Três Sijôs

 

A inquilina

do barro

punha a mesa

e a cama

 

Soprava com o vento

pela haste do junco

Nadava num pato

em meu lago de pele

 

E não havia garças, libélulas; o sol não nascia

as colinas pulsavam

e havia uivos

 

 

***

 

Leve brisa

A delicada morcega

fadada a ficar longe

revirou meu sonho noturno

 

Quis tocá-la

Beijá-la kiss

Um halo brotou

circundando a lua

 

De manhã, era orvalho sobre a relva

E a mais feminina

das lendas se dobrou

 

 

***

 

O espírito se alforria

entre as folhas e a ramagem

A melhor experiência

é contemplar o colibri

 

Por quanto tempo andei

às cegas na cidade

no escuro das rotas

de dentro de mim?

 

Boraceia: mata de neblina no silêncio das manhãs

Muitas pegadas vou deixando por aqui

como as antas, os catetos e as aranhas

 

 

 

 

 

 

Poemas para Paul Celan

 

(Para Claudio Willer)

 

 

1- Disjunção

 

Às vezes começo a lembrar

daquilo que sugere

uma certa tarde nas dunas

de abóbadas alaranjadas

num fim de tarde

         com pombos

         e folhas arrastadas

 

de manhãs de sol com crianças

lambuzadas de frutas

e de uns estalidos de velhos que mascam a língua

sob o chapéu

 

De repente tudo pára

:

uma senhora

( um gato )

atravessa

o pátio

sem qualquer cerimônia

e arremessa minhas visões

para nenhures

para além

de

um

poço

cavado

jamais

 

 

 

2- Apneia

 

A tarde acorrentada

a um cano de torneira

e a noite mouca

 

À manhã

nem me ouso referir

: a claridade ofusca

 

Uma dama sentada à sombra

embala o vento que me foi roubado

 

 

 

3- O Louco

 

... e vagava

pela medula da própria alma

exilado

corporificado em água e polpa

como as entranhas de um coco

que se encarceram

na fibrosa intransigência

 

Nos bolsos

pensamentos ferviam-lhe

como besouros no guano

 

ideias vertiam

dos canais lacrimais pródigos em vida

 

e, se no escuro

tinha consciência

das próprias pústulas

 

no claro

era branco como giz

 

Talvez soubesse das coisas

 

Talvez guardasse a chave

das grandes verdades

 

pois enquanto muitos se mataram

na larica de viver

ele banqueteou

em seu casulo de fibra

sem ter que se morrer

 

e nos dias úteis da semana

quando as pulgas se vestiam de gala

e entoavam recitais com pompa de barão

ele dançava [ mas não ouvia ]

 

E ria

 

 

 

 

 

 

Abraço

 

(Para Alberto Marsicano)

 

Chãos apolares

 

Qualquer diversidade interessa. Até a

que se intuiu

                   & se perdeu

 

Fósseis nadam-me extintos

na ogiva da pele

& sou fiel à vaga neblina siluriana

 

& aos nós da liana

 

& aos cardumes de areia

 

Bebo dos cálices da flora. Cheiro.

Afago os ninhos de seda

                   Um jaguar lambe a cria

 

Nas manhãs que se foram

sou discípulo dos ossos

— pó das Moiras      a fiar

 

& os fios de cada um

numa

roda da fortuna

 

: todas as cordas

da sítara

 

 

 

 

 

 

Burning Ash

 

(Para José Geraldo Neres)

 

1.

