Hilton Valeriano - Como ocorreu seu contato inicial com a poesia?


Claudio Daniel - Quando li pela primeira vez O corvo, de Edgar Allan Poe, na adolescência, fiquei encantado com a música verbal, a estranheza imagética, o vocabulário inusitado, enfim, com a riqueza sensorial e imaginativa da linguagem do poema. Pouco depois, li uma tradução das Flores do Mal, de Baudelaire, feita por Guilherme de Almeida, que também me causou forte impressão, pelos jogos sinestésicos e pela sonoridade que criava aquarelas quase abstratas. Foi então que decidi ser poeta. Para o desespero de meus pais, que sonhavam para o filho um futuro melhor, como ser engenheiro, advogado ou vendedor de apólices de seguros.



HV - Como é seu procedimento ao escrever um poema?


CD - O poema pode surgir do som de uma palavra, como vértebra; ou da impressão causada por uma fotografia ou pintura; pode nascer das imagens de um sonho, de um texto lido, da vontade consciente de criar determinado efeito estético ou ainda de nossas experiências pessoais. Não existe uma fórmula única. De todo modo, acredito nesta sentença de Edgar Allan Poe: "a imaginação é combinatória", ou seja, o cérebro faz permutações de elementos que existem em nossa memória, e mesmo no inconsciente. A poesia surge de nosso repertório pessoal de leituras e vivências, e exatamente por isso, a meu ver, não se pode separar vida e linguagem.


HV -  O que é poesia para Claudio Daniel?


CD - Perplexidade, estranheza, mistério, sensualidade, arquitetura, "construção precisa do impreciso" (Poe), diálogo com esmeraldas vivas.



HV - É possível diálogo entre a tradição e as vanguardas, ou uma poesia de invenção deve ser necessariamente uma poesia de ruptura?


CD - A tradição nada mais é do que o registro histórico de sucessivas rupturas. Dante hoje é canônico, mas não o foi em sua época, quando participou do movimento do "doce estilo novo", subversivo não apenas na estética, mas também na ideologia do amor, próxima ao pensamento gnóstico. Escrever a Divina Comédia num dialeto vulgar (que deu origem ao idioma italiano) e não em latim, a língua culta da época, foi um gesto de transgressão. O Fausto de Goethe não é menos inovador, ao romper os limites entre poesia, prosa e teatro, numa linguagem total. A segunda parte do poema, em particular, aproxima-se muito de experiências de vanguarda, e não por acaso foi uma das fontes de inspiração de Sousândrade no seu Guesa Errante. Todo grande poeta dialoga com o passado, inventa uma tradição para si (como dizia Borges) e arremessa o disco mais para a frente, acrescentando alguma coisa ao repertório. Há uma relação dialética entre o passado e o presente de criação, como diz Haroldo de Campos no livro O arco-íris branco; o que é preciso, a meu ver, é saber identificar na tradição o que se tornou obsoleto, pelo uso excessivo, e o que permanece vivo, instigante, desafiador.



HV - Como você vê o atual panorama da poesia brasileira contemporânea? Quais poetas você destacaria?


CD - A literatura brasileira sempre foi uma das mais fortes do continente; não é qualquer país que possui autores como Gregório de Matos, Sousândrade, Cruz e Sousa, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Augusto de Campos. Temos uma longa tradição criativa, e mesmo nos momentos de crise, quando parece haver certa estagnação, surge alguma voz interessante, que se destaca pela originalidade. De 2001 para cá, a poesia brasileira tem se relacionado muito com a internet, que facilitou a divulgação dos trabalhos dos autores mais jovens, em blogues e sites de literatura. Vejo uma dicção interessante em alguns autores recentes, como Ana Maria Ramiro, Camila Vardarac, Eduardo Jorge e Leonardo Gandolfi, entre outros. Aliás, publiquei há pouco tempo, em Portugal, pela editora 07 Dias 06 Noites, a Antologia da Poesia Brasileira do Início do Terceiro Milênio, que reúne 18 autores da novíssima geração.



HV - Por que a crítica literária tem se mostrado tão alheia ao que se tem feito em termos de poesia contemporânea? Como formar novos leitores de poesia ante a persistência da academia em ignorar a poesia brasileira que é escrita em nosso tempo?


CD - A universidade, durante muito tempo, esteve focada num modelo de cânone que chegava até as primeiras décadas do século XX, ou seja, até Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, como se nada tivesse acontecido de significativo nos últimos 60 anos. Felizmente, esse quadro começa a mudar. Na Universidade de São Paulo, por exemplo, surgem vozes dissonantes que desafiam as limitações do cânone e a leitura sociológica dos textos literários, voltando suas atenções para a poesia contemporânea, com ênfase em seus aspectos estéticos e estruturais: é o caso de professores como Antônio Vicente Seraphim Pietroforte e Roberto Zular, não por acaso dois estudiosos da Poesia Concreta e autores bem-informados sobre a vanguarda internacional. Na Universidade Federal de Minas Gerais, Maria Esther Maciel também tem abordado autores vivos, como Wilson Bueno. Eu poderia citar outros casos, todos eles, sem dúvida, exceções à regra, mas exceções importantes, porque mostram a mudança que ocorre dentro de instituições tradicionalmente conservadoras.



HV - E a crítica literária publicada nos jornais?


CD - A crítica que se desenvolve hoje na universidade, a meu ver, é mais aberta, democrática e bem-informada do que a crítica jornalística, que reproduz as relações de poder existentes no meio literário. Os cadernos de cultura da imprensa diária ignoram quase totalmente a poesia contemporânea; suas escolhas de pautas são orientadas não pela qualidade estética de uma obra ou autor, mas pela política e pela relação comercial com as grandes editoras. De todo modo, esse é um fato circunstancial, pois a crítica definitiva é a feita pela história: o que tem qualidade, permanece; o que não tem, será esquecido.



HV - Fale um pouco sobre o livro Fera Bifronte, que ganhou o prêmio da Funarte em 2008.


CD - Fera Bifronte reúne poemas que escrevi entre 2005 e 2008, e traz um posfácio de Ernesto de Melo e Castro. O projeto gráfico é do artista plástico e escritor Francisco dos Santos. Os poemas desse livro tratam de temas como a história, a guerra, a morte, o culto ao mercado, a solidão, mas não se trata de uma estratégia naturalista, ao contrário: meu modo de denunciar uma realidade cada vez mais insuportável é subvertê-la pelo exercício da imaginação.

 

 
 
junho, 2010
 
 
 
 
Claudio Daniel (São Paulo/SP). Poeta, pesquisador, ensaísta e tradutor. Publicou, entre outros títulos, os livros de poesia Sutra (1992), Yumê (1999), A sombra do leopardo (2001), Figuras metálicas (2005) e Fera Bifronte (2010). Ministra oficinas literárias no Ateliê do Centro, em São Paulo, e via Skype, dentro do projeto do Laboratório de Criação Poética. É co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates e escreve o blogue Cantar a Pele de Lontra.
 
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Hilton Deives Valeriano. Formado em Filosofia pela PUC/Campinas. Leciona na rede estadual de ensino. Vive em Hortolândia-SP. Tem poemas publicados no Jornal de Poesia e Sibila, entre outros. Escreve o blogue P-o-e-s-i-a-D-i-v-e-r-s-a.
 
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