©mira perlov
 
 
 
                                                                    




David Perlov ensinou os israelenses a ver o mundo. E a si mesmos. Sionista convicto, tinha nas diversas modalidades artísticas que praticou o seu instrumento de expressão, quando o establishment, via-se às voltas com as dificuldades de enfrentar as mudanças que o país sofria na passagem da sociedade ideológica para a pós-ideológica. Os sonhos pessoais negavam-se a se submeter à soberania do suposto interesse geral. Um conto dos anos 30, "Efraim volta para a alfafa", de S. Izhar, já ilustra a situação ao contar a história de um kibutsnik que, entediado com o trabalho na alfafa, pede transferência para o pomar que lhe parece uma filial do Paraíso. O pedido é negado em função dos objetivos coletivistas do kibuts. Efraim não tem saída a não ser retornar à alfafa. Leitura dupla: do ponto de vista ideológico então vigente, ele foi um herói, mas também pode ser visto como um rebelde reprimido.

A arte, como sempre, detectava as tensões. A propaganda literária, nos moldes do que o crítico norte-americano Robert Alter chamou de "realismo sionista", começava a ceder espaço para a ironia e a subjetividade. O poema "Um instante de silêncio", de Natan Zach, amigo de David, é considerado um marco nesse sentido. Em vez da linguagem eloqüente de um Natan Alterman, o estilo, como poderia dizer, lapidado por dentro, contido e inteligentíssimo de Natan Zach, que se tornou tanto um dos grandes poetas como um dos grandes críticos israelenses. Até então a literatura e a arte do país "deveriam" estar voltadas para o coletivo, para os objetivos da construção nacional, sob o signo de Efraim e sua alfafa, mas depois disso a subjetividade calcada veio à tona. Na poesia de Zach e de Iehudá Amihai, nos questionamentos de Yoram Kaniuk, A. B. Yehoshua e Amós Oz etc.

No entanto, o desafio de David ia além daquele enfrentado pelos escritores no que se refere à produção de sua arte. Todos sabemos, além da vontade, um poeta ou narrador só depende de lápis e papel — isso não é apenas metáfora —, no momento da criação. E mesmo a publicação não é tão complicada, embora nem sempre seja tão acessível. No cinema a coisa muda muito de figura, é uma indústria com suas diversas e complexas implicações: custo, propostas e divergências ideológicas, entre outros fatores. Mas quem viu "Jerusalém", o premiado documentário de David, percebeu que por trás da câmara havia um olho muito sensível, muito sutil.

O documentário, que tem um compromisso explícito com a "realidade objetiva", implica um desafio a mais, portanto. O cineasta assume o ponto de vista de seus patrocinadores — o governo, um grupo político ou econômico, tanto faz —, mas pode, ao mesmo tempo, se tiver talento bastante, introduzir aí a sua subjetividade. Isso se realizaria plenamente na série dos "Diários" de David, que à primeira mirada seriam contraditórios na base. Como um diário íntimo nasceria tão público? Como um documento se tornaria lírico? Como o olho da verdade se tornaria o olho poético, sem negá-lo, mas completando-o? Para revelar a verdade histórica a partir dos nervos daquele homem que passa na rua e segue anônimo?

Seu compromisso com a epopéia israelense foi integral. O que não impediu que mantivesse a memória brasileira, o amor pela língua portuguesa, sobre a qual falava com leve sotaque e delicada precisão afetiva, os amigos, as ruas, os cenários do Rio e de São Paulo. Passou um tempo em Paris, onde aprimorou o desenho e entrou no cinema, antes de trocar o mundo por Israel. Ele me disse, certa vez, com aquela sua voz trovejada: "A Europa... a Europa é um lugar onde você caminha pelas ruas pensando numa composição de Debussy. O vento joga um papel nos seus pés, você pega, é uma partitura de Debussy. Mas é um lugar onde alguém vai dizer: olha, o nome dele é David, ele tem o nariz assim, vai ver que ele é judeu, vamos pegá-lo. Morar? Para morar só há dois lugares, Israel e o Brasil". Totalidades. Anêmonas, calaniot.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

março, 2011