marat sebastiao | obra de vik muniz | foto de camila girardelli
 
 
 
 
 
 
 

A imagem da cobra que engoliu um elefante é o início de um dos livros mais lidos em todos os tempos. O Pequeno Príncipe é um convite permanente à busca por planetas cujos habitantes extraterrestres são arquétipos de nossos defeitos e qualidades. A fome da cobra saciada com o elefante nos remete à ideia de um processo cujo início coincide com o fim. Geometricamente, este conceito pode ser traduzido por um círculo, que é uma metáfora para um processo que se conclui com o seu reinício: um ciclo, que transforma o começo em sinônimo de término, tornando opostos em iguais.

É do escritor tcheco Franz Kafka um dos romances mais intrigantes da literatura universal: A Metamorfose. Raul Seixas eternizou o movimento da transformação com sua canção "Metamorfose Ambulante", cujo título remete ao nome de uma das mais criativas bandas musicais do Brasil, Os Mutantes. Todas essas criações parecem ecoar a máxima de Lavoisier, com sua constatação de que "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". É dentro deste caldeirão de metamorfoses e transformações que se encontra o documentário Lixo Extraordinário, coprodução de Brasil e Reino Unido, com direção de João Jardim, Lucy Walker e Karen Harley.

Boa parte do cenário do documentário é o lixão de Gramacho, em Duque de Caxias (RJ), o maior da América Latina. O mundialmente premiado artista plástico brasileiro Vik Muniz é o condutor do documentário, cuja trama, gravada ao longo de três anos, acompanha seu projeto social com catadores do aterro de Gramacho. É preciso possuir genuína alma artística para enxergar, em um terreno onde se deposita todo o material que nós descartamos após garantirmos o conforto em nosso dia a dia, a possibilidade de que latas de refrigerante, garrafas plásticas amassadas e papéis rasgados recheados de barro se transformem em obra de arte. Tudo isso somado aos próprios catadores, representantes autênticos da parte de baixo da pirâmide social brasileira.

O filme mostra o improvável casamento entre a realidade do aterro com sua transformação em obra de arte — disputada por pessoas que se dispõem a pagar milhares de libras em um leilão em Londres. A câmera em Lixo Extraordinário nos deixa perplexos ao percebermos que o trabalho artístico de Vik Muniz, disputado pelos participantes do leilão na Europa, é o resultado do material que sobrou em uma disputa anterior: entre urubus, porcos e catadores de lixo em Gramacho. O chique, neste cenário, vem do resíduo rejeitado. O erudito convive com a ignorância. E antônimos recebem o sinal de igual. Somos surpreendidos no cinema ao ouvirmos dos catadores de lixo referências a nomes como Nietzsche, Maquiavel e Monalisa. Assistir a Lixo Extraordinário é, neste sentido, como ler um livro de Rubem Fonseca, cujos personagens fazem o erudito sair da boca de marginais.

A câmera também acompanha a ideia de transformação sugerida no filme. A imagem em zoom oferece uma alternativa de interpretação bastante diferente quando vista do alto, transformando objetos sujos em adereços para pessoas, que, de longe, não passam de formiguinhas. As tomadas aéreas do aterro sugerem um quadro de Vik Muniz. O afastamento de câmera nos mostra, em movimentos progressivos, a transformação do lixo em arte. O olhar de João Jardim, Lucy Walker e Karen Harley está em busca do resgate do fator humano que os resíduos de nossas vidas descartam. Uma boneca velha e quebrada carrega a memória de uma criança se divertindo; uma sandália Havaiana usada e suja representa um pé que caminha com sensualidade pela praia.

Apesar de conduzirem o filme com coerência, os diretores, no terço final do documentário, tomam uma decisão equivocada, ao colocar a figura de Vik Muniz acima de sua arte. Ao priorizarem o tom dramático, permitem que o foco passe do interessante projeto que ele concebeu para um falso messianismo do artista. O resultado são as lágrimas na tela, que chegam secas à plateia.

O círculo da reciclagem dos resíduos e de sua cinética transformação é, entretanto, reforçado pelo cenário escolhido para as tomadas iniciais e finais do filme: o auditório do Programa do Jô Soares, onde o documentário começa, em uma entrevista com Vik Muniz, e onde termina, em uma entrevista com o simpático líder dos catadores de lixo de Gramacho, Tião. Lixo Extraordinário é um documento de identidade de nosso país, pois mostra que não podemos descartar o potencial de nossos resíduos. Que o Pequeno Príncipe, ao assistir a esse documentário, possa confirmar as palavras que disse no livro de Antoine de Saint–Exupéry: "Ser homem é ser responsável. É sentir que colabora na construção do mundo".

 

 

 

março, 2011