O espreguiçar violento das árvores redesenha o seu rosto numa manhã de verão. Mil focos de luz e sombra, cor e credo. Efeitos de pincel. Um milagre. Acompanho seu movimento como uma serpente quando as pálpebras se apertam ao sol que bate. Uma mecha cintila, um meneio revela a ponta dos dentes, alvos, afiados.

 

OK, ela pode ser esquisita.  Diferente. Os caras ficam rindo na escadaria, pelas costas dela acenam pornografias. A velha chacota do estrabismo: mais eles não enxergam. Eu vejo. Percebo a textura de sua pele afinando na altura do pescoço, os contrastes de cores entre os olhos, os cabelos, a pele, a roupa e aquela tonalidade indefinível que é tudo isso e mais; o mito, a aura.

 

Mil focos de luz sobre o seu corpo bem talhado, oscilando como eu. Falo, não falo, calo, emudeço sua boca eletrizada com um beijo? Ou espero?

 

Na frente de todos não, claro, impossível. O abismo entre o herói e o idiota não carece de ponte, sequer de um passo. É uma fenda quase invisível pela qual eu deslizo — serpenteio? — se me vira a cara, esbugalha os olhos ou interpela com um redondo o que que é isso?

 

Vou acossando seu corpo contra as árvores, será que ela percebe?, contra a minha própria ciência. Os caras riem e acenam e não vão embora, não adianta, e tanto falo tanto piora — malditas (in)confidências. Fizeram apostas.

 

Ela não é especialmente bonita, o que a torna perfeita, e movimenta a sua língua farpada e frenética incansavemente por mil territórios, desestabilizando o chão ao meu redor e engrossando o nó que tranca a garganta. A fenda da idiotia abre e fecha, e só de olhar para ela me sinto idiota.

 

Em algum lugar dá a hora, um sino toca, ela me beija (roçamos bochechas e é tudo, mas não contenho a fantasia e a ereção de um beijo sinuoso como o meu corpo delgado, frio e escamado, prensado contra o tronco em que me acorrentaria até a velhice seu escravo). Ela me deixa.

 

Não está usando saia hoje. Consolo-me. Isso torna tudo mais fácil.

 

 

 

 

 

 

joão disse que seria coisa rápida, no que se fiou maria. Era uma viagem desde a pré-história planejada, desde antes de se conhecerem e antes de se entregarem àquele jogo atabalhoado no computador, no bar, no telefone, no carro, na sala, no quarto, na caligrafia, na madrugada em que escanhoavam as arestas daqueles corpos desajeitados após sete anos em desamor.

 

Coexistiam havia tão pouco tempo e ele já viajaria ao velho continente, onde, certamente, não era lugar para novíssimas marias; onde uma insinuante confeiteira talvez o seduziria com o sorriso torto e a sabedoria dos que falam mistérios, apenas mistérios, soturnos jogos de palavras em que se enredaria joão, menino tolo, inocente. Ou seriam as moças, com suas microssaias de revista, seda perfeitamente cortada.

 

Administrou sua raiva frustrada, aquele bicho que engordava nas noites abafadas do outono em Aracaju.

 

Maria quis ir, não dava, pensou se se jogava, se consolava na presteza de uma grande prova de amor: um mês juntos, um mês separados, e depois? Seria para sempre. Gastava o português do poeta, lembrava-se a todo momento de que o amor era aquilo e que segunda-feira ninguém sabia o que seria. Ninguém soube, de fato, não ouviu nem tocou um único retrato.

 

joão também tinha seu corte na espinha, seu isopor raspado, suas pulgas no estômago. Mas, francamente, ninguém diria, e, apesar de achar o remédio também amargo, foi num átimo curado. Portou-se feito joões quaisquer no dia em que acenou do táxi à escultura viva de pedra sabão na calçada, borbulhando e desfazendo entranhas sob os 42 graus do meio-dia, que lhe derretia e partia ao meio, sem que pudesse se decidir com qual metade recomeçar.

 

Telefonou apenas uma vez, do aeroporto Santa Maria.

 

Na Itália providenciou, à primeira banca, seis pares de cartões postais.

 

Era a caneta que falhava, era o tempo que passava, era o desconhecimento do idioma ou da cartografia... Mandou um ou dois.

 

(E como ela sonhara seguir a trilha daquele postal pela sopa morna da noite sergipana, atravessar a nado até a barra dos coqueiros, ou, quem sabe, caminhar sobre as águas noturnas, aos soluços e suspiros como uma assombração em lençóis bruxuleantes em busca de sentido.)

 

Sim, chegou-lhe às mãos apenas um. Florença. Na primeira semana se deixou flutuar num encantamento até o litoral, molhando o ventre ainda perfeitamente liso e despercebido em grossas lágrimas de reconciliação.

