para Zigomar, Lourdes e Filhos

 

 

"Permanece amarrada lá, no alto do esteio do coiceiro da porteira do Barracão. Convexa, talismânica, lendária: a caveira do touro Charuto...

Dados os usos gerais, por certo afastasse maloiados, quebrantes e outros inconscientes malfeitos mentais por taismente conhecidos telenérgicos.

Pois aqui mora a garrinchinha-parda, dona de maior mansidão entre o pessoal alífugo.

Da cavidade onde existiu o indiano olho esquerdo do puro Zebu, raçudo Gyr, fez ela a portinha para o interior de tão carapaça moradia.

Ali nidificou a vida toda.

Tem, como vizinha de destro ex-olho, uma samambainha sempreverde, enfeitosa, brotada da terra pouca que porém muita se tornou levada com insetos no biquinho da avechinha-mãe... Cheia de asseios, ao passar expulsava de sua porta as terrinhas, que foram se ajuntando ao lado, vizinholho.

Carriça lindinha — uma bolinha aveludada com dorso pardo-acinzentado e penugens amarelas no ventre — a gente a ficava ouvindo, mas ela não trinava nem gorgeava; garrinchinha não garrula não pipila nem gralha. Não pia de macucos, nem cruja ou ulula, à corujal. A trogloditazinha quase zinzilula e trissa, como os picaflores colibris. Ela apenas corruchia chilidozinhos dizendo: corruíra, corruíra, corruíra... Daí, até seu apelido meio chinês, dos guaranis, camba-xii — chilreio negro —, poética corruíra, quase xilra, a cambaxirra!

De manhã, toma ela seu justo raio de sol posada nos cornos carcomidos,  cheios de porém dignidade, do raçoador extinto. Ela fica zinzando de um pro outro, gostando um tanto de catar piolhos, muquiranamente... Um ligeiro voo e parte dali.

Aí a gente assiste ela, no chão, quebrando no bico fino e aguçado as núculas do pinheiro ali de perto, pra trazer os gusaninhos das castanhas pros filhotes. Desde novinhos eles são iniciados no ofício de pinçar tungas, próprio das garriças insectívoras. Para treiná-los, vai aos chiqueiros, se impregnando de pulgas e níguas trazidos nos pés e penas pra infestação do ninho...

É ainda do alto da guampa esquerda que, delicada, a avezita exagera no uso de sua cloaca:  aos pés do esteio, notam-se, ao fim do dia, incontáveis cocozinhos bicolores.

Ah! Esses  chifres, arcos, donde lhe partiram os filhotes, um a um, flechas, para o desconhecido... Dali todos um dia fugiram voos, inaugurando liberdades.

Desd'eu menino, quando sentia vontade de cumprir um medo pouco, pra evitar outro maior, olhava de-noite pros lados do Barracão pra ver se flagrava a caveira lumiando, (como só elas sabem), nas quaresmas rurais. Vez ou outra piscaluziu, mas de apenas muitos pirilampos & vagalumes pousados, se navegando, indistintos, nos riozinhos de sangue nobre, veiazinhas já ossificadas como lindes dos mapas da sobretesta luzidia...

 

 

 

 

Essas lanterninhas verdes, acesas em sua porta, garrichinha papava!

Vem a história oficial da morte do boi... Contam que foi imprudência do dono que deu naquilo... Um mau conselho veterinárico fez o touro tomar remédio hormônicos a fim de aumentar potências, pra fazer além do que podia, conforme a consoante natureza de um legítimo bos indicus.

O coitado definhou, após múltiplos incontroláveis transes. Depois, nada que o arribasse houve. Só foi para trás. Remédios, sangrias, mandingas, rezas, desaguamentos, benzeções, simpatias, cozeres & trabalhos de terreiro: debalde!  No dia 2 de agosto de 1954, Charuto morreu...

Sabe-se que, depois dele, um boi-menino, Catu, veio e firmou seu lugar, ali ficando até a chegada dos tempos leiteiros, bois holandeses, ditos bos taurus.

Mas, quando Charuto inda pastava, quem havia que lhe aliviasse, catando os carrapatos tão dissimulados por debaixo das orelhas tão esmagadas sob os chifres, conforme a raça exigia, quem? A garrinchinha se alimentava deles!

Charuto era território dela, sua seara exclusiva. Inclusive, os dois se davam tão bem que ele até suportasse as moscas, não abanando a longa cauda de legítimas cerdas indianas, só para não a machucar, enquanto lhe pinçava os parasitas do couro...

E estava escrito que, no futuro, ele continuaria se relacionando com ela, sendo seu abrigo, toca, refúgio, retiro ou esconderijo...

Sim, uma vez morto, extintas as orelhas-em-gavião, lavaram aquele crânio semi-descarnado em cáusticas sodas, entronizando-o no alto do esteio.

Ela está lá, no fundo da memória, a ave...

Ei-la se banhando na pocinha havida aos pés do bucrânio, bacineta criada no chão duro pelos pingos das goteiras da chuva.

Ah! São petrechos seus, além, das peninhas lindas castanhas e dos saltitos milimetrados, o remígio rápido e a caudazinha curta, retrizes erectas, elegantemente...

Eu sempre querendo tê-la nas mãos, amor-de uma  carícia ao menos, mas ela impermitindo minhaproximação... Tentei tudo nesse intento: alçapão, arapuca e até um corrupixel. Jamais consegui...

Hoje, resta, distante história de nobre raça, dando gosto de se ver, apenas a venerada cabeça.

Brilha fácil, em qualquer noite aqui da cidade, quando me doem saudades da Santa Rita... Mas o pensamento ligeiro não me deixa lembrar direito.  Assim como,  rápidave, sai do ninho do meu peito a garrichinha — risplis — desnorteado voo, fugassustada, que ela não espera a gente chegar mais perto para um curioso se-rever!"

 

 

(imagem ©tesista)

 

 

 

 

Oscar Kellner Neto (Delfinópolis/MG). Arte-educador, artista plástico, escritor, professor de gramática e redação. Começou a escrever em 1963. Premiado na 1ª Semana de Arte Moderna de Franca, SP, em 1966, com o poema "Beatniks". Em edição mimeografada, lançou o primeiro livro de poesia Canto de buscas (1968). Produziu textos, poesia concreta e poemas-processos na década de 1960. Recebeu inúmeros prêmios literários nas décadas passadas, e possui livros publicados em vários gêneros literários, entre outros, Fazenda interior (contos, São Paulo: Casa do Novo Autor Editora, 2009).