DIA DE JOGO

 

 

Quase hora do almoço. José desce as escadas da pequena casa, ainda de cuecas e camiseta velha, seu pijama de sempre, meio sonado, o cabelo atrapalhado, parecia de uma bela ressaca, era apenas fadiga arrastada — trabalha como motorista particular para um renomado doutor, e os sábados eram como tempestades pesadas transbordantes. Ficou ao pé da escada. Na cozinha, Mariana, ainda de calcinha e regata colada, seu pijama de ontem, lava a louça esquecida da noite passada. Ele assiste, enquanto acorda. Gostosa, pensou. A calcinha enfiada na bunda: o bom dia que ele não esperava, e o amargo da manhã diminuído. Se aproxima da mulher, absorta no tédio dominical, que fingia, por puro charme, não o ter percebido. O corpo quente de José encontra o dela: encocha. Uma das mãos, precisa e ligeira, agarrou aquela polpa saborosa. E o sopro morno no ouvido era o bom dia que ela sempre esperava.

— Dormiu bem, preguicinha — já se abrindo aos carinhos do sonolento marido.

— Dia duro ontem.

— Não só o dia — percebeu na mão seu homem não mais adormecido, que com os dedos  afastou sua calcinha, e comeu com vontade, de pé, ali mesmo, em frente à pia a torneira aberta e a louça, mais uma vez, esquecida.

— Bom dia — satisfeito, e o domingo desperto. Ela apenas sorriu, fechou a torneira, as mãos no pano de prato e alcança um cigarro. José sentado numa das duas cadeiras da minúscula mesa de jantar — para eles mesa de comer, inclusive um ao outro —, assiste, o canto da boca sacana, a mulher desfilar seminua pela cozinha na busca por fogo.

— Fogo? — a sacanagem agora subia as sobrancelhas. Ela faz que sim com a cabeça. — Vinte minutinhos e resolvo seu problema. Mariana sorri, quieta, e se dirige ao fogão elétrico — presente da tia Celeste. Quando se abaixa para tocar o cigarro ainda nos lábios na chama do fogão, ele se anima.

— Vinte minutos que nada. Ela levanta o corpo, mas não sem antes provocar o marido: ajeita a calcinha, arrebitando nas pontinhas dos pés. — Nem dez  — comemorou, e o beijo com a fome da manhã.

Com o cigarro nos lábios, Mariana volta ao domingo de fato: louça suja na pia e a certeza de que seria esquecida, pelo menos por duas horas, ou mais, depende do resultado da partida — quando o time dele perde, o azedo da segunda—feira chega mais cedo.

Dia de jogo. E em dia de jogo ele não trabalha — tudo combinando com o patrão, que não relutou em atender o pedido de seu funcionário predileto, companheiro de cores.

— Vocês jogam hoje, não é? — dizia vocês, pois José se considera parte daquilo, parte do time, parte do jogo.

— Um timico de nada. Na nossa casa. Vitória certa.

— Rá! Explicado o bom humor logo cedo — e uma pontinha de ciúmes.

— O jogo, sim — chegou nela, mais uma vez. — E essa bundinha delícia — e mordiscou a bundinha delícia, de joelhos.

— Vai se ajeitar — escorregando para manter um copo ensaboado nas mãos, e afasta o corpo dos beliscadas dos dentes ariscos. E José na escada, para cima, cantarolando o hino de sua paixão. E ela fecha a torneira, e apaga o cigarro, divertida com a alegria entusiasmada do menino.

De banho tomado, e já trajado com o manto, avisa que vai comprar cerveja. Mariana nem precisa dizer que sim, e segue para o chuveiro. Depois de quase uma hora ele volta. O almoço pronto. Comem num quase silêncio. Ele, apressado, como se mastigar veloz adiantasse o relógio. Terminam e, dessa vez, José se oferece para lavar a louça. E, enquanto lavava, a mulher retribuiu. Depois de fumar outro cigarro, ao lado do ex—fumante marido, que se aproveitava de cada suspiro de fumaça, se aproxima e, sem dizer nada, com a voz, pois os olhos e o corpo falavam travessos, abaixa suas calças e, ali, "Bom dia", o devora num vaivém devagar. A louça, mais uma vez, e até amanhã, abandonada.

Três da tarde. José na quarta ou quinta cerveja, impaciente. Mariana no terceiro capítulo do  novo livro, imersa. A televisão — presente do tio Juarez — ainda desligada — jurava não ter superstições de torcedor, "acreditar não acredito", mas só ligava a TV com uns quinze minutos para início do jogo, "mas é bom garantir, se perdermos a culpa não é minha".

