o poeta

 

Entre o abismo e as vítreas armas dos versos

O poeta ergue a taça do mundo sobre a mesa do silêncio

Atrai a rotação das nuvens lendo em seus lábios um nome raso

No soluço aberto de uma criança como arca onde sal e sol confinam

Estende a mão sobre a mesa liminarmente móvel e líquida

Então ressurge o diamante do derradeiro verso que se despenhou

Ou sobre a mesa caiu mortalmente

O poeta encontra o extreme fogo branco e é como se os pulsos

Lhe procurassem outro lugar à mesa: o da criança de si chegando

Diametralmente desarmada

Então de novo surpreende no sorriso da página uma pálpebra

Que o segue em segredo como um hóspede habitual nele selando

A exilada ebulição do entusiasmo

Que solenemente arrasta de uma ponta à outra da mesa abrindo-se

Agora ao mundo inteiro como istmo de fagulha fresca

 

 

 

 

 

 

intervalo

 

Estende-se a estrofe

Com ela a carne

          O mundo

                    A cerda da erva

 

Entre a palavra e o pulso

É todo o lugar submergido

 

A boca entre a árvore balindo

É térreo inflorescer

Incerta dança

Da distância ígnea

 

 

 

 

 

 

catábase de cinco pontas

 

Desce

Às entranhas das estrelas

Bebe delas a luz

Desde os lisos tornozelos da terra

           Distribui-a depois

           Por cada ferida suja submersa

 

Desce

À límpida lentidão das lágrimas

Para levantares no vento

O veneno do mundo

           Para lavares nos leitos

          O sonâmbulo sangue de sódio 

 

 

Desce

Busca a baixíssima faca

Que é mansa galáxia do medo

Dos mil sóis represos

Retalhando-nos em embustes de espelho

            Poro a poro

            À boca da boca

 

Desce

Para assim (tão assim)

Recuperares na raiz do alento

A decisão

 

D

e

s

c

e

Rumo ao aéreo abismo

Em razão da rótula

Em flor fracturada

 

 

 

 

 

 

recente azul no meu peito

 

Recente azul que me endureces o peito

Olhas-me como se fosses um olho do céu

Uma pedra de Deus ou uma lasca de chuva a tombar

De altar vazio.

 

Corre o azul pelas artérias

Iguais a rios que se rompem

Até à nua traqueia da noite

Em que nenhum trombo de luz

Em que nenhuma embolia de relâmpagos

 

Imóvel o meu peito a retroceder no azul

Até à nuca de neve dos templos coagulados

Apenas para inspirar o sabor da transparência

O doce calafrio das cartilagens por milhões e milhões

De eras corroídas Assim o meu peito é um paralelo

Altar esvaído ao redor do sangue endurecido

 

Recente azul mineral

Solidão azul de Deus como esqueleto de pestanas

Nome nenhum

No meu peito endurece o fôlego em pomares pétreos

Chuva dentro da chuva

 

Se me olhasse o olho do céu seria de bronze o meu peito

Em que nenhuma estátua

Em que nenhum fogo requeimado

 

 

 

 

 

 

palavra

 

Levantas-te de noite no espelho do sonho

No cálido branco do corpo

No furor do desejo

 

Cais como pedra sobre a página

Trazes as costuras da insónia

As feridas que rompem as azuis rendas dos ossos

Empunhas as turquesas do som

Cruzas um nocturno de Chopin

Até não restar da música senão o rumor dos versos

Arrastando o corpo pela almofada da casa

 

Iludes a sede no leite azedo da língua

Enrolas-te atónita como boca de devorar sismos 

Atravessas os fantasmas ajustando-os à mão

 

Ergues-te com o movimento fluído de uma taça

Com o desentendimento das fundas águas

Com o rigor do cristal de quartzo a contar o tempo estremecido

 

Trocas o ouro na cintura das luas por um punhado de cinzas

Por um cacto liberto e limpo a navegar o lábio insurrecto

Entre a língua e a língua

 

 

 

 

 

 

nu        

 

Deixa-me dizer-te a nudez de mim mesmo

Se apenas sonho quando o quarto se encontra

Com a derrocada dos mares

É porque não encontro a sombra de uma ilha

E nu naufrago sonhando estrofes esfoladas

De amor de ondas de lábios

E quando enterro um rio de imaginar a morte

É para afundar-me como ébrio barco fendido

Vencido pelos tumultos da lentíssima génese do tédio

 

Deixa-me dizer-te a nudez do meu nome

O exílio do meu rosto à beira de um fruto

Que pudesse saborear como um caminho

E nu desato as cordas que tão bem cingiriam

Os ângulos lisos e estreitos do meu pescoço

Porque quero correr livre e leve para o mar

Certeiro ao Fevereiro meu corpo quer sublinhar

A nudez no gélido azul entre a pele arruinada

E as escamas dos peixes

Em redor do meu ressequido sangue

Do meu mais nu sangue

Em morte de distante primavera

 

 

 

 

 

 

bosque de buscar-me

 

Este é o bosque frondoso na minha boca

Que quase me pede para fechar os olhos.

