*

 

deixar-te foi deixar-me abandonar-te

como desamparasse uma criança

e fosse embora sem olhar para trás

deixar-te foi tirar-te minha mão

foi afastar teu braço que na cama

em meu enlace pousava sem um medo

deixar-te foi soltar-me desprender-te

foi arrojar-te muda e só ao centro

deixar-te parecido com perder-te

minha cara metade de teu rosto

a minha voz chamando por teu nome

em um chamado alheio a toda a chama

os nomes todos perdidos de suas coisas

e indiferentemente nomeando

 

 

 

 

 

 

DILUIÇÃO DA POESIA

 

mais água a água

essencial primária

o elemento que se esvaía

por dentro do vento

da chuva e mais o tempo

que se esvazia

 

nisso se desfaçam

teus fazeres quando

dissolver-se teu quando

o quanto do tempo

que te toca e quase

soubeste tu tocar

também em troca

 

como fosse possível

alguma troca

nessa voz que volta

com este vulto vulva

sempre uma

 

 

 

 

 

 

ANUNCIAÇÃO DO ANJO DE KLEE EM MAIO/68

 

Dixit angelus novus — Lição:

tempo é relativo     No centro

do movimento nada se move

ou tempo é absoluto     ponto

zero     Aqui estamos     e estou

estames da flor que somos

plural e masculino

fundo lutos     eu luto

Luta é feminina

mulher de luto e minha

irmã de perda — Tema

(de rua     pois acaso

casa não há mais):

repetir a palavra perda

até o riso que resume

assume acinta (verbo

acintar     derivo de acinte

minha fala à deriva     Revolvo

torres de babel pilhas

de papel línguas do papai

Minha fala sem substrato

só expressão revés do visto

reviravolta     Minha fala de rive

gauche revê e revolta

estados estômagos)

Então o anjo revoou

asas de estandartes

rompeu-se algo nos metais

em chamas de um carro em chamas

Então abriram alas entre

eles e elas nós a gente

para o retorno do cidadão comum

Em vez veio o anjo ruivo o rosto de Rimbaud

 

 

 

 

 

 

ELEGIA DO RIO SOLIMÕES

 

Minha alma cala 

Vejo o grande rio

Estou vivendo de saudade

 

Eu sou apenas

galho na correnteza

este caniço pensante

desde berço dado ao vento

dobrando-se ao incerto

pelo duvidoso

 

Eu bâteau îvre

mera palavra

que aspira a ser livro

e mal uma frase sabe

fazer sua lavra

 

verdade de barco

que antes há na folha

solta que flutua

escrita soluta

de um nada que finda

 

Eu sou só

igara sumida

à beira dos igarapés

pequeno como um galho pequeno

graveto planta desprendida

 

Pequeno como uma história

um homem só uma vinda

algumas lidas vividas

algumas idas que findas

 

Olho o grande rio

com respeitoso silêncio

de floresta

guardo comigo o dito

de livro antigo

É conveniente cruzar

a grande água

 

Mesmo que grande assim

Mesmo que seja a vida

ela mesma uma deriva 

de si mesma nesse rio

 

Metáfora de um dia

via do sol rumo à morte

o rio-mar cuja fome

engoliria catedrais

 

naufrágios e eldorados

embates armas barões

assinalados rostos

versos voragens sinais

 

 

 

 

 

 

A MAIS ALTA TORRE

 

Para Arthur Rimbaud

 

"Quando nasci um anjo morto

louco morto louco

com asas de avião

veio ler minha mão...".

Torquato Neto

 

Tanto dirás sim — é muito fácil

Tudo te espera, tudo tocarás

como a torre alta tão igual

ao mar escuro quando o sol se põe

Deus pretenso vejo-te em tua mão

desmedido risco urdido nas paredes em ruínas

 

Tanto zombarás das asas ligeiras dos querubins

que correm os assépticos salões de festas

onde se afetam os pobres poetas às suas eleitas

Sentarás a beleza em teus joelhos

nem sempre ternamente, pois é certo

conduzirás o engano irrecusável

dos desígnios interruptos que te traço

Trapaceiro sem truques vejo-te em tua mão

viajante de cartas já marcadas

 

Voici l'heure des assassins e dirás sim

cidades várias vagas de cheiros e formas

Juntarás cada níquel da miséria alheia

moedas uma a uma como destinos

Jogador sem trunfos vejo-te em tua mão

mercador de orientes e extravios


 

 

 
 

