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Se tivéssemos um bom regaço para descansarmos de nossas batalhas, talvez dormíssemos mil noites através delas. Das donas dos regaços. Mas, só temos um pouco de conhaque guardado pelo capitão — ora sim, capitão... e um monte de homens amontoados e fedidos. Sim, as batalhas foram muitas. Também em quantidade tivemos mulheres. Belíssimas, outras horrorosas, doentes ou sadias, todos nós aqui tivemos muitas. Mas nesta noite e nas outras tantas que se passaram desde o dia terrível não temos nem mulheres, nem álcool e nem fumo. Nada que nos possa libertar da lembrança terrível de nosso fracasso, ou acalmar um pouco a nossa sede de vingança.

 

Por ora, a lua está conosco. O mar não está agitado e talvez cheguemos em terra antes do final da semana. Meu Deus, mas que saudades de Joana... Sinto o seu cheiro no meio desta imundice. O cheiro que ainda não conheço por completo e isso é o que mais me inebria. Um cheiro doce e limpo, lavado dos destinos e passados que me rodeiam. São alvos dezesseis anos encarnados numa flor, que de mim só conhece a melhor parte. Ah, mas que terror brotaria dos seus olhos se me visse agora e sentisse o cheiro fétido que brota desta cama de tábuas. Ah, se me visse agora, jamais me reconheceria. Viraria o rosto ao pai... Ele me olharia nos olhos, tocaria as costas da filha e a tiraria daqui muito rápido. Rápido o suficiente para que ela não se desiludisse tão cedo e estragasse os planos de nosso casamento. Eu, um homem honrado. Honrado pelo dinheiro que trago nos meus baús. De honra só conheço a da espada e sei que ele está me vendendo a última das filhas, por uma ninharia.

 

No dia seguinte às minhas divagações sobre o amor, pareço acordar em outro mundo. O sol não permite mais nada de doçura. Mais que o sol, os risos e gargarejos dos homens ao meu redor, trazem-me a um mundo árido. Meu corpo não me pertence tanto como ontem, ou eu sou outro, diferente de ontem. Tão diferente que Joana não me diz mais do que uma leve bruma do passado. É hora de acordar. Jogar água na cara suja e falar em mortes. Muitas mortes. Principalmente a dos responsáveis por nosso degredo. Se eles não nos acharem antes, nós os acharemos.

 

Não me agrada lembrar do horror de nosso combate. O ódio me faz salivar e não querer mais nada que o gosto de fel ainda mais forte em minha boca. Encho-me da água que posso usar e a atiro longe, como que para evitar que ela me lave de minha vontade de limpar meu nome da mancha da humilhação. Estávamos dormindo quando fomos atacados. E bêbados. Eu sonhava com uma mulher. Há quanto tempo não sinto o carinho de uma mulher... O abraço do sonho tornou-se o tiro no braço. Só para me acordar, foi o tiro. Mas, foi impossível acabar com a chacina. Usaram facas. Mataram muitos que dormiam. E eu não consegui pegar nem ao menos um dos cafajestes. Estávamos tão despreparados que só nos foi permitido pular na água da vergonha e nadar quatro horas seguidas em direção ao nada. Sorte termos encontrado onde flutuar. Nossos braços não aguentariam muito tempo. O pior foi escutar o pedido de socorro dos que não conseguiam usar os braços nem as pernas. O pior ainda está por vir e nós seremos os algozes. É assim que devo pensar. Esta é a única chance de eu ainda poder ter Joana e um pouco de paz.

 

Teremos que esperar quanto tempo para sermos descobertos? O único lugar em que poderíamos nos esconder seria nesta choupana e nesta ilha. No raio de quilômetros de onde estávamos, é a única em que um ser humano ferido poderia chegar, por mais forte que fossem seus braços e sua raiva. Diabos, que golpe sujo, o de atacar durante a noite um bando de homens bêbados e desarmados...