Que me circunda

Como sebe de chamas e cal

 

Este é o bosque, igual a brisa, em que

Apascenta a minha mão paciente

Se sumida do contorno carnal das folhas

Se ausente da fala das árvores

Se rasurada dos atalhos da sede

E então desapercebidos dedos

Silentes e súbitos

 

Este é o bosque

Com uma frescura de saliva

 

Encostam-se sílabas onde à janela

Range o sol verde e líquido

Ontem só delírio duro

 

 

 

 

 

 

rotação

 

 

Veloz o dia rodará

Chegarão as luas nos crepúsculos desiguais

Que se prolongam até à noite dos mares

Em que sumidas as linhas de uma praia

Dobam as conchas da memória

 

Sentar-me-ei no horizonte do poema

Bebê-lo-ei como se bebesse o dia

Rasgarei papéis para que continuem os

Crepúsculos por onde agora numa chávena

Fendida entram as luas e os ocasos de um olhar

Que estremece o real extinto de poesia

 

Veloz o dia rodará

Com ele o meu corpo voltando-se do avesso

Forçando a permanência do vento do fogo

Do horizonte a conjugar-se com as palavras

Mas palavra alguma entreabrirá o sol atado

Ao rebordo da sombra nem o que resta do

Abismo onde desamparados tombam os ecos

Do sentido.

 

Por fim a noite caiu

O dia rodou sob a distância

E eu regresso ao princípio ao precipício:

Sento-me no lugar das trevas

                                        (horizonte do poema)

Bebo na pele branca da página

                                        (como se bebesse o dia)

Rasgo os papéis que margeiam a rotação

                                        (embora continuem os crepúsculos)

Pela chávena as luas entram e pousam nos lábios

                                        (e nos ocasos de um olhar)

E agora instruo-me para as pedras tornadas o banquete da noite

                                          (mastigo o real extinto de poesia).

 

 

 

 

 

 

na língua uma palavra

 

No ar do tempo

No zénite do espaço

A palavra lambe uma pedra

Um pássaro

Um coração

Um sol

Acaricia as ínfimas fracções do sensível

Para abrir no corpo um lábio matriz

Um lábio na língua diferencial de cada lábio

 

Então a pedra voa como pássaro

O pássaro voga em pleno coração

O sol é pedra é pássaro é coração

 

No sangue do universo fervilha

O breve som de um beijo

A percutir a génese incomensurável da imanência

— O verbo trepa as águas na direcção do amor

A sede rói a carne que prolifera nos estratos da terra

A vida pensa-se a vida sente-se dentro da vida —

 

Então a palavra avermelha-se

E voa

E avança na sua senda indomada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

em Delfos ardo

 

Sabe a resina a lua a flor 

É minha esta noite como livro

No fogo aberto da vida que há

 

Na minha vida.

Leio-te e folheio os brancos anjos

Do esquecimento. Adivinho-te

Os errantes astros como armas

 

Rutilantes.

No inicio da página a noite principia

Tão rente aos dedos às chamas luminescentes

Dos rostos nocturnais e sorridentes.

Página a página estou em Delfos

 

Na morosa moradia dos mortais.

Fogueiras e fogueiras estremecem o papel

E no meu peito perdura o livro pisando

As cinzas do sono.

Correm meus olhos pela noite mais ávidos

 

Que as brancas garças entretecidas de água

Ao redor das letras.

A noite descobre-me nu como uma lua

 

A cintilar igual a um coração de criança

E mais nu e mais nu nesta noite neste livro

Nesta luz de estar vivo resumo o rumor

Da voz da epifania das estrelas e ardo 

 

(imagem ©frieda)

 

 

 

 

 

Luís Filipe Fonseca Pereira. Licenciado e pós-graduado em filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; pós-graduado em teorias da criação literária contemporâneas; mestre em teoria da literatura. Tem vários textos (poesia, contos, ensaios, recensões críticas) publicados em antologias e em revistas (casos da Revista Textos & Pretextos e Revista Umbigo). Em 2009, publicou o seu primeiro livro de poesia: A tela do mundo. É autor do blogue Intertextualidades: Estou vivo e escrevo sol.