Pode ser lugar comum afirmar que a poesia é a linguagem artística que mais se aproxima da música, dada a sua simbiose desde tempos remotos. No entanto,  nunca é demais ressaltar que, em alguns poetas, essa relação é ainda mais intensa, como é o caso de Beatriz Helena Ramos Amaral, que gravou com o músico Alberto Marsicano o CD Ressonâncias1, recém-lançado e apresentado em primeira audição na Hora H - 2010, homenagem a Haroldo de Campos, realizada na Casa das Rosas — Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura — em São Paulo, em sua sétima edição.

O CD apresenta, ao som dos ragas de Marsicano, 26 poemas de Beatriz Amaral todos retirados de suas mais recentes publicações: Alquimia dos Círculos (São Paulo: Escrituras, 2003) e Luas de Júpiter (Belo Horizonte: Anome Livros, 2007) e mais 2 poemas de Haroldo de Campos — "A poesia explicada em Tenerife 1 e 2" de Crisantempo (São Paulo: Perspectiva, 1998).

Comentando a relação poesia-música, a partir do poema "À Música", de Rilke, traduzido por Paulo Quintela, J. J.  de Moraes (O que é a Música. São Paulo: Círculo do Livro, p. 170), afirma: "Essa zona de intersecção de linguagens, na qual se perdem alguns dos contornos precisos de cada código, pode inclusive funcionar como um espaço relativizador, em que ambas as linguagens são como que iluminadas sob prismas novos, insuspeitados".

Beatriz confirmou essa mútua iluminação em depoimento prestado a grupo de estudos da PUC-SP, em 13 de outubro de 2010, afirmando que a tessitura do poema é híbrida, interdisciplinar, e muitos poetas a manifestam (seja entre poesia e música, ou poesia e artes visuais), como Walter Silveira, Augusto de Campos, Tadeu Jungle e Ferreira Gullar, lembrados pela autora nessa ocasião. A essa pequena lista, tantos outros poderiam ser acrescentados, como Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Rainer Maria Rilke, Charles Baudelaire...

 

 

beatriz amaral

 

 

Na contracapa do CD, Beatriz qualifica seu percurso artístico como: "Música na raiz do poema. Poesia e música. Desde sempre". Essa relação, visceral, por assim dizer, levou-a a cursar a Faculdade de Música (FASM - Faculdade Santa Marcelina, onde se graduou em violão erudito, instrumento cujo aprendizado iniciou na infância) ao mesmo tempo em que cursou Direito, na USP, na década de 80. Ou seja, desde seus primeiros livros, já havia essa ressonância entre as duas linguagens que agora se explicita na gravação desse disco. Fui, em muitas ocasiões, testemunha dessa parceria que naturalmente se formou entre ela e Marsicano em 1998, ambos amigos do poeta Haroldo de Campos, homenageado por Beatriz no belo poema "Transignantia para Haroldo de Campos" (publicado no penúltimo livro, Alquimia dos Círculos) e incluído na faixa 14 do CD.

Alberto Marsicano, além de exímio sitarista, indicado ao 49º Grammy, em 2007, por gravações da obra de Jimmy Hendrix (Sitar Hendrix), é também poeta, tradutor, filósofo e ensaísta. Neste CD, Marsicano acompanha a leitura de Beatriz com ragas, música clássica indiana, cujo termo, segundo ele mesmo (A música clássica da Índia. São Paulo: Perspectiva, 2006, no capítulo "Raga, Aquilo que colore", p. 36 a 57.), provém do sânscrito Ranja, que significa cor: "Cada raga tem uma coloração específica, como também um cenário mítico. Estes relatos mitológicos em que os deuses e os semi-deuses associados aos ragas são minuciosamente descritos em suas vestes, ornamentos e moradas, encontram-se em compêndios milenares como o Ragasagara (Oceano de Ragas)". Ainda seguindo as palavras do mestre: "Cada Raga é um verdadeiro sistema solar de notas rodopiando ao redor do centro tonal, com planetas maiores, menores e satélites (...) O Raga é um ser determinado, um ser que quanto mais conhecemos mais se torna íntimo. (...) A estrutura dos Ragas não apenas incorpora o conceito de consonância como também o de dissonância. Embora os Ragas tenham sequências sonoras ascendentes e descendentes muito precisas, o intérprete tem total liberdade de utilizar notas fora destas escalas para obter efeitos especiais".

Nesse livre diálogo entre música e palavra, o ouvinte vai paulatinamente deslocando-se rumo a um outro plano, lá onde os versos entrelaçam-se aos sons e nessa teia todos os sentidos são convocados pela vibração intensa que nos assola (espelhando a própria estrutura sinestésica do raga), obliterando por vezes a cognição, transportando-nos a uma viagem sideral em meio aos signos. De fato, cada frase, palavra, fonema, junto aos sons do sitar, entram-nos pelos poros, fazendo o ouvinte fruí-los sobretudo na sua materialidade sígnica, naquilo que, dentro das categorias fenomenológicas do semioticista norte-americano Charles Sanders Peirce, poder-se-ia classificar como primeiridade, em que os elementos mínimos da percepção são captados na sua máxima fugacidade-fragilidade, tão tenra que nem podemos exprimi-la em palavras sem cair no risco da racionalização, o que nos afastaria necessariamente desse estado primeiro. Nesse caso, então, a audição do CD é muito ampliada, num sentido até terapêutico, lúdico, podendo ser apreciado por muitos ouvintes, aí incluídas crianças e pessoas não necessariamente versadas nas duas linguagens: poesia e música. Claro, também, pode-se escutar a obra pondo-se em ação as duas outras categorias: a secundidade e a terceridade, dependendo do grau de conhecimento do ouvinte.

