esperança e numa sociedade opressora constituiu os personagens vivos e atuantes. É assim que se constitui a obra de Jorge Amado: escritor do povo, muito bem mostra o que povo tem bom, inspirado pelo povo e escrevendo para o povo.

Autor dos mais respeitados na literatura brasileira, desde os anos trinta, Jorge Amado é sucesso de crítica e de público. Sua obra explora os mais diferentes aspectos da vida baiana: a posse violenta da terra, com as consequências sociais, como ocorreu na colonização da zona cacaueira do Sul da Bahia, está imortalizada em Cacau; São Jorge de Ilhéus; Gabriela, Cravo e Canela e Terras do Sem Fim. Os tipos folclóricos das ladeiras de Salvador estão presentes em Tenda dos Milagres, Capitães da Areia, Mar Morto. A literatura engajada, comprometida com a ideologia política do autor é presente em Os Subterrâneos da Liberdade, O Cavaleiro da Esperança. Os perfis de mulheres extraordinárias que comovem e seduzem estão em Tieta do Agreste, Dona Flor e seus Dois Maridos, Gabriela e muitas outras. Há um proposital descompromisso do autor com o registro formal da chamada norma culta; para se entender melhor o comentário que se faz constantemente sobre seu "estilo". Jorge Amado já se autoproclamou "um baiano romântico e sensual". É o que a crítica costuma rotular de contador de estórias. Não segue, intencionalmente, o rigor da técnica de construção literária e nem dá a mínima para as normas gramaticais e ortográficas. Incorpora à língua escrita, termos e expressões típicas da língua oral e de sua Bahia idolatrada. Seus textos saborosos transpiram a trópico, a calor, a vida. Suas histórias são tramadas sobre o povo simples e rude, numa língua que esse povo fala e entende. Centra-se na fixação dos tipos marginalizados para, por intermédio deles, analisar e criticar toda a sociedade amoral. A ação dá-se, basicamente, em Salvador e gira em torno da boêmia das cercanias do cais do porto.

Jorge Amado é isso: Vox Populi. A voz do povo retrazida da rua com suas sequelas sociais, seus enredos de amargurados entre boêmios, entre seus guetos e rituais, suas dívidas sociais impagas, uma rica cultura afro-tupi-luso. Ele retratou o povo que bem conheceu de cheiro e floração, olhar astuto. A miscigenação humana no letral, na carga de personagens que cheiram a povo, trazem as mazelas políticas e sócio-culturais na alma dessa humanagente. Não é a toa que muito bem ganhou o mundo, da Ásia à Rússia, levando a oralidade brasileira em literatura com feição de gente de qualquer lugar, carregando nossas características geográficas, de colonização de exploração, da escravatura, das casagrandes e senzalas, passando pelo carnaval, cantilenas de terreiros, mais a gente com a cara de todo ser, de marinheiros e trabalhadores explorados de ermos, uma visão comunitária do micro-espaço bahiano que ele levou ao mundo em obras modernas, populares, gigantes.

Amado pelo povo, leitores em potencial, disfarçadamente meio que "odiado" por parte da inteligentszia burguesa midiática de pseudos letrados e acadêmicos de ocasião, chulos críticos reacionários que não avaliam Jorge Amado num contexto lógico-sequencial histórico, mas num tendencioso prisma marxista que na verdade referendava sua obra como verdadeira, realista, social, contundente, pontuada de ironia, humor, musicalidade, mais tambores, cheiros, credos, o canto do povo, de seu tempo, de seu meio, de seu lugar, de sua aldeia, origem, terra-chã, terra-brasilis, brasileirinhos e brasileiríssimos.

A cara de Jorge Amado é a cara do Brasil. Nada mais do que um autor-identidade desses cafundós praieiros até os sertões gerais em um Brasil S/A que ele divulgou, difundiu, retratou, delatou, mostrou a cara deslavada de mestiços, quase brancos, quase pretos, terras sangrentas dessas nossa tantas áfricas utópicas que Caetano Veloso mais a frente cantou. O Haiti sempre foi aqui?. Jorge Amado é a cara do Brasil em suas páginas de rostos, de ritos, de paisagens e de personagens cheirando a chão. Um dos maiores escritores brasileiro de todos os tempos, o mais popular. No entanto, tem essa cara do Brasil. Trouxe o Brasil com essa cara para as lides do sul, do planeta terra da história litero-cultural do mundo moderno.

 

 

 

 

 

junho, 2010

 

 

 

 

 

Silas Corrêa Leite. Autor de Campo de trigo com corvos, Contos, Editora Design, Finalista do Prêmio Telecom Portugal. Teórico da Educação, Jornalista Comunitário, Conselheiro em Direitos Humanos (SP). Edita o blogue Porta-Lapsos.
 
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