 

Nos outros vinte e quatro dias cultivou ódio tamanho, e tão mortal, que amaldiçoou a cidade com uma adaga espetada na palma da mão. Pegou ascos de flores. Repisou-as pelo caminho.

 

Um mês completo, quando joão (talvez) retornou, disse rapidamente adeus e voltou (supõe-se) com outras malas, sem que se soubesse por que ou para onde. No que a virgem Maria desteceu.

 

 

 

 

 

 

Bolhas nos pés, caminhadas. Estamos à beira de um lago sujo, não queria dizer aqui assim, amplidões. Dificultoso-me espaços vazios, plenos de alheias orelhas. Há vezes sem abrir a boca vêm melhores palavras! Mas não é então como deve ser, pelo regrado dos códices implícitos, nova etiqueta: escachar as vogais, dilatar os ouvidos, esticar a língua além da boca e revelar todos os motivos desta saga. Barulhando um pouco a água destas choças. Nem sei que cidade é: paris em pernambuco? como está quente! os patos suam sobre a água. Vê, a linha do céu. Olha, a bexiga caiu no rio. Por que não estamos rindo? Só se ri de si, decerto, e agora é ocaso assistir essa cena. Ninguém deveria ter com os livros. Faz frio também, ao mesmo tempo. Parecia suor, é sebo — que espalham sobre as penas com os bicos engraçados, impermeabilizando-se contra as sensações frias: não naufragar. É o que estamos fazendo? esfregando mãos nos braços, sentindo o contato áspero dos pêlos, lustrando os olhos com o sebo destas quase-palavras que deixam seus rastros de lesma no espaço por onde viajam. Mamãe mamãe, quero o barquinho. Mas o pedalinho afundou, meu bem. Domingo que vem, domingo que vem. Que belo, ser menino. Trágico é ser reminiscência (mas sempre há um suicida gemendo de saudade na quina do bar). Ouço longes de cantolábios algozes, preenchendo os vazios do jornal com as nossas esganiçadas vozes. Meia hora no ponteiro cansado, nem uma palavra palpável à beira rio. Ou era um mar? Pedi para irmos à praia. Se fosse mar era de se jogar na esteira essas lamentações espreguiçosas num despudor censurável. Benzinho, fica mais fácil de falar contemplando o mar — nu e curtido nos sais. Re-sentimentos, sempre sucedia algo, o bombardeio no outro país, a queda do presidente, o acidente fatal: tudo era motivo para a mentira (na verdade não gostávamos do sal nos cabelos, peixe que morde mucosas, era isso, tão bobo, mas foi por isso que não fomos). Demorei a saber comer uva, engolia só e ficávamos com as faces contritas no absurdo daquelas ocasiões. Não se saboreia torta alemã com pastel de feira, diz, dedo em riste, senhorinha. Filosofia. É preciso requentar certos requintes nas horas mais chuvosas. Sim, por isso a gravata, quero a formalidade de um louco. Sem língua nem sinto sabor algum — está queimada pelo caldo dos últimos meses. Mas o que importaria isso, afinal? Paremos de não-falar por símbolos fálicos, somos uns coitados e temos é saudade de nós — nos corpos, nas vozes, nas gravatas vermelhas que nos ajudávamos amarrar. Eram cores. Espelho d'água e vemos tolos contemplando-se. Não nos delongamos corretamente nem saímos de olhos dados desde o flerte na sala de aula, muito antes do antes disso. No primeiro ladrilho ecoa já o último passo. Houvéramos olvido e nada. Mas, também, nada tem a ver com outrens, indofilosofias, não é? Ansiamos por nós mesmos nos pátios das escolas pelas quais passamos apressados, ansiosos por chegar à beira de um lago sujo e desabafar essa nossa história das outras vidas desperdiçadas. Hoje, ontem, ojerizas. Suspensão nos crustáceos do ar, zonzo. Eu tive uma namorada, amor, que era cabelo preto e olho verde como esta grama, formula um suspiro. Enraivecemos com a declaração, como seria possível — ao mesmo tempo, como não? — estamos para discutir assunto tão sério! Não haverá literatura para nós depois desta última página. Mas como era o nome? Será que conheço? Era tão lenda, ela. Mais linda do que sou, é? Era menos. Deixa disso e vem dormir com o calor, o sol não vai atrasar amanhã. Não me venha escapar, estamos sentados quarenta minutos sobre palavras. Então vamos levantar e espreguiçar. Não me escape. Tivemos nossas escapadas, em Colônia. Por que não? Vamos dizer: ah, não sabíamos? Então finjamos não saber, como será agora? Eram frias, as noites? Eram noites, os dias? Nevava. Vamos