HOJE A NOITE SAI À CAÇA DA PALAVRA MORTA

 

 

1

 

hoje a noite sai à caça da palavra morta.

 

dou-lhe um grampeador para emendar as bocas

que um Deus triste dividiu como se fosse pão.

 

(porque eu trago, Senhor, os sinais

da tua cruel hemorragia pelo corpo.)

 

 

2

 

lá fora um homem cola o ouvido

ao seu próprio pulso de bicho gago

 

(falta à sua fala os dois lábios grossos

que eu roubei junto daquela costela).

 

 

3

 

"Um buraco é meu pastor", ele diz, irado, "tudo me faltará".

 

 

25/01/2011

 

 

 

 

 

 

TEU NOME EM MIM

 

teu nome em mim

ainda espera uma porta, uma

 

 

*

 

boca, ainda cresce

a tua fala na acústica

 

 

*

 

da flor caída.

 

 

*

 

vê como a casa

dobra de tempo no inverno:

 

 

*

 

há muito venta o teu nome

no pouco aberto desta janela.

 

 

 

 

 

 

SEM TÍTULO

 

 

1

 

toco a ponta erógena

da faca: há um sexo no inóx.

 

 

2

 

moras na outra margem

deste fio, bem lá dentro,

 

de onde salto

do meu olho (antinarciso) contra mim.

 

 

3

 

hoje à noite saio à tua caça.

 

 

é o teu nome que me cospe

uma cascata de varizes no pescoço.

 

 

4

 

vou abri-lo.

 

 

 

 

 

 

COMO SE EU MESMA PASSASSE ADIANTE DA TESTA

 

Para Daniel Faria

 

 

1

 

como se eu mesma passasse adiante da testa,

da nudez da pele, como se contra o meu rosto rompesse o último rosto do coração.

 

 

2

 

andas em pé na calçada que dá para a esquina

 

em que ainda espero

em que ainda paras.

 

como se tu continuasses em ti.

como se todo este tempo tu fosses a borda de que estou prestes a despencar.

 

(deixa-te vires, ao menos hoje, livre de costas para virar.)

 

 

3

 

uma distância de mim te arremessa para o meu olho mais fundo.

 

não tenho braços para te erguer.

não tenho cordas para subires na voz que diz teu nome fora do meu.

 

 

4

 

tarde da noite?

 

sonho que tu me caminhas ainda.

que tu regressas.

 

 

5

 

que tu me trazes de volta o corpo para que eu possa morrer.

 

 

 

 

 

 

SEM TÍTULO

 

 

1

 

rótulas, gaiolas.

ejaculação de voos pelo cálcio, ave-osteoporose.

 

 

2

 

(que palavra diz o pomo em céu de Eva?

qual é a sílaba que enche a pedra-pomes?)

 

 

3

 

corpo é cerca cio adentro.

 

em cada felpa, em cada farpa,

um anjo errado irriga a sua cidade vascular.

 

 

4

 

como é alto o som na ponta escura

desta corda, incubadora-kamikaze,

 

 

5

 

como é estreito

este cordão umbilical para virar cabo-de-guerra.

 

 

6

 

(todo amante

atira o filho da sacada que há nos fundos, no final,

 

do coração.

 

todo sol atrás é um ninho de fuligem e de fumo.)

 

 

7

 

corpo é um terço

muito curto, uma oração que aperta Cristo,

 

 

8

 

(rótulas, gaiolas),

 

parapeito em que chacais

se inclinam para entrar na vida de cabeça.

 

 

9

 

caem os órgãos aos pedaços.

comunhão de porra, muco e baba.

 

 

10

 

morte vem lubrificada: fácil passar.

 

 

 

 

 

 

SEM TÍTULO

 

luzes alcoolizam.

uva,

 

mariposa-passa,

piso.

 

tapete-te-quer

 

("welcome").

 

 

*

 

devias me agradecer:

 

todo voo sofre

 

de algum tipo de nanismo.

 

 

*

 

céu aperta.

 

 

 

 

 

 

VEJO ESTAS ROUPAS

 

 

1

 

vejo estas roupas

em coma pelas gavetas: sondas

 

e sonhos de naftalina no linho

de duas mãos que se soltam.

 

 

2

 

anestesia nas linhas das palmas,

onde escrevemos agora?

 

 

3

 

descem tesouras

 

como ágeis móbiles do céu do quarto:

última moda no trio das moiras marionetes.

 

 

4

 

teu amor é um titereiro triste.

 

 

 

 

[imagem ©matteo brusa]

 

 

 

Marceli Andresa Becker é poeta e estudante de Filosofia na Universidade de Passo Fundo (UPF). Tem poemas publicados no blogue Cantar a Pele de Lontra e na Zunái — Revista de Poesia & Debate.