O dia em que perdi as asas
As cantigas que queria ter cantado
Os voos que teria empreendido
Os sonhos que deveria ter trilhado
Os sonos calmos que poderia ter dormido
Os encantos que haveria de espalhar
Os enganos de que teria fugido
O sentimento de plenitude
De harmonia
De humílima completude com a vida
Que agora segue
Em desregrado torvelinho
Morreram naquele tiro infeliz que dei
Na infância
E derrubou o passarinho.
Canção da infância
Poderia escrever milhões de versos
Que para ti não teriam qualquer sentido.
Depois de ler, fecha teus olhos
E reflete na canção de outrora
Que toca insistente ao teu ouvido.
Abstrai-te das dores de agora
E recorda o cheiro da amora
Que carregaste no suor da infância.
Lembra-te das estrelas perdidas
Que disseram, depois, que eram aviões?
Não aceita!
Eram realmente estrelas
Que trilharam as tuas ilusões.
Ser pleno é amadurecer
A ponto de se conhecer criança.
Diz de tudo o que quiseres
Mas nunca rouba a esperança.
Amar a vida não é predizer a tempestade
Que sempre vem,
Mas anunciar, depois dela,
A bonança.
A cidade das casas abertas
Era uma rua torta
Que eu varava ligeiro
Atrás das andorinhas
E toda a gente assistia
Das poltronas e varandas
Porque naquela cidade
As portas e as janelas
Passavam os dias abertas
E só se fechavam à noite
Por causa dos pernilongos.
Nada naquele lugar
Oferecia perigo
A não ser o de criar
No espírito aprendiz
A ingênua fantasia
De um mundo sem paredes
E corações sem tramelas
Repletos de ruas tortas
E bandos de passarinhos.
À cidade de Ferros/MG
A dança
A vida não nos conta a verdade
Tão clara e despretensiosamente
Feito uma semente,
Um riso de criança.
Há tantos rios a correr,
Tantos estágios,
Tanta terra a vencer,
Muitas pedras,
Lágrimas, naufrágios…
Tanto vazio
Em tanta abundância,
Tanto se encontrar
Em se perder!
Nos descaminhos
É que a verdade se oculta.
No tropeço
Se esconde a dança.
O menino e o mar
Pisou por vez primeira
A areia fina
Trazendo o cheiro verde das montanhas
Entranhado no horizonte pequenino.
Não foi preciso que adentrasse o mar.
Antes, cuidara o mar
De entrar por inteiro no menino.
Deboche
Não, Senhor!
Nada fiz com lucidez até aqui
Que me elevasse
À tua imagem e semelhança.
Nem mesmo ao me manter oculto
Sob o véu da indefinição
Para amar nas sombras,
Em silêncio,
Profundamente e sem afetação,
Apenas pelo gozo de amar.
O amor
É um deboche da razão.
Um olhar
Quero ainda algum tempo
Para cantar mais canções,
Contar mais estrelas,
Plantar mais flores
No coração,
Trilhar mais versos,
Romper barreiras,
Distribuir outros sorrisos,
Reler "O Pequeno Príncipe",
Respirar mais verdes
E verdades,
Multiplicar afetos.
Tempo para aprender a olhar
Além dos outros olhos,
A estender incondicionalmente as mãos,
A ouvir mais que dizer,
A sofrer sem murmúrios
E seguir adiante.
Tempo para beijar a minha mãe,
Amar a minha mulher,
Abraçar meus irmãos,
Orar a Deus por meu pai.
Tempo para galgar degraus,
Subir em árvores
E montanhas,
Sentir a brisa,
Correr descalço,
Ouvir um samba
De Chico Buarque,
Aprender a dançar tango.
E quando eu me for
E o tempo já não fizer sentido,
Quero saber que tudo
O que vivi e desejei ter vivido
Não durou mais que o instante
De um olhar.
[Poemas do livro Canção para despertar os pássaros & novos planos de voo, 2012]