©alexander calder
 
 
 
 
 
 

 

 

AS MÃOS MIRRADAS DE DEUS

 

 

"Deus tem também seu inferno, seu amor pelos homens"

F.W. Nietzsche

 

 

A infância me traz um terço de contas inumeráveis, escorregando entre as membranas dos meus dedos, embora muitos desacreditem que exista algo entre um dedo e outro, além de minúsculos abismos. Sou um anfíbio me alimentando de rochas e lavas frias.

Ainda sonho com aquele homem bizarro, do cheiro rude da velhice desprendendo devagar da sua pele cinza, o tempo transforma a carne tenra num laboratório de horrores. O homem grande das mãos mirradas... Olhava e não compreendia os desígnios de Deus. A geometria torta a conceber desejos gordos para concretudes magras. A menor distância de um ponto ao outro é uma curva. Suas mãos finas e pequenas sustentavam um neto corado e robusto. As dualidades são sempre bárbaras... Naquela época as crianças me traziam um sentimento ruim, um ódio inexplicável, em forma de espinhos, sabe aqueles espinhos que vivem entrando em nosso pé e precisam ser retirados com agulha fina? É, era um incomodo assim. Mesmo hoje não as quero bem, há uma rivalidade muda entre nós. Guerra fria. E toda vez que vejo uma, acho suas cabeças grandes, vazias e desproporcionais, como grandes campos minados. Strawberry Fields Forever. Tento despistar a curiosidade insana dos meus olhos, mas eles sempre acabam nas extremidades. Então, novamente tenho diante de mim, o homem das mãos mirradas... Alguém me grita:

— Lembra de mim?

Observo profundamente aqueles olhos azuis e tenho certeza de que eles já fizeram parte do meu mundo. Mas onde, quando, em que circunstâncias? Aqueles olhos de um azul raro não pareciam pertencer àquele rosto: delicado, anguloso e tão perversamente angelical.

— Olha bem pra mim. E aí?

Pensei que ela bem poderia ser protagonista de um daqueles filmes antigos, em preto e branco, nos quais todas as mulheres eram anjos intocáveis. Andróginos. E seus olhos... Tão fora de órbita, flutuando num universo há muito esquecido.

— É impossível que não se lembre! O Juninho, meu irmão e você...

Como poderia me esquecer? O meu primeiro amigo. Os olhos, era isso, eram os mesmos.

— Claro, como ele está?

— É uma longa história... Triste história.

Não ousei perguntar. Não queria saber. Eu sei muito bem viver de lembranças... E elas eram muitas e boas. Amávamos como dois seres antes da criação, antes do bem e do mal.

Reflito e minha imagem é um quadro alucinado de Edward Munch. Sigo a fome, abro cada curva do meu intestino e ele dá voltas e voltas em torno de mim, como uma roda da fortuna girando sobre o próprio eixo. No jardim crescem os baobás, se espremendo numa realidade limitada, num tempo oco, sem espaço.

Rumino mitologias, o homem grávido. Também gravitam seres no meu ventre, na contradição plena do meu membro ereto, masturbam-me, as mãos diabolicamente mirradas de Deus...

 

 

 

 

O HOMEM DO TERNO DE VIDRO

 

 

"O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo, o tempo se espreguiçava provocadoramente, era um tempo só de esperas, me guardando na casa velha por dias inteiros (...)". Raduan Nassar, Lavoura Arcaica

 

 

Sentia o perfume indiscreto do concreto fresco da nossa casa. De fora, um cheiro forte de peixe me entupia as narinas. Era estranho, porque o mar estava tão longe dos nossos olhos faiscados de areia. Apenas um minúsculo aquário inabitado enfeitava meus pensamentos. A gordura mórbida da solidão. Morávamos numa ilha e jamais tivemos saudades ou necessidade do mar. O mundo ia e vinha, holístico, tão alheio a tudo... Indústrias fabricavam sonhos de novos amores e nós comíamos do pão mofado de cada dia. Vinte mil léguas submarinas. Não entendia as engrenagens engolindo monstros e crianças disformes, mas me dava por satisfeita por não ser devorada, faltavam somente alguns pedaços inúteis, que provavelmente não sentirei falta no futuro. Juntos, planejávamos viagens que nunca faríamos. Contabilizávamos filhos já perdidos nos labirintos ocos e fétidos do ventre. Não compreendia o motivo do nascimento se localizar tão à margem da lama. Bocas de lobo deságuam em mim. Encaramujo. Nas horas de monotonia crio larvas raras e até agora nenhuma se transformou em borboleta, serviram apenas para engolir nossos jardins, em seu tímido, porém grotesco gigantismo.

