A
imagem da cobra que engoliu um elefante é o início de um dos livros mais
lidos em todos os tempos. O
Pequeno Príncipe é um convite permanente à busca por planetas
cujos habitantes extraterrestres são arquétipos de nossos defeitos e
qualidades. A fome da cobra saciada com o elefante nos remete à ideia de
um processo cujo início coincide com o fim. Geometricamente, este
conceito pode ser traduzido por um círculo, que é uma metáfora para um
processo que se conclui com o seu reinício: um ciclo, que transforma o
começo em sinônimo de término, tornando opostos em iguais.
É
do escritor tcheco Franz Kafka um dos romances mais intrigantes da
literatura universal: A
Metamorfose. Raul Seixas eternizou o movimento da
transformação com sua canção "Metamorfose Ambulante", cujo título remete
ao nome de uma das mais criativas bandas musicais do Brasil, Os
Mutantes. Todas essas criações parecem ecoar a máxima de Lavoisier,
com sua constatação de que "na natureza nada se cria, nada se perde,
tudo se transforma". É dentro deste caldeirão de metamorfoses e
transformações que se encontra o documentário Lixo Extraordinário,
coprodução de Brasil e Reino Unido, com direção de João Jardim, Lucy
Walker e Karen Harley.
Boa
parte do cenário do documentário é o lixão de Gramacho, em Duque de
Caxias (RJ), o maior da América Latina. O mundialmente premiado artista
plástico brasileiro Vik Muniz é o condutor do documentário, cuja trama,
gravada ao longo de três anos, acompanha seu projeto social com
catadores do aterro de Gramacho. É preciso possuir genuína alma
artística para enxergar, em um terreno onde se deposita todo o material
que nós descartamos após garantirmos o conforto em nosso dia a dia, a
possibilidade de que latas de refrigerante, garrafas plásticas amassadas
e papéis rasgados recheados de barro se transformem em obra de arte.
Tudo isso somado aos próprios catadores, representantes autênticos da
parte de baixo da pirâmide social brasileira.
O
filme mostra o improvável casamento entre a realidade do aterro com sua
transformação em obra de arte — disputada por pessoas que se dispõem a
pagar milhares de libras em um leilão em Londres. A câmera em Lixo Extraordinário nos
deixa perplexos ao percebermos que o trabalho artístico de Vik Muniz,
disputado pelos participantes do leilão na Europa, é o resultado do
material que sobrou em uma disputa anterior: entre urubus, porcos e
catadores de lixo em Gramacho. O chique, neste cenário, vem do resíduo
rejeitado. O erudito convive com a ignorância. E antônimos recebem o
sinal de igual. Somos surpreendidos no cinema ao ouvirmos dos catadores
de lixo referências a nomes como Nietzsche, Maquiavel e Monalisa.
Assistir a Lixo
Extraordinário é, neste sentido, como ler um livro de Rubem
Fonseca, cujos personagens fazem o erudito sair da boca de
marginais.
A
câmera também acompanha a ideia de transformação sugerida no filme. A
imagem em zoom oferece uma alternativa de interpretação bastante
diferente quando vista do alto, transformando objetos sujos em adereços
para pessoas, que, de longe, não passam de formiguinhas. As tomadas
aéreas do aterro sugerem um quadro de Vik Muniz. O afastamento de câmera
nos mostra, em movimentos progressivos, a transformação do lixo em arte.
O olhar de João Jardim, Lucy Walker e Karen Harley está em busca do
resgate do fator humano que os resíduos de nossas vidas descartam. Uma
boneca velha e quebrada carrega a memória de uma criança se divertindo;
uma sandália Havaiana usada e suja representa um pé que caminha com
sensualidade pela praia.
Apesar
de conduzirem o filme com coerência, os diretores, no terço final do
documentário, tomam uma decisão equivocada, ao colocar a figura de Vik
Muniz acima de sua arte. Ao priorizarem o tom dramático, permitem que o
foco passe do interessante projeto que ele concebeu para um falso
messianismo do artista. O resultado são as lágrimas na tela, que chegam
secas à plateia.
O
círculo da reciclagem dos resíduos e de sua cinética transformação é,
entretanto, reforçado pelo cenário escolhido para as tomadas iniciais e
finais do filme: o auditório do Programa do Jô Soares, onde o
documentário começa, em uma entrevista com Vik Muniz, e onde termina, em
uma entrevista com o simpático líder dos catadores de lixo de Gramacho,
Tião. Lixo
Extraordinário é um documento de identidade de nosso país,
pois mostra que não podemos descartar o potencial de nossos resíduos.
Que o Pequeno Príncipe, ao assistir a esse documentário, possa confirmar
as palavras que disse no livro de Antoine de Saint–Exupéry: "Ser
homem é ser responsável. É sentir que colabora na construção do
mundo".