Quase quatro. A sexta cerveja, o quarto capítulo. Hora de ligar. Dedo no controle, e nada. "Tudo bem, deve ser a pilha". Dedo no aparelho, e nada. "Tudo bem, deve ser a tomada". Um gole só e seca a cerveja. E afasta o móvel improvisado de tábuas velhas — presente de ninguém — que sustenta o televisor, para tentar funcionar. Fim do capítulo. Ela desce as escadas, e percebe o marido quase desaparecido entre farpas e fios. Esqueceu que na noite passada a TV pifou. Seria a primeira coisa que contaria a ele pela manhã, mas o gozo faz esquecer.

— Parou de funcionar — quase murcha, prevendo a reação. José num susto em sua frente, arregalado, um desespero surpreso. — Mas ontem mesmo já liguei para a assistência. Mesmo a atitude precavida da mulher, não acalmou a chuva que ameaçava. E não disse mais, com a voz, e os olhos nublados de José em uma tristeza furiosa gritavam e se faziam entender.

— Tudo bem, vou ligar mais uma vez — e ela entendeu. E ele, os pés mal—humorados, subiu a escada, de bico.

Cinco para as quatro. Lá de cima, uma esperança besta e menos nervosa, mais um clamor.

— O homem do conserto não vem? Ela não responde. Com apenas três passos largos José desce a escada de sete degraus, quase ofegante, quase crente.

— Então? — a mulher devolve o telefone ao gancho.

— Dia de jogo. A esposa dele me disse que em dia de jogo ele não trabalha — e toda quietinha e miúda, no rosto um guarda—chuva incapaz de proteger do estrondo que desaguaria. José, sem reação, vai à geladeira, pega mais uma cerveja, alcança o maço de cigarros de Mariana de cima da mesinha e começa a caminhar à porta da frente da casa — a única que leva ao lado de fora. E, antes de sair, vira indignado, a razão na ponta do dedo espichado.

— Dia de jogo é o caralho — e foi para o bar.

 

 

 

 

 

 

TEMPORÁRIO

 

 

Ele era bem maior que eu, em tamanho inclusive. Trazia na cara a dureza do lado de fora, as sujeiras de uma vida que nem posso imaginar, isso não é para tipos como eu. Chegou assim, nos braços Dela fingindo coitado, de corajosas feridas: comovente, não fosse patético. Em poucas horas  um rei, le souverain, e as minhas coisas não eram mais assim tão minhas, "Deixa ele, Tobias. Você nem liga para essas velharias". As minhas velharias! Os meus cantos na casa! — e ainda queria tomar os cantos, insolente.

Ela derretia em cuidados gelatinosos ao novato, desconfio até que escolheu um nome,  prefiro chamá-lo Temporário, uma pulga coça-roça-roça-coça, e se foi — o tempo traria o passado de volta, tão logo ou não. O que eu não esperava era a lambuja, sem que eu precisasse planejar ou esperar por demais a oportunidade do retorno: eu ao topo, ele às ruas.

Viver em casa, num pequeno mundo cercado de paredes e vontades alheias não é para qualquer um, é preciso determinação e uma esperteza, às vezes dissimulada, que não há sarjeta que ensine.

Seu comportamento não poderia ser diferente, eu, talvez ele, via que não estava à altura — não trato aqui de preconceito, não venham com noções torpes, é apenas a vida, e o que ela ensina, e seus personagens e histórias.

Parecia fácil demais — paciência, era o que podia esperar de um adversário tão previsível e curto, tadinho —, e a atitude rueira do Temporário veio antes do esperado e planejado e ZUM!, avancei: de pronto e com a cabeçada certeira afastei o maloqueiro numa coçada, e logo corri para os braços Dele, para saborear o triunfo e me proteger de qualquer contra-ataque irracional — há de se jogar com a inteligência, mesmo que limitada e questionável, meu caro.

Tudo de volta, a normalidade restituída: as minhas velharias esquecidas nos meus cantos, e o tédio das pequenas coisas de estar longe das ruas aqui do lado de dentro.

Adeus, Temporário. Deixo tudo agora, e vou para o meu canto, me lamber o saco.

 

 

 

 

 

 

TRÊS MINUTOS DO PRÓDIGO

 

 

"Tendo ele gastado tudo, houve naquela

terra uma grande fome, e começou

a padecer necessidades".

