relva | cao guimarães | década de 1990
 
 
 
 
 


 

O poema

 

 

Do lado de casa há um lote vago e nele mora uma doida. Perto de casa há um poste que quando acende alivia as flores. Certa noite de lua cheia a doida foi brincar de ciranda perto de casa. No lote vago ainda mais vago cresceram plantas. O poste não quis acender e os vizinhos já estavam no cio. O comércio de crack na rua dezessete é feito por jovens em plena luz do dia. A doida continuava criança incomodando os vizinhos. A companhia de luz chegou e com ela uma ambulância (alguém trocava tiros). Enquanto trocavam a lâmpada a mãe dava porrada no menino sem motivo. O comércio de crack na rua dezessete é feito por jovens com menos de treze. Enquanto trocavam a lâmpada uma camisa-de-força calava a criança que a doida  trazia consigo. Em certa noite de lua cheia no lote vago ainda mais vago cresceram plantas e mágoas. As flores mal cuidadas foram pisoteadas pelos enfermeiros da ambulância. A mãe se desculpou  com o filho e lhe deu outra chance. Os vizinhos dormiram tranquilos coniventes com a desesperança. Os vizinhos antes de dormir retiram as asas e as dentaduras. O comércio de crack de raspadinha de produtos importados segue livre em qualquer rua. Perto de casa há um poste que quando acende alivia as flores. 

 

 

 

 

Razão

 

 

Este poema foi publicado no livro Dublê de Anjo (Mazza edições, 1996 – Prêmio Cidade de Belo Horizonte). Último poema do livro. Quando o terminei percebi que havia encontrado minha maneira ética e estética de concepção de poemas. Assim como no blogue Escrevo Ao Vivo [  http://escrevoaovivo.com ], no qual publico meus poemas-reportagens, o poema nasce de fatos que recebem um tratamento "onírico".

 

Realmente, no Bairro da Lagoa, havia uma vizinha que sofria de distúrbios mentais: apedrejou nossa casa e, na noite de lua cheia, brincava de ciranda pelas esquinas. Certa vez, o Bairro ganhou notoriedade porque foi primeira página do jornal Estado de Minas. Morava na Rua 16 e, na Rua 17, jovens comercializavam crack e pesavam as pedras na padaria da esquina. O crack, ainda no final dos anos oitenta, não tinha as dimensões que tem hoje. Um grande problema de saúde pública.

 

A inspiração do livro era o cinema. Pensei cada verso como uma cena. O poema foi concebido sob o desejo de desenvolver um roteiro. Cada ponto demarca um corte. Cada verso é um frame. Sua dimensão ética se traduz em sua verve política e social. Meus poemas sempre passam por questões humanas e sociais. Compro o risco dessas escolhas. O poema é espaço de gozo e reflexão. Poema para mim é olho no olho. Encontro, nunca uma fuga ou enigma vazio. Se eu logro tal intento? Ao leitor cabe, sempre, a última palavra.

 

março, 2011
 
 
 
 

Anizio Vianna (Belo Horizonte/MG). Publicou Dublê de anjo (1996), Itinerário do amor urbano (1998), Desalarmes (2006), Do amor como iícito (fragmento, 2011). Participou de antologias e recebeu diversos prêmios. O livro Itinerário do amor urbano é leitmotiv para os próximos trabalhos do Coletivo Ferpa de Cinema. Além de curtas e videopoemas, retomará em 2011 a parceria com o fotógrafo Rodrigo Machado. O segundo semestre  de 2011 marcará, também, o retorno da Banda Chicória, na qual é contrabaixista e principal letrista. Bloga no Escrevo ao Vivo [ http://escrevoaovivo.com ]. 

 

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