CARRANCAS

 

No elevador, sobem quatro homens, três jovens, um senhor. O mais velho vira-se para um dos moços, seu vizinho:

— Não quer subir?

Os jovens são amigos e se entreolham, divertidos.

— Só se for agora — responde o vizinho.

— Ótimo — o velho se alegra.

Passam do andar em que saltariam e vão para o quarto — o andar do senhor.

— Entrem.

A casa asfixiada por móveis e tapetes. Os móveis imitam peças centenárias; as cortinas, escuras e fechadas. Casa como coisa nobre: séria, solene, lúgubre. Em meio a todo aquele século dezenove (há quem goste), dissonantes, indiferentes carrancas.

— E isso?

— Carrancas.

— Não têm nada a ver com o resto — reclama o jovem, incapaz de aguentar uma contradição.

— Gosto delas.

O rapaz, cruel como as crianças:

— Tétricas — exibe a ignorância autoindulgente, como se carrancas pudessem ser angélicas.  

Sentam-se no sofá verde-musgo, conversam, enquanto os outros dois passeiam pela sala. O moço apenas pontua, de vez em quando, o discurso do próximo que, a cara amarrotada pelas décadas, esquece trejeitos sedutores e se derrama em queixas. Confuso, o rapaz escuta que o senhor está prestes a perder o emprego. E ouve a história de toda a sua vida. A dor pior, que ele não diz, é a da solidão, crônica. O rosto, vincos fundos e longos, sugere o de alguém que passe o tempo todo tenso, a face contrita como a do pecador arrependido que às vezes, bruscamente, se abre num riso:

— Uísque?

— Não bebo.   

Falam. Os outros rapazes, ociosos, exploram o apartamento: vídeos, discos. O jovem, cansado do papo, resolve vingar-se. Costas apoiadas no encosto do sofá, arrisca:

— Se eu fosse você, sabe o que faria?

O outro responde "não" com o rosto.

— Quando estivesse com raiva, jogava essas carrancas fora. Pela janela. As três.

O dono da casa, sabotado, desinteressa-se da conversa. E, pouco depois, os garotos saem. 

Dias mais tarde, do apartamento onde mora, no terceiro andar, o jovem ouve o ruído surdo, TUM, algo desaba e bate lá em baixo, TUM, o estrondo oco. Vai à janela e, na calçada em frente ao prédio, vê as carrancas que despencam.

— O que é que você está fazendo? — ele olha para cima.

— Despedido — informa o velho, que chora rindo.

— E daí, ficou maluco? — boca de espanto. O outro está bêbado, bêbado de raiva, e o jovem sente o vento da terceira peça, que lhe passa junto às franjas.

— Seguindo seu conselho — o velho bufa e zune uma quarta e inesperada escultura.

Lânguido, de repente doce, ri:

— Não quer subir?

 

 

 
 
 
 

 
 
 
 
 
 

XAMPU

 

Me larga!

Em frente à farmácia, o garoto grita, preso pelos pulsos por um homem de jaleco branco.

Me larga!

Outro homem, que passa, para; pergunta o que há, pede que solte o garoto. O de jaleco mostra as gengivas:

Não te mete! Sai fora.

O dono da farmácia vem de dentro da loja com a mesma expressão no rosto e a mesma frase na boca:

Não sabe o que ele fez! Sai fora.

Acharem que estão sendo injustos os deixa irritados. O moleque, na presença de alguém a seu favor, apela:

Socorro, moço!

Um quarto homem surge do nada, apresenta-se como lojista e declara:

Se é na minha loja, dou porrada.

O passante tenta argumentar e engole:

E ninguém faz nada. Sai fora.

O menino furtara. Ou melhor, tentara o furto, rendendo-se ao fascínio do xampu. Visto, apontado e pego, urra como se fossem matá-lo, terror talvez de ir parar na polícia: o dono da farmácia telefonara. A cola tóxica, largada na pressa da fuga, jaz nas mãos do comerciante, plástico amarrotado e sujo.

Esses meninos não têm culpa discursa o passante, que não reagira às hostilidades: o orgulho lhe ditara duas ou três respostas que ele reprime. O garoto, arrastado para o fundo da loja, continua a gritar. Seu defensor entende a indignação dos lesados e se oferece para pagar o prejuízo. O comerciante recusa, o dano é moral.

A culpa é do Estado insiste o popular enquanto espera, ao lado de outros, a chegada da polícia. O da farmácia, mais calmo, assente:

Falta estrutura.

O clima punge, a polícia tarda. O comerciante, instado pelas razões do passante sensível ou pelas considerações práticas de outro espectador, que alerta para "uma vingança" –, decide soltar o moleque. O funcionário o traz do fundo da loja. Garoto de uns 12 anos, moreno, cabelo curto. Está sujo, olhos esbugalhados de choro. Na calçada, seu algoz o larga. O menino se afasta, tonto, uns metros; cata no chão uma pedra, ameaça jogá-la, xingando. Joga.  

A perseguição recomeça. A caça e os dois que a perseguem atravessam a rua de automóveis indiferentes além do homem de jaleco, um pipoqueiro das redondezas empenha-se na corrida. Aparenta a mesma indignação dos da farmácia.

Vem o moleque, trazido de volta, exausto. Aqui, o passante comete seu erro: na ansiedade de obter a confiança dos presentes, formula instantaneamente uma tática e, mal o menino chega, berra:

Te levo daqui e você não volta mais, viu, moleque? exibindo autoridade.

O garoto, ao som da voz dura, desfalece, desmonta, cai, despenca das pernas, literalmente desmancha: na queda oferece, como um cristo, os pulsos o adulto em frente a ele agora a pedir que o prendam e o livrem do tombo; geme sem articular palavra. O homem ajuda o menino a levantar-se, e o círculo de curiosos lentamente se dispersa.

No bar próximo, "me paga uma água", a mineral sem gás e sem gelo. Mas o garoto, trêmulo, olha para ele como se pertencesse à legião dos adversários. Andam alguns metros, afastam-se um do outro e, mirando-se de longe, seguem para lados opostos.

 

 

[Do livro Contos canhotos — Pizzarelli na danceteria e outras histórias. Brasília: LGE, 2010]

 

 
 

[imagens @rodrigo kore]
 
 
 
 
 
 
 
Fernando Marques é professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, jornalista, escritor e compositor. Doutor em literatura brasileira pela UnB com tese sobre teatro musical. Publicou Retratos de mulher (poesia, Varanda), (adaptação em verso do Woyzeck de Büchner) e o livro-CD Últimos — comédia musical em dois atos (peças teatrais, ambas pela Perspectiva). Lançou em 2010 o livro Contos canhotos — Pizzarelli na danceteria e outras histórias (LGE). [www.fernandomarques.art.br]