árvores sem copa

répteis / couro de gato

 

descompasso nas horas

que fogem das lampreias

num fluir

longínquo

& acinzentado

:

mandíbula na areia

escalpo na mão

olheiras transfixadas na planura cárstica

 

derme / dolomita

berne

 

hamadríades

mortas

 

pedregulho

borra

silêncio / barro

 

napeias

sepultadas no colúvio

 

oceânides

de

sal

 

 

 

2.

qualquer iluminação escondida

sob a manta densa

de xisto pretérito

na via de violetas glabras

 

— violetas

com folhas de zircão

& pétalas

de osso de siba —

 

jugular sedada

 

carótida partida

 

 

 

3.

passou fácil

pelo túnel do parto

a tragédia

 

a mãe / esvaziada / branca

busca alento

na parede do derradeiro poço

 

: estende seus olhos

no deserto

 

: estende seus olhos de mãe

sobre o deserto

pra ver a filha mastigar distância

 

& logo penderá seu corpo para trás

 

:

ossos

sobre a pilha

de ossos

 

 

 

4.

os xamãs acocorados

previram o desfecho

na fumaça

 

o ovo branco interpelado

na sibéria de alvaiade

é

nódoa de sol

na sibéria calcinada

de alvaiade

 

inda se ouve

o eco da pedrada

no pássaro              em

voo

 

 

 

 

 

Qahoba Haa: Casa Cadente

 

 

(Aos poetas Sérgio Medeiros —

tradutor do Popol Vuh para o português —,

Benny Franklin e Benoni Araújo)

 

 

1

 

Imergi meu corpo

num tonel de heranças

bem na quilha daquela hora ressonante

Oca hora

do tabernáculo de um grande molusco

devorador de areia e de vidro

 

 

 

2

 

O tempo passa para todos

e abre sulcos

 

A vida inteira

imergi minhas amplidões despudoradas

nas fendas de mulheres transparentemente mornas

com dentes nacarados

que, via-de-regra

regavam seus quintais com aquavita

 

Cheirei de todas as rosas

Provei das gorgônias mais vis

         e agora estou aqui

         neste barranco — velho

a decifrar enigmas

 

 

 

3

 

Tantos assombros, mais um:

um mosquito esmagado

nas páginas do Popol Vuh:

bem no ponto onde Hun Ah Pu

e X Balam Ke, os gêmeos Caçador

e Jaguar Veado

puseram os mosquitos a seguir

pela estrada negra

para picar pessoas e os bonecos

de pau

 

 

 

4

 

R Atit Qih / R Atit Zak

(avó do dia / avó da luz)

Bendita demência escarlate

Minhas avós jamais suspeitaram de seus próprios

conselhos

 


 

 

 

 

 
 

 

 

Assolação

 

(Para Crosby, Stills, Nash & Young

pelas aulas de voo livre)

 

 

("Tenho sido todos esses homens e mulheres desclorofilados

que deambulam autômatos na aridez das ruas...".

- Adriana Cristina Razia)

 

 

1.

Arcaica sensação

de iminência de ser devorado

ao seguir por este vale de ostras

 

ao varar

o arquipélago de sombras

carregado

de corpos ignotos

& lembranças de porões

/ escuros /

/ escusos /

pespontado

de infâncias

reclusas

 

Vem-me a infância de quintal

vem-me a criança perdida

sob as ramas de um chuchuzeiro

repleto de percevejos com tíbias dilatadas

& asas ambíguas

— bichos negros

parados

estanques

mas que repentinamente                        voavam pesado

em traço curto

/ ainda mais negros /

sobre a cabeleira verde

que escalava os muros

de rusticidade infinda

 

Essas dobras de hoje

regam aqueles sustos

& tantos outros

como o bisturi & a máscara de clorofórmio

o medo do escuro

o medo do espelho

em dias de chuva

dos safanões

& dos espíritos

 

E havia ratos no porão

 

ratos, ratinhos

ratões

& uma folha seca a flutuar na tona

 

 

 

2.

Agora, nesta hora perpétua

martelo o basalto

& inauguro a petrologia

do silêncio

 

; o acalanto e o horror

copulam na cambraia

que rouba a alegria das cores

 

&

debaixo da sombra cinza das lápides

um deus odioso se esfrega no mais amoroso dos demônios

 

 

 

3.

Tento dialogar com a razão

mas meus ouvidos ainda estão surdos

como cegos latiam os bagres

noutros tempos

de sobressalto

 

Então vou puindo

ruindo-me

no centro da roedura

 

 

 

4.