falar assim, tangenciando assuntos perigosos, apenas. Pois nem sabia mais se era minha ou se era nossa aquela perna, no beco, na quina do cenáculo em que nos metemos. No Rio foi infernal, São Paulo metrópole de cumprimentos distanciados, mas agora falas de Colônia. Em Curitiba passamos as noites dentro do armário, largados nas gavetas; sumimos nas fendas escuras do calçadão. Foi quando vimos pela primeira vez a dimensão dos fatos, e decidimos nos trancar no roupeiro por todo o dia, meditando entre gravatas frouxas e calcinhas meio soltas. Dormíamos juntos, então, para um despertar apartado. Foi por excesso de informação ou talvez por zelo descabido que deixamos de frequentar os bares mais sujos. Será que lembramos bem das mulheres dando a vida na avenida central ou confundimos com a praça do patriarca? — com os seres que lá rastejavam atrás de uma pataca qualquer. Não faz sentido rememorar histórias vindas de, para e com tantas pessoas: pelas nossas idas passaram pelo menos uma centena. Sem volta. Não me venha, não me venha, isso não é hora. Me negaste três vezes e o sol não se pôs, galo não cantou. Este relógio antigo precioso. Vai jogar fora? Ao contrário, colocá-lo no bolso quando esfriar, se é que esfria neste milharal verde azul dos infernos. Marcam horas os ponteiros enviesados — a hora certa, de nascer e deixar — porque sobre todas as coisas viveram. Bem, quase faz frio. Quando vamos terminar, a discussão? (Para mim discussão não termina nunca, não vê?) A brisa esfria a pele, a terra gela, a água tem boa temperatura — mas afoga. Ilhas de concreto naufragam nossos sonhos. Ilusões de óptica em recife ou rotemburgo, não é certo isso de ver múmias levantando do asfalto — somos tão iludidos. Aquela risada tão untosa… Múmias? Não quero cerveja, não quero cevada, malte, lúpulo, excrementos. Mas ficaria mais fácil dizer mais claramente. Valeria a pena, contudo? Engulamos em seco. Uns afagos emergem depois de sete anos nessa nossa situação de viver, reflexo de. No Egito vendem estátuas de gatos com uma maldição: decifra-me… (e vende como água no Saara). Odiei gatos até conhecer os nossos — são tão cão fiéis! Agora só repugno os galos, tolos bichanos, na chácara, perseguindo minhocas e galinhas que correm sem cabeça, tropeçando na própria crista ensanguentada. Credo, lembrar disso. É que não somos Édipo, ninguém é. Por que atrever a comprar um desses gatos de pedra lixada se vamos morrer? Meu pai vivo, o que sereis de nós? Liquidamos tua história e viramos reis? Se ainda fosse assim, um motivo dramático acima de todas as carnes: Abrimos o pacote de Ptolomeu naquela noite. Abortou. Filho lindo querido, filho filhinho, coisinha, estrelinha do céu — permita-me pular esta parte, giraríamos horas com substantivados adjetivados paliativos para a dor que realmente não sentíramos — eu de morfina; nós, cocaína. Se fosse assim palpável na madeira do caixãozinho cor de rosa a dor: Noite fatídica, estelação mortal! — Muda de assunto, diria chega, eu choro, eu me acabo, pulo no lago e morro. Não temo assunto, é esse o jogo, marcamos o encontro neste lugar, que podia ser a caverna onde titio me deixou com os morcegos, aquela vez dura, enquanto comia pernis macios de cabritos precoces, cultivados no fio da depressão-machete. Afiadíssimos dias. Frio frio frio da cara preta. Que será que vem me ter, agora? Tão fora de hora! Casamata da memória, eu me escondi do nosso filho falsário. Do nosso filho. Ah, o nosso filho. Lindo querido estrelinha do circo, pirulilando do avesso caiu do trapézio de pé no picadeiro e morreu. Unascido. Ptomoleu oitavo, rainha! Se pudesse jogar sobre teu manto dourado esse lixo abstrato, picotar tuas pálpebras para que nunca mais ignorasses a minha passagem pela avenida! Claramente: vaca, alimenta-me. Nós nunca fizemos fama pela caridade, embora pagássemos — sou a testemunha — a todos os que nos vinham cuidar dos carros. Naquele dia estávamos tão apressados, largamos o cavalo em uma praça vazia, uma ilha, e nos roubaram um pedaço da vida. — A vida toda, porque estamos aqui e nada do que sai junta coerência no ar. Por quê? Eu até entendo, nós nos entendemos, mas assim, do jeito que vai… — Não, não queremos fotografia, mas olha, é melhor assim. A