LUGAR COMUM

 

teatro em tantos atos cansa

mil e uma noites

de paixões extremadas

maravilhosas emoções

palhaço das perdidas ilusões

 

repetir a pantomima

drama longo tortuoso

encenar em tom pierrô

a saudade de uma atriz

nóis aqui traveiz

 

louco de mortal loucura

tu és     tu morres     todos morrem

também tua dama negra

a Eugênia unigênita tua

útero infecundo

gerando um anti-filho

com a tua cara iracunda

 

tu és um clone risível

de mau Dom Juan

um péssimo ator sentado

ao trono da tragédia passional

o troninho da tua obra

é esse, baby      vai neném

doador de ouro de tolos

que se crêem domadores

de dores de amor

 

toleima       tu és

um mero Dom Moderno

dádiva que sobra a

um João aí qualquer     

metido a Castro Alves

e não vales as fezes

de um Guimarães

 

 

 

 

 

 

PARÓDIA FREUDIANA

 

o cravo pregou a rosa

debaixo de uma fachada

o cravo chegou marido

a rosa uma florada

 

o cravo falou a rosa

debaixo de uma falácia

o cravo ficou falido

a rosa enferrujada

 

o falo brigou com a fala

debaixo de uma casada

o falo saiu ferido

a fala despedaçada

 

 

 

 

 

 

IN OBLIVIUM

 

nenhum epitáfio há

na pedra sobre tua morte

nenhuma luz é trazida

nem voz acompanha

o teu nome só

que se abre mármore

sem marca que firme

feche no mundo vivo

um lugar morto

torne alguém sido

uma fala dos vivos

mas enfim é assim

toda frase que finda

 

não há epitáfios

na pedra em que és escrito

aquele que não pode

falar sua fala

o assunto o defunto

o finado o terceiro

pessoa pronomes

por um que foi pai

verbo que fez inícios

e se faz pretérito

o lembrado ou esquecido

para sempre     festas

mulheres escárnios

desejo que foi ensejo

noites que não há mais

e o mais que não há

 

os escritores que amaste

livros que leste envelhecer

a cada dia em que acordaste

são mortos antes

nenhum te pôde escrever

a frase à hora em que acordaram

aqueles que te conheceram

(ou reconheceram tua face

apenas) que ora serias

arcaísmo entre tantos interruptos

flexionados desconjugados

 

o único escritor presente

à hora silenciou o escrito

por amor àquela que transmitia

a todos e tudo a tua ausência

fenda do teu fracasso

 

 

 

 

 

 

PRETO NO BRANCO

 

preto no branco o falar claro

do filósofo cínico

o símbolo é simples

uma palavra sendo

dizendo-se ícone

como em preto e branco o olhar do cão

mirada onde poema

 

preto é o som do bastão do zen

quando soa seu sino de templo em Pequim

no meio da multidão mais de mil palhaços

no salão no meio silêncio onde o som

do sino verseja reverbera seu ensino

reverso de sina

 

branca a bengala na mão do velho

a escandir em texto o seu caminhar apenas

la canne o simbólico um calar permeia

cada nova fala uma bruma que desce

sobre todo o real em torno é como

encontrar ordem entre cacos e cacas

masculino feminino neutro o caos do encontro entre cacofonias

da maldita mente que não pode parar

não pode ser bem nunca dizer-se bem

e aventurar-se

 

bem-aventurados os que são poetas

porque são poetas porque deles é o saber

ser poeta mesmo que não o saibam

porque sim porque se não

seria não

 

 

 

 

 

 

POESIA NÃO É REALIDADE

 

Poesia não é realidade

Minha brincadeira meu caminho

no caminho branco de uma só alameda

minha vida não é realidade

Realidade é um trem-bala correndo

no eixo prazer-dor

Realidade é um zepelin lerdo queimando

charuto na noite de sua cabeça

Realidade é uma falta uma fala

uma fome um f minúsculo

realidade é um pau que cresce

e um olho que brilha

você segredos de lápis de olho olha

realidade riscando meu riso meu resto

na espera no escuro no escroto

realidade na sua cabeça

 

[imagens amilcar de castro]
 
 
 
 
 
 
Ricardo Primo Portugal é poeta e diplomata, graduado em Letras pela UFRGS. Está completando seis anos vivendo e trabalhando na China, primeiro em Pequim, depois em Xangai e, a partir de 2010, em Cantão (Guangzhou). Publicou DePassagens (Ameop, 2004), Arte do risco (SMCPA, 1992), entre outros. Foi co-organizador da edição bilíngue chinês-português Antologia poética de Mario Quintana (EDIPUCRS, 2007), primeiro livro de poeta brasileiro traduzido para o chinês, com o apoio do Consulado Geral do Brasil em Xangai. Com a esposa Tan Xiao, chinesa, formada em Letras pela Universidade Zhong Nan, Changsha, República Popular da China, tem traduzido poesia chinesa clássica para o português.