Caso interesse:

sim

houve quem estendesse-me as mãos

sem muita ênfase

então escolhi as carolinas & a ambrosia

& acabei lambuzado

na baba fóssil

desta vida de desmonte

 

 

 

 

 

O Vaga-Lume

 

(Para Marcia Tiburi)

 

 

Vico

&

Nietzsche

:

 

creio que era uma polca

aquilo que dançavam

por entre as ruas

do cemitério

 

Iam e vinham

a percorrer os muros

com saias rodadas

         de camponesa

pra voltar ao mesmo lugar

mil vezes

 

D'um vaso de sempre-vivas

o Uroboro espiava

com a cauda

afogada na boca

 

&

 

eu, que me continha

sob o limbo d'uma folha de Ficus

[ que estrangulava

outra grande morácea ]

                            acendi as luzes

                            e voei à beira do rio

                            pra fugir

dos pensamentos

compulsivos

 

                            Heráclito estava lá

 

— em lugar algum se compra sossego

quando a noite

desce

 

 

 

 

 

Fin d'Voie

 

(Para Jacques Roubaud)

 

 

Estilhas

talharam o dia

quando a pedra

caiu

 

O outono

aderido à fuligem

rolou na cegueira

antecipando o inverno

 

Toda alegria

emigrou

de antemão

pela rota das narcejas

 

pra morrer no sul

 

lá no sul

 

no extremo do sul

 

onde tudo

a-bunda

 

 

 

 

 

O Louco Diante do Espelho

 

(Para Michael McClure,

Ann Waldman e Gary Snyder)

 

 

Estou no rastro

das noites

; busco a leveza

do óleo

e o ímpeto hormonal

do meio-dia

 

 

É com olhos

e lentidão moluscos

que vejo o mundo

e também trago a casa às costas

 

Relevo toda viscosidade

todos os géis, plasmas

; qualquer latejar é um caro amigo que tenho

 

Afago a brisa e o vento

Retribuo suas carícias

quando meus pelos se eriçam

nas touceiras dos guaraxains

 

e bendigo o leite da lua

que se derrama sobre a flora

que penetra na solidão ondulante do mar

que reluz, concentrado, na superfície limosa da turfa

 

Já paraste num acidente da paisagem

pra sentir nesses átimos

teu próprio respiro ?

 

pois então... diz-me quem sou

que

dessas coisas

me nutro

 

Nunca deixei de enaltecer o leite

das fêmeas

o leite que veio do leite do macho

 

e sempre há, ao longo das trilhas

um lagarto verde

que me acena

co'a cauda

 

Sou também sensível ao tempo

e ao tato

feito uma planária na planície

ou uma pequena elevação

de tecido erétil

encravado no vértice

de um pequeno fiorde

logo ao norte de Kristiansund

 

daí

encrespo-me ao vento

, como disse

 

E não sou homem de bares

Cultivo um mar de samambaias sob a pele

um mar de avencas

e bons presságios

 

e por mais que migrem os pássaros

as batuíras sempre retornam a mim

pois sou homem de amar

 

Já desfiei tramas densas de sisal e ódio

mas clareio as olheiras

dos que minguam na sombra

 

; destilo iras

e devolvo alento

Retorno afeição

 

 

Há quem me veja

como o louco na torre

o doidão na bastilha

(Mas também não se vive de ilha?)

 

Silêncios também me sustentam

 : mesmo mortos

os escribas de Hamurabi

os grão-vizires

 Bach e o tropel dos hunos

ressoam

em minhas manhãs

 

Prefiro ter-me

como o airado aéreo das amplidões

, aquele a quem

as antigas bruxas

cantam e cavoucam a terra

dando forma a meus jardins

Tenho brisa perfumada

no alvorecer

 

E tu

que ora me fitas nos olhos

e súbito baixas a guarda

quando me desligo

pra elaborar um pensamento

, como é que tu me estimas?

 

O que dizes

das qualificações que recebo

dos robôs cartesianos

que passam a vida

repetindo tarefas

e

etiquetando latas?