Olho-te. Côncavo. Um relógio de pêndulo ameaça a paz das paredes caiadas. Tempo hemorrágico maculando meus olhos em andrajos de sangue e tédio. Palito os dentes e retiro restos de cadáveres. Venho me alimentando da vileza humana. Caranguejos esnobes de subúrbio.

Arrasto os pés pelos corredores ruidosos. Tudo o que é velho range e dói, apenas nossos corpos se perdem num silêncio constrangedor e destrutivo. Rasgos. Você se foi. De repente. Entre os vãos. Deslizes. Não te culpo da ausência dessa paixão furta-cor. Mas peço que traga algo para estancar o sangue da minha garganta. Fisgadas. Ainda convulsiono pelo assalto ao eco das minhas palavras. Narcisos.

Torço os dedos e desfaço antigos nós. Você sempre fora forte. Viril. Um peixe grande. Observo, no entanto, a incoerência dos seus trajes. O homem do terno de vidro.

 

 

 

 

CAMPOS CEIFADOS

 

 

"Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim.

E sinto—a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços"

Carlos Drummond de Andrade, no poema "Ausência"

 

 

O rio é um mar pequeno, infinito e tenebroso. Cavalos marinhos devorando submarinos de todas as cores e mastigando cadáveres frescos. Carvalhos sentimentais. Cardumes de olhos me olham. Espiões. Peixes esperando serem fisgados.

 

Relembrar é estranho... É viver duplamente o que deveria ser subtraído da memória. Reencarnações. Engulo estranhas pílulas brancas. Não se compra a paz. A sanidade num frasco de vidro. Medley. Duzentos anos para decompor. Tarja preta.

O divã é um culto intelectual às emoções mortas. Lazaro e suas roupas em farrapos.

— O que você está sentindo?

Moscas mortas. É o que eu vejo toda vez que fecho os olhos. O perolado das moscas mortas. Varejeiras.

— Conte mais. O que mais você vê?

Redes resgatando enguias. Cristo mergulhado em ódio e silêncio. Sinestesias. Mantos revestindo pedras. Sanguessugas cobrindo meu corpo.

— E a sua infância? Qual o cheiro da sua infância?

Vísceras frescas. Leitos. Vidas submersas. Chuvas e escombros de janeiro. Velas queimando sobre carne. Diálogos escorregando entre os vãos obscuros da portas.

— E a morte? Você tem medo da morte?

Não. Penso na morte como números cabalísticos. Inevitável. Roda da fortuna.

— A morte não te surpreende?

A morte, algumas vezes, não é surpreendente. Não chega feito um batedor de carteiras. Vem mansa e certa, como a correnteza... Como uivos em noite de lua plena. Como o suicídio previsível dos desesperados.

— E a sua mãe, gostaria de falar dela?

A minha mãe estava na beira do rio comigo no colo, não me recordo nitidamente, acho que meu irmão brincava um pouco mais distante, aí então...

— pode continuar.

... foi então que ela perdeu os sentidos, a vida perdeu o sentido. Eu puxei-a pelos cabelos e gritei, gritei, gritei, mas a correnteza foi levando, levando... Ainda sinto seus cabelos escorregando entre meus dedos finos e enrugados, sua vida se tornando fluida e transparente.

 

Era um aquário, depois virou rio, depois virou mar.

— E o mar?

O mar é apenas um rio grande, infinito e tenebroso. Tão somente... Campos ceifados.

 

 

 

 

março, 2010
 

 

 

 

Marcia Barbieri é paulistana. Publicou textos na revista literária eletrônica Cronópios, Escritoras Suicidas e Meio Tom. Edita o blogue A Vida Não Vale Um Conto. Em 2009, lançou o livro de contos Anéis de Saturno pelo Clube de Autores.
 
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