Carybé: Cel. Aureliano Buendía e Remédios, a jovem esposa  | José Arcadio Buendía "louco" sob o castanheiro
 
 
 
 
 
 
 

Tchaikovsky, Picasso, Hