O amor irreverente

 

O mago saltou do metrô e saudou: "Olá, como vai? E John? Mande recordações a ele, sim?". A reação atônita da pequena Marjorie, a promessa de dar as lembranças, a porta do metrô fechando-se, este continuando sua rota: tudo isto aconteceu diante das reverências exageradas de Burdon, cartola na mão, as orelhas do coelho aparecendo.

 

Esse estranho, porque não dá o arremate? Ela se lembrava de quando foram a um pub beber vinho de maçã. Quando a terceira rodada de copos vinha no antebraço musculoso da garçonete, o coelho saltou da cartola de Burdon, ganhando os aplausos de todas as mesas e ninguém reparou em Burdon e Marjorie. No meio de sua embriaguez, estando os ruídos das mesas cheias e pesadas a cobrir as vozes, comentou a Marjorie, que procurava algo: "é importante...". Mas o mago não pôde contá-lo. Mais tarde um grupo de jovens alcoolizados seria visto saudando-se com reverências. A risada alegre de uma jovem que atendia pelo nome de Marjorie ecoaria pelas aléias e pátios marrons.

 

Outro dia estava ele numa padaria a tomar o desjejum. Vendo Marjorie passar, cumprimentou-a: "Olá? Onde vai? E John?". Depois de um momento ela diria não ser possível falar de John, pois ela não seria sua companheira, nem nunca havia sido. Burdon pediria desculpas e emudeceria. Não gostando de diálogos, sentiria vontade de deixar Marjorie. Enfim fugiu, sem nada dizer. Marjorie foi vista ao amanhecer atrás dele. Talvez apenas uma sombra matutina distante dele. Por entre pátios universitários e árvores grandes ela fazia jogatinas sobre qual direção ele pegaria e poemas em sua boca arpejavam em melodias douradas pelas sombras e nuâncias de dias de sol vividos em jardins ingleses.

 

Mas, de tanto brincar, numa esquina perdeu o amado. Lógico que era tarde quando, só, sentiu que o amava. O mago, invísivel, proclamou que viveria sempre à noite e que Marjorie fizesse magia neste estilo longe dele, que magia não combinava com amor. E que ademais amor só atrapalhava o artista que se prezasse. Ela já nem procuraria mais e ficaria no seu canto, a chorar: por fim de ofegante a sua respiração se tornou lenta, indiferente.

 

Assim o foi até o dia em que o coelho de Burdon decidiu intervir. Era dia de apresentação e o mago ficou perplexo, não achando nenhum coelho na cartola. Toda a magia lhe disse adeus e ele ouviu as queixas do público e logo depois viu a rua.

 

O coelho, no quarto de Marjorie, demorou a ser reconhecido, parecendo se esconder entre os bichos de pelúcia. Por fim, conseguiu chamar a atenção, mordiscando-a. Ele saiu pela janela e ela o seguiu pelas travessas e ruas de Soldempdon, dentro do metrô e ônibus, o povo a chamando louca-olhapor-onde-anda até quando chegou num bosque.

 

Era meio-dia e Marjorie avistou a Burdon. Numa clareira este lamentava o coelho quando a reconheceu. Ela se deitou e se arranjou sobre seu ombro. As suas mãos se tocaram e não apagaram a luz do sol.

 

 

 

 

O peixe que uivava

 

Ele foi visto pela primeira vez na noite em que a chuva torrencial começou. Ninguém sabia de quem era, nem se ele havia vindo dos lados da lagoa insólita ou da rodovia da mesmice. Ora ia em direção da lagoa, ora virava-se e tomava o rumo oposto, para a rodovia.

 

A reação ao vira-lata era nula, pois se esperava que ele um dia seguisse o rumo para um dos dois lados e acabasse como um cachorro como muitos outros lá da lagoa ou um cadáver para a fome dos urubus. Por ele continuar por ali, na cidade, uns poucos até o condenaram. Mas estando todos no rumo que a vida toma, nos afazeres diários ou em direção de suas casas, chegando a algum encontro importante não-se-sabe-porque, as condenações não passaram de uma ou outra frase sem maior importância. Vira-lata é mais coisa do que ser vivo. De modo que, ignorado, soube ignorar, mostrando sua língua salivante e um tanto suja de terra ferruginosa.

 

Quando o aguaréu não deu mais chances e todos os transeuntes sumiram, a fim de se salvarem, tudo ficou ainda mais fácil para o cachorro. Ele decidiu se plantar no meio da rua e aguardar o fim da torrente. Enrolou-se em torno de si e ficou imóvel.

 

Choveu sete anos ao todo. Comecei a marcar no meu calendário quando notei, que das paredes de casa começaram a aparecer pingos condensados. E os dias se foram, lentos, mas convictos.

 

Ao final das chuvas, pouco tempo ficou para tristes pensamentos. Pouco tempo para o luxo de pensar em si. Todos averiguavam juntos os danos causados. As casas abandonadas tinham antigamente armários, janelas, persianas. Agora tinham peixes mortos, cadáveres de marrecos e garças. Onde antes um tapete simples, agora lama e terra.

 

E poucos viram o cachorro levantar a cabeça, olhar para trás, como se estivesse espreguiçando-se. Depois, primeiro à direita e à esquerda, observou os lados. Havia valetas em ambos os lados da rua, por onde o rio de água turva correu carcomendo o pavimento, e desta forma protegendo o cachorro da enchente. Ali, no meio da cidade e no centro da rua, ele ficara intacto. À margem de tudo, pois ninguém mais o notava, tomados pelos seus cuidados com seus pertences deixados nas casas ou o que a chuva deixou para contar história.