Vale lembrar ainda que o raga (de acordo com Marsicano) "consiste na representação sonora do kundalini; daí advém sua força vibracional e seu caráter iniciático. (...) Os Ragas não apenas relacionam-se com as cores, períodos do dia, estações do ano e elementos da natureza como também do corpo humano. A medicina ayurvédica utiliza acordes e escalas sonoras para agir diretamente sobre nosso corpo. (...) Na música clássica indiana, as notas multiplicam-se biologicamente como células e tudo pulsa organicamente. O corpo humano é um grande ressonador e o efeito físico do som apresenta grande influência sobre ele".

Algumas palavras agora sobre a seleção de textos: os poemas de Haroldo que abrem o disco refletem a reflexão metalinguística que está na base do percurso poético de Beatriz Amaral, levando-a a afirmar na contracapa: "Os poemas 'A Poesia explicada em Tenerife 1  e 2', de Haroldo de Campos, encantam-me desde que os conheci, lidos pelo próprio autor. [...] O claro-escuro dos poemas e sua intensa plasticidade desenham o nascimento da poesia, tema recorrente em meu pensamento. Não hesitei em escolhê-los para abrir este CD".

De fato, neste disco, assim como nos poemas em geral de Beatriz, é o nascimento da poesia que se celebra, na sua mais plena união à música, como em "Metalinguagem", de Alquimia de Círculos, 8ª faixa, em que a poeta retoma essa plasticidade em imagens inusitadas que são a marca de sua poética, como: "música de vidro", "som nas arestas", "âncora no ventre", "safira no abismo".

A escolha dá — e era mesmo de se esperar — ênfase a alguns poemas cujos títulos fazem alusão mais direta a termos musicais, como: "Adágio", "Arpejo", "Ária", "Intervalo", "Ressonância I e II", "Ricercari", "Dissonância", "Ritmo". No entanto, essa relação não se atém a eles; ao contrário, está na base de todos eles e encontra-se nas reiteradas assonâncias e aliterações ("fricção em/ franjas de tapete/ e as asas da xícara, / fricativas, se opondo" [...] "xícaras que guardam/ o modo do não-uso/ para o bule, / líquida máscara/ pingo, ponte, ponteio/ salgada pólvora, / a culpa de/ estar pronta te define", do poema "A Lápis"), ou no flagrante: "(estridência/ do que se não/ pode)" (em "Álgebra"), ambos de Luas de Júpiter.

O disco expõe, o tempo todo, inspiradas fulgurações que a música lhe oferece, além dos jogos sintático-semânticos, que se encontram em trechos como:

 

 

"eu disse alaúde

e súbito ouvi

todas as cordas

se afinarem

também vi

contra as pedras

um barco narrativo

perdidos remos,

pares, réguas

 

o choque das pa

lavras explodindo

no ambíguo precipício

sem resposta"

 

 

("Ricercari", de Luas de Júpiter, que recebeu o Premio Internazionale di Poesia Francesco de Michelle, da Provincia de Caserta, Itália, em 2006.)

Essa união música-poesia compõe, nas palavras do músico-poeta Marsicano, em seu Poema-Prefácio ao livro Luas de Júpiter: "melissoantes palavras/ qual  volitores, / bólides siderais/ [que] cruzam os turvos e glaucos céus/ anunciando a nova e inaudita poética".

O CD Ressonâncias2 é, enfim, lucidez e vertigem: o todo possível sonoro (por Beatriz, em Alquimia dos Círculos) a que chegam esses dois competentes artistas na exploração mútua de suas habilidades poéticas.

 

 

Notas

 

1Ressonâncias > Ficha técnica > Voz: Beatriz Amaral [http://www.beatrizhramaral.com.br ] / Sitar: Alberto Marsicano; Gravação, edição e mixagem: MC2 / Cid Campos; Capa: Arte de Nina Moraes.

 

2Para as faixas "Peixes" e "Tecido", o videoartista Grima Grimaldi criou vídeos que podem ser vistos no Youtube:

 

http://www.youtube.com/watch?v=9iIeLWseMLA&feature=related

 

http://www.youtube.com/watch?v=zLX9OtGSLl8

 

 

 
 
março, 2011
 
 
 
 

 

Maria Cecília de Salles Freire César. Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa – USP, autora de A dança das vozes no evangelho poético de José Saramago (1996) e As representações do imaginário popular nos romances de Carlos de Oliveira (2007).