Torcedores do Corinthians comemoram título mundial 2012 na Avenida Paulista, em São Paulo | ©Leandro Moraes/UOL
 
 
 
 
 
 

Há vida inteligente no futebol — um esporte que, inventado na Inglaterra e reinventado no Brasil, é um corpo pensante, cujos limites transcendem as quatro linhas marcadas a cal. Do gramado esportivo para o campo político, para os treinamentos psicológicos e para os fundamentos culturais: o futebol dialoga, sim, com todos os segmentos sociais em que está inserido. Em um lançamento preciso de mais de 40 metros, a la Gérson, o professor José Paulo Florenzano acaba de nos colocar cara a cara, livres de impedimento, com um dos mais interessantes movimentos surgidos na história do futebol no Brasil, jogado com os pés e com a cabeça: a Democracia Corinthiana.

 

A movimentação que nos permite caracterizar a Democracia Corinthiana como um movimento não se restringe aos deslocamentos que Sócrates, Casagrande e companhia realizavam para confundir as defesas adversárias na década de 80; foi, principalmente, através da dinamização e dos questionamentos realizados pela equipe do Corinthians que as peças nela presentes conseguiram fazer um gol de placa na prática do futebol.

 

Entre o final dos anos 70 e meados dos anos 80 o Brasil viveu o crepúsculo de uma longa ditadura militar. Os mesmos ares de mudança de paradigma sopraram então inspiradas baforadas revolucionárias no dia a dia da equipe do Parque São Jorge. Ali os jogadores conversavam e votavam as principais decisões do clube, como concentrar-se ou não antes dos jogos ou contratar ou não um jogador para reforçar o time. O técnico era apenas uma voz a mais no grupo.

 

Florenzano descreve o panorama sócio-político-cultural em que ocorreu tal sopro democrático no futebol. O livro é um olhar erudito sobre o tema mais popular no Brasil, e o autor busca se equilibrar na observação acadêmica, mas ao mesmo tempo acessível a não-acadêmicos, do assunto. Dividido em três capítulos principais ("Os Andarilhos da Bola", "Timão: Nau dos Loucos" e "A República do Futebol"), A Democracia Corinthiana — práticas de liberdade no futebol brasileiro atrai não só a quem se interessa pelo ludopédio, mas também a quem quer perceber como a cultura futebolística é capaz de interagir na História do nosso País. Aliás, verdadeiras legiões de estrangeiros são capazes de reconhecer que futebol e Brasil são praticamente sinônimos.

 

O meio de campo para que houvesse o surgimento do movimento no Corinthians foi orquestrado por todo o século XX — com a luta dos trabalhadores a favor da organização nos comitês de fábrica na Rússia em 1917, com os conselhos operários na Hungria em 1956, com o Sindicato Solidariedade na Polônia em 1978, com o Maio de 1968 em Paris e com as greves no ABC lideradas por Lula. No âmbito esportivo, o surgimento de atletas como o atacante Reinaldo, no Brasil, e do boxeador Cassius Clay, nos Estados Unidos, também forneceram grama para alimentar as gordas vacas na Fazendinha.

 

Em vários sentidos, o Corinthians se apresentava como uma metáfora para o Brasil e para os brasileiros. Como Florenzano aponta: "Conjunto de referentes heterogêneos, o Corinthians simbolizava a coesão social, a harmonia das raças, o povo resignado e fiel (...); mas evocava também o reverso dessa representação através da figura estigmatizada do favelado, do maloqueiro e de todos aqueles que habitavam as margens e os interstícios da sociedade e que não encontravam nela lugar ou reconhecimento". O Corinthians tem uma origem operária e é envolvido por um sentimento de religiosidade. Nos quase 23 anos em que viveu uma "seca" de títulos, a torcida alvinegra, no sofrimento, cresceu — assim como cresce espantosamente no Brasil a quantidade de igrejas neopentecostais, estimuladas por fiéis sofredores. A Democracia Corinthiana surgiu com o time lutando na Segunda Divisão. No Brasil da época, a ditadura aqui instalada colocava o país na segunda divisão mundial entre as nações em termos de respeito aos direitos humanos.