 

Isso me faz lembrar os tantos que matei da mesma forma. Mas faz muito tempo. Meus colhões ainda não conheciam o vaivém do amor... Ah, o amor... Talvez rasgasse aqueles homens porque não tinha ainda povoado a carne no amor... Não tinha cravado meu enorme e guloso membro em carnes quentes... Sim, faz muito tempo.

 

Eu também poupei muitas vidas, inclusive a de padres, mulheres e crianças... Depois que consegui comprar um lugar onde eu possa morrer em paz, passei a matar menos, a selecionar quem mataria... E é isso que é pior, passar por isso a esta altura da vida. Há tempos que não sentia este amargo na língua, esta secura por sangue...

 

Mas estamos muito à mercê de qualquer ladrão barato nesta margem d'areia, amontoados neste barraco. Qualquer animal selvagem também nos atingiria do jeito em que estamos. Deve haver alguém à espreita. Não falta muito e nos atacarão. Onde estarão os miseráveis? Os covardes e sem alma? Bando de perdidos, sujos e infelizes... E morrerei na mão destes homens crus, que, caso morressem nesta última batalha, não teriam onde enterrassem seus corpos nus e humilhados.

 

E se morro aqui? Também ficarei perdido? Um naco de carne como tantas vezes pareci e resisti. Quem me levará à minha casa e tratará de dar-me um enterro de homem? Ninguém. E que farão de minha casa os meus vizinhos, os emprestáveis, que sempre me olharam de soslaio pela origem dos meus bens? Decerto o Estado tomaria minha casa, e a reformaria, e a benzeria e lá colocaria uma família da cavalaria. Um jovem tenente, sua jovem esposa e seu par de filhos limpos...

 

Preciso fugir daqui, o quanto antes. Se morro na fuga tanto melhor que morrer numa luta em que não há chance de vitória. Embrenho-me agora mesmo por estes matos, sigo o quanto for possível, cruzo a ilha, torno-me selvagem, mas, sobrevivo. Danem-se dinheiro e casa. Que façam bom proveito os que ficam para trás.

 

Adeus, Joana... Deixo-lhe também à espera. Ficarás velha e ressequida a me aguardar, a se guardar... Mas, preciso fugir da morte. Preciso sobreviver e será difícil encontrar o caminho de casa. E se encontrá-lo, e se voltar, Deus queira que esteja à minha espera. Seu pai não tardará em vendê-la a outro quando souber do que aconteceu e calcular a minha demora. Prejuízo meu esta viagem, perdi você, perdi meu futuro calmo. Mas, o que esperaria da vida um pobre diabo como eu?

 

 
 
dezembro, 2010
 
 
 
 

 

Elaine Pauvolid (Rio de Janeiro/RJ, 1970). Em 1998, estreou como poeta com Brindei com mão serenata o sonho que tive durante minha noite-estrela... (Imprimatur/7 Letras). Seu segundo livro, Trago (edição artesanal da autora, 2002), com prefácio de Gerardo Mello Mourão, foi lançado no evento ConVerso no Café, coordenado pelo grupo Poesia Simplesmente, no Café do Teatro Glacio Gil. Em 2003, juntamente com os poetas Márcio Catunda, Ricardo Alfaya, Tanussi Cardoso e Thereza Christina Rocque da Motta, lançou o livro Rios, pela Ibis Libris. Em 2007, publicou Leão Lírico (edição da autora). Em 2009, participou de Vertentes: coletânea de poemas e fortuna crítica (Rio de Janeiro: Fivestar), ao lado de Marcio Carvalho, Márcio Catunda, Ricardo Alfaya e Tanussi Cardoso. Escreve resenhas literárias desde 1999, com trabalhos publicados em diversos jornais do Rio de Janeiro, como o Globo, no suplemento Prosa & Verso e no JB Ideias. É editora da Revista Aliás e mantém o blogue Confidências de Jocasta, além do site pessoal.

 

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