 

De que vale

semear relógios?

 

Esta compulsão

ao pentear a barba

me traz alívio

momentâneo

Portanto sou feliz

e abraço o mundo

 

e nunca vi galinhas

a desprezar insetos

nem porcos um banho de lama

então repito que sou feliz

e abraço o mundo

 

Na estação das águas

contemplo os canteiros das bruxas

; no estio

retiro os camarões das tocas

— eis de onde vem minha extrema felicidade

em abraçar o mundo

 

Eis de onde vem

o primeiro cio das potras

a paisagem em semi-tons

e o olvidar constante

 

 

 

 

 

 

A Infinitude a Parir

 

(Para Bianca Feijó & Inês Ramos)

 

 

Plena manhã

da estação das cores

 

revolvo o quintal num silêncio morno

 

         num silêncio lento

 

do caminhar de um velho

         de pijama

em busca de perceber as contrações

da infinitude a parir

 

Desde que enlouqueci

ganhei novos direitos

 

e um novo dialeto

 

: recito duma cartilha

que poucos saberão solfejar

 

Apareceram pulgões na roseira:

                   fêmea gera fêmea

que gera

fêmea

que gera fê-

mea

que...

 

Não há machos

 

A neta está no interior da filha

que sequer inda nasceu

e lá atrás

no futuro

celulazinhas idênticas à avó

aguardam num sonho profundo

 

Há previsão de chuva para hoje

Um cavalo de nuvem cavalga o vento

 

Na casca do limoeiro

uma varejeira verde

metálica

está prestes a tomar uma decisão

 

                   — coisa que desaprendi —

 

                   ela espera a boa nova da carniça

                   e seus olhos são mais belos do que deus

 

 

 

 

 

 

Um Mote pra Bolero

 

(Para Lau Siqueira)

 

 

Só um desespero

maior

poderia me convencer

de certos dogmas

 

Como dobrar-me

nas manhãs

em que as pequenas senhorinhas

 de ossos puídos

visitam cemitérios de cálcio

onde habitam

os que supriam suas entranhas

de esperma

[ & quase nada além disso ]?

 

Também os cães enterram ossos

 

& nem por isso

quero crer

que tudo o que é da terra

é cataclismo

 

 

Ouvi histórias

d'um joalheiro amblíope

que a vida toda se banhou na lama suja

e nunca se perdeu do próprio brilho

 

Além da cerca pasta a vara

das mais inviáveis possibilidades

& tudo se reverte

 

o resto é a mais pura

lavagem

 

 

 

 

 

 

Conto I

 

(Para meus alunos)

 

 

No vergar da tarde

um dos olhos do pássaro

escorreu

pela casca da árvore

 

rolou

pelas bordaduras da horta

coberto de muco

 

foi secando / agregando detritos

 

perdeu-se num labirinto

de entulho

 

subiu pela tomba das saúvas

 

atiçou avalanches

| & parou |

 

— seco / coriáceo / vítreo —

na crista do vulcão

onde as formigas desciam

com as folhas

: a órbita-olheiro

não lhe serviu

Veio então a escuridão girina

— delírio terção de lua nova —

 

De manhã, um homem descalço

com uma haste de capim entre os dentes

especulou, com franqueza, sua própria 

adolescência de rotina

 

& o pássaro caolho pousou na roldana do poço

& o pássaro  caolho

recitou / piou

sua mais plena integridade

                                                         camoniana

 
 
[imagens ©sebastian j.]
 
 

 

Assis de Mello é zoólogo, docente na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita filho, Campus de Botucatu. Apesar de cientista, passa 50% de seu tempo duelando com Descartes e tudo aquilo que é excessivamente racional, pois está convicto de que certa irracionalidade deve trazer felicidade. Publicou o livro de poemas Na borda da ilha (São Paulo: Lumme Editor, 2010), que pode ser encontrado aqui. Mantém o blogue Coisas do Chico [http://coisasdochico.blogspot.com]