 

Foi a família Piero, do circo que havia pego fogo no verão antes das chuvas, que primeiro se atentou ao fato dos pelos do cachorro terem caído durante o chuvaréu. As crianças, cheias da tragédia dos adultos, prontamente começaram a passar suas mãos na pele canina, brincando com ele. Ele não apenas estava sem pelos, mas também com um outro tipo de pele. Eram escamas.

 

Atrás das crianças, alguns adultos acabaram vendo o cachorro. Para a surpresa de todos, quando ele se levantou e se espreguiçou, mostraram-se barbatanas entre os membros e o dorso; e ao receber um prato com água, para beber, ele fez movimentos de boca como um peixe e pulou para dentro.

 

Quando as forças do exército vieram com mantimentos e foram consertar provisoriamente os pavimentos da estrada da vila, ficaram sabendo da novidade. Acabaram achando-o em uma apresentação de circo: "o peixe que sabe uivar". Ficou claro que o peixe era um fenômeno biológico. Esse peixe seria prato cheio, pensavam os cientistas, e todos já se perguntavam quando iriam capturá-lo, para fazerem experimentos, gravarem o DNA e todas essas coisas.

 

Foi Tchuí Piero, o caçula do circo, quem, cheio de medo, largou por fim o peixe no rio: melhor entregá-lo à natureza, do que às revistas de biologia e às catacumbas de espécies, pensou. O problema é que, nada mais elementar, esse peixe não sabia nadar, pois nunca havia nadado antes. E assim se deu, que o peixe ou cachorro, nunca mais foi visto.

 

 

 

 

O ogro solitário

 

Os cascos batem contra o assoalho de madeira. Mancando, puxo as correntes entre as pernas gordas e sujas de ranço. Dou fungadas intercaladas de assovios e grunhidos. Resmungo. Sou eu o ser que faz esses sons estranhos no andar de cima.

 

Solto lamentos por cada incapacidade, desânimo ou desmerecimento seu, sou quem fabrica as suas crises de enxaqueca e injeta catarro em seus pulmões, enche de manchas de bolor os seus cômodos.

 

Eu engendro automatismos maléficos que corroem o seu agir e pensar. Insemino cotidianamente mau-humor e agonia em seus dias.

 

A mulher que não há, os filhos que nem existem.

 

Nada lhe ajuda mais. Você é a má reputação em pessoa. Ninguém vem lhe ver, ninguém quer que você entregue cartas. Seus pombos-correios sem cabeça, a foto da esposa que tanto quis, tudo isso disposto no baú desse sótão. Não é necessário dizer para não beber da água do poço. Já nem pensa em limpar e as defuntas ratazanas cobrem toda a água.

 

Sim, eu sei, você quer me ver. Entre pela porta do sótão, vem ver a vista daqui de cima. Por sobre as copas de árvores, mesmo que desfolhadas, dessas florestas fechadas, a fumaça das chaminés nos vales ao horizonte. Idílico, não?

 

Depois, dê uma olhada no que guardou no baú do tempo. Ainda jura alguma coisa? Pobre velho! Não há mais nada que querer! Nada mais que lembranças, amargadas pelo tempo!

 

Espere, o que quer fazer? Não seja tonto! Para onde aponta? Você não é capaz de apertar o gatilho, uma vez que sou o seu próprio orgulho, que lhe mantém vivo. Sei à mirra, sou um bálsamo para o seu ser. Somente eu posso mudar o curso de sua vida. Somente eu sei onde se esconde a sua vontade.

 

Um momento. O que quer no espelho?

 

Onde você foi? Precisamos falar...

 

Volte, as velhas lembranças tão guardadas, só para você...

 

Um tiro chicoteou o ar e vibrou pelas paredes, ecoando pela canalização da chaminé.

 

Mais tarde, um corvo muito esquecido se interessava pelo resto de calor que emanava da chaminé quando o homem saiu da casa. Bem agasalhado para o rigoroso inverno, com uma grande mochila de andarilho, ele mancou pelo caminho do jardim branco e saiu pelo portão. Agora o corvo pôde ver: ele tinha uma corrente nos pés.

 

A neve alta e a corrente não deixaram o ogro solitário chegar tão rápido à sua próxima vítima. Mas ele não tarda, sabia o corvo.

 

Não havia ninguém no caminho da floresta. Começou a chover. O ogro parou, abriu sua mochila, tirou dali os olhos do suicidado. Ingeriu-os e viu. Viu um pequeno pedaço de caminho para outra casa.

 

 

(imagens@ jim atherton/james r. d. scott)

 

 

Udo Baingo. Formado em Administração aplicada à Engenharia pela University of Applied Sciences de Jena, Alemanha, tem uma Representação de Ilustradores e Fotógrafos [ www.udobaingo.com ]. Outras atividades em que se empenha são a de tradutor (alemão-português), músico, compositor, contista e cronista. Participou do Balaio de Textos de João Silvério Trevisan, onde seus poemas "Pegue às cinco", "Tá na mesa" e "Que coisa" foram publicados e analisados. As crônicas sobre suas experiências na Alemanha podem ser lidas em sua coluna "tUdo na Alemanha", no site Viver na Alemanha. Publica no seu blogue Umbigo de Pelúcia e no Meio Tom. Participa, desde 2006, da Oficina de Escritores, junto de grandes nomes da literatura fantástica brasileira atual (fantasia, ficção científica, terror e mistério).