Lucas 15:14 — Bíblia Sagrada

 

 

Enquanto a água esquenta, e logo vai arder, penso em minha mãe. A última vez que a encontrei lembro sua voz do outro lado do telefone, "Seu pai morreu", toda encolhida o som de cansaço e desconsolo. E mesmo depois não a vi. Me vejo esquecido, numa ilha minha ilha, e sei que para ela não sou, não é assim, ela sempre me diz, e diz sempre as mesmas coisas, eu escuto.

Os braços cruzados assisto ao calor na água, preciso fumar. O cigarro ajuda a cabeça, estraga o pulmão, paciência. Mamãe, não a chamo assim desde o dez anos talvez, agora é a lembrança. Posso até imaginar a velhinha, de joelhos no chão rezando suas orações diárias com tanto apego e o resto firme de fé. A resignação abala as pessoas, e a solidão. Posso até lembrar sua voz automática, dizia coisas para mim, dizia pérolas para o meu coração como se fosse um terreno fértil uma terra boa e não a lama dos porcos. Talvez não fosse, talvez não seja. Ela sempre diz a bíblia, e sempre, eu es-.

A água passa a ferver, arde. E a brasa do cigarro acende, e eu trago. Acredita ainda no seu Deus, acredita ainda no seu Filho. E sabe só crer, acredita e mais nada, esperando o único de seu ventre retornar, como uma profecia. 

Um lugar para bater as cinzas, serve aqui. As primeiras bolhinhas na água me levam a devaneios: quem é o fanático?, quem é o crente?, quem é o Deus? Minha mãe tem seu próprio Deus, talvez o mais conhecido de todos, o maiúsculo, e o mais acreditado. Eu tenho meu próprio deus, um em vários, atroz devastador: deus de fato. Deuses iguais, que trazem nas mãos bênçãos, e feridas. E esse eco de mamãe sai de minha boca. 

A água fervida, a fome arde: hora do macarrão instantâneo na panela — dos mais baratinhos, porque tudo tem preço e valor. Até deus e o seu amor e o seu perdão. Até a fé e a sua falta. E seguir para onde? Alguns chamam de dízimo: ofertado. Alguns chamam de vício: absorvido. Não passam de nomes. Vindos do hábito, como de costume, são preços, cada um com seu custo, paciência, se não te arrebentam o pulmão é a cabeça, o que vai dentro da cabeça, e as costas e os ombros e o peso que te jogam, e com o muito que podem comprar, mesmo que seja caro demais, mesmo que seja pouco demenos. Três minutos, diz a embalagem. Preciso decidir.

Na geladeira não encontro o queijo para incrementar o sem gosto da hora do jantar. É preciso economizar, mesmo que não haja mais nada. Decido, antes mesmo de despejar o insosso pozinho e misturar o repasto de sempre. Como, mastigo, engulo. E depois do cigarro ajeito uma pequena mochila e me ponho no caminho, deixo Patmos sem querer, necessidade a voz precisa calar. Vou atender as preces de mamãe. Serei seu milagre, o fruto de sua pobre crença. Quase me envergonho.

Três dias. A água fervida. E eu de volta. Três minutos, diz a embalagem. Não fui o pródigo que se esperava. A falta de fé, na fé dela, e o apego à minha, me fizeram retornar. E a dor nos ouvidos. Três dias. E comigo minha oferta, guardada em notas pequenas na gaveta de meias do pai e agora oferecida toda ao meu deus.

O macarrão na água quente. O cigarro queimando esquecido no canto da boca. A panela de lado. A colher arde no fogo. Minha fé arde no corpo. Bem-aventurados os pobres de espírito, os que sofrem, os que têm fome. Sempre as mesmas coisas. A veia esticada. A agulha certeira. A pele picada. De joelhos no chão. Um pagão entregue e vencido. E o meu Deus. E as minhas visões miraculosas. E  ainda posso ouvir não quero é automático. Olhai para ele, e sede iluminados.

Posso ver o Deus, não o de minha mãe — o meu próprio deus.

E agora mamãe onde está?

 
 
 

 

 

(imagem ©surfzone)

 

 

 

  

 

Luis Rafael Montero. A terra vermelha do noroeste do Paraná foi casa e chão quando parido, em 1983 quase 1984, em Umuarama, e depois, até bem depois, quase todos os anos em Cianorte. Mudou-se para São Paulo, onde sobrevive desde 2008, trabalhando como redator publicitário. Logo resolveu escrever mais e redigir menos, e vive pelas oficinas literárias da cidade e nos papéis intermináveis na mochila. Contista, e por vezes cronista em devaneios, prepara seu primeiro livro de contos: Eu, cínico. Escreve o blogue Luis Rafael Montero.