tua máquina ia queimar, o nosso dinheiro ia te pesar, estamos só conversando (não é uma família no retrato). Sai, vai embora! E nós nem dissemos mais do que dez palavras. Onde paramos? Ah, que pergunta, paramos tão longe, paramos há tanto, paramos depois do Pedro, (ou melhor dizer Gabriela?). Não fala o nome. Deixa estar. Ilusão perniciosa, ferrão cruel que vem assombrar outras memórias. Seria bom saber que fomos dois porque a criança morreu, mas nem seu corpo limpo me deixava tocar, no auge! Falaríamos. Só lembramos disso, deixa, é nosso único papo, só essa palavra, estamos tão cansados assim de olhar, de pisar o chão — por que nem tiramos o sapato ainda, meu Deus? estamos na grama tão verde como os olhos daquela menina. Que nome? Eu conheci? Fagulha do real. Era mais bonita do que eu? Letal. Só ia dizer que naquela noite fazia sol, havia um quê de olhos azuis mirando cada vidraça, através dos espelhos, sangrando tão bonitamente, dentro de cada alma, nos botecos. No primeiro encontro éramos assombro e solidão. Aquelas tantas mãos desfiando panos, alisando a toalha da mesa, descobrindo as rendas, os teares do litoral sul. As unhas cuidadas. Mas precisa aparar esta pontinha melhor, está afiada, ai, farpa. A música parou, no salão. Ainda nem sequer faláramos da penugem sobre os braços. A música parou. Não queremos pipoca. O pato não vem comer na mão, com seu bico alaranjado, não vamos levar a pipoca que o bicho não pega na mão. As pessoas sentam ruidosas, esbaforidas atrás das sombras. Deve ser ano recorde. Tivemos nossos próprios recordes, de prender a respiração, beijar debaixo d'água, dizer mais rápido quais as palavras com p, trancar nos dedos nuvens parecidas com carneiros. Mantivemos nossos criadouros fantásticos. Pessoas multiplicam-se furiosas, socando-se, enterrando os mortos, abrindo as cavas covas casas da família. Tão pobres de qualquer ciência. Somos tão carentes de salvação, estirados blasfemando Jesus neste chão de terra batida! Bebendo mais uns goles nos revelávamos. Achei o beijo gelado, mas foi o melhor de todos, até mais profundo do que quando a morte desceu de vidro em brasa para mergulhar sua língua afiada na corrente de todos os meus dias e de todas as minhas vidas passadas desde a Grécia antiga até aquele lugar miserável que eu chamava de casa sem saber que o mundo abrigava muito mais do que as palavras que eu sabia então mal e mal tornear. Ondulado animal, maria tsunami, não permito lembrar o nome. Queria deitar num chão sem formigas, como nos jardins provençais; como limariam tais palavras sob mordidura de formiga, coceira de capinzal, zunidos de mosquito antes de ser engolido? A penas sou (condenado). Manchas na retina, borrões: o que faz o mundo em horas sem mim? Desmorona, lente de aproximação, teleobjetiva: Não posso pagar seus estudos com este centavo, nem pude os meus, desculpe, não compro sua bala. (Minha moral elevada voraz muita fome, mas não a doce). Chora, criança, caiu no negrume a bola de jogar, jogou-se no mar, agora não presta para rodar teu moinhomundo. Bexiga estoura no meio do mar. O conforto na desgraça é o alívio da graça. Nada me obriga ser anjo rosado, querubinzinho em vidro de conserva azeitada. Ilumino às avessas as tardes, com as sombras das preces pustulentas que graças a nós inventei. Nada me demanda porte de rei, voz de domador, unha de maestro ou braço de pretor. Pedaços retalhados, não reuniria duas qualidades na carcaça. Estofo inútil de recordanças mentidas, rezas desvalidas que digo sem o nome dos deuses, os títulos que não ouso. Por que omitir que a criança, será?, com certeza era eu? O Pedro fofo engaiolado, a Gabriela virtuosa trespassada por uma espada. Eu deixei a minha alma em um boteco, na noite — houvesse avisado antes queria encontrar a virtude perdida, marcávamos éden e punhal de Abel — esquina da Abreu com a São João.

 

Triste debate, o verbo, adágio, adaga que me afaga o ego frágil. Parado tudo é imóvel ou excessivamente rápido à razão. Mas, movimento, enfim, ousarei?

 

 

 

(imagem ©kapungo)
 
 
 
 
 
Renato Essenfelder. Jornalista da Folha de S.Paulo, doutorando da ECA-USP, professor, escritor, blogueiro. Curitibano de 1980, paulistano de 2001. Mais: www.contosdefarpas.com.