 

É impossível escalar o time da Democracia Corinthiana sem deixar de mencionar nomes como Adilson Monteiro Alves, Washington Olivetto, Juca Kfouri, o psiquiatra Flavio Gikovate, Waldemar Pires, Mário Travaglini e Zé Maria. Porém, três nomes em especial deram um tempero único ao movimento: Sócrates, Wladimir e Casagrande. Não é mera força de expressão afirmar que esses jogadores merecem "capítulos à parte" no livro de Florenzano. Com os sugestivos títulos de "O jogador em busca de uma personagem", Earth, Wind and Fire" e "Casagrande & Senzala", os três craques recebem saborosas páginas, que mostram serem eles donos de inteligência e  ousadia surpreendentemente incomuns para um futebolista.

 

Talvez pouca gente se lembre, mas o Doutor Sócrates esteve perto de ser contratado pelo São Paulo antes de ser transferido do Botafogo de Ribeirão Preto para o Corinthians. A transferência não se concretizou, mas Florenzano comenta que uma hipotética "Democracia Tricolor", se Sócrates tivesse ido para o Morumbi, seria algo "bastante improvável", pois o São Paulo é reconhecidamente um "modelo de disciplina". Florenzano coloca, portanto, a disciplina como empecilho para a democracia, ou seja, parece não haver espaço para a democracia existir dentro de um sistema onde haja disciplina. Uma afirmação como essa soa um tanto forçada, pois, afinal de contas, a democracia não é um sistema acabado e pode estar sujeita a adaptações. É fato que a Democracia Corinthiana não foi um sistema perfeito. O autor tem o mérito de apresentar tanto as virtudes da democracia alvinegra (inegavelmente maiores e mais importantes, historicamente falando), como também aponta as contradições nela existentes, como o fato de haver no Corinthians um grupo de pessoas (Sócrates incluído) com direito a informações privilegiadas, por exemplo.

 

Escrito originalmente como tese de Doutorado em Ciências Sociais pela PUC-SP (local, aliás, onde foi cunhado o termo "Democracia Corinthiana"), a obra é farta em pesquisa jornalística da época, especialmente no Estado, na Folha, na Gazeta Esportiva e na revista Placar. Um exemplo é o dia seguinte à provavelmente segunda maior tragédia à que o futebol brasileiro já assistiu: a derrota da Seleção Brasileira para Paolo Rossi (metonímia para a Itália) na Copa de 1982 na Espanha. Daquele dia são mencionadas as primeiras páginas do Estadão e da Gazeta, mas foi esquecida a primeira página mais marcante do dia, no Jornal da Tarde, em que a foto de um garoto, usando a camisa brasileira, chorando no Estádio do Sarriá, ocupou a página toda e traduziu o sentimento de uma nação inteira.

 

Em A Democracia Corinthiana, José Paulo Florenzano consegue extrair descrições poéticas do futebol sem cair no lugar-comum e faz uma troca de passes sadia com outro livro recentemente publicado sobre o esporte: Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, de José Miguel Wisnik. José Paulo mantém o leitor com um olho no futebol e o outro no contexto em que ele se encaixa. Um exemplo disso é a suspensão da descrição de um belo gol que Sócrates estava para fazer, na final do Campeonato Paulista de 1983 no Morumbi, para retomá-la apenas após descrever a cena de um crime que ocorria simultaneamente em São Paulo. Foi um belo lance do escritor.

 

Assim como no desenho dos opostos complementares Yin e Yang, o livro é todo feito em branco e preto, inclusive a capa. Talvez seja uma maneira de mostrar como as cores opostas do Corinthians (ou, se preferirem, a presença e a ausência de cor, respectivamente) por si só carregam as qualidades e os vícios que a Democracia Corinthiana e o Brasil como um todo sabem fazer conviver com tanta competência. O livro é muito bem escrito, mas faltou um cuidado maior na revisão para dar-lhe consistência. A recente Reforma Ortográfica confunde o leitor. A palavra ideia aparece grafada algumas vezes com e outras sem acento; assembleia e estreia aparecem com acento; o extinto trema, por sua vez, segue vivo nas páginas de A Democracia Corinthiana. Nada que, no entanto, seja capaz de tirar o brilho que a luz de uma obra como esta traz para os amantes do futebol e da cultura. Este livro é o retrato inédito de um movimento que soube chutar, dionisiacamente, para além da estratosfera, a bola da vez da mesmice que ditava o Brasil.

 

 

 

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O livro: José Paulo Florenzano. A Democracia Corinthiana — Práticas de liberdade no futebol brasileiro.

São Paulo: Educ/Fapesp, 2009, 512 págs. | Para comprar, clique aqui.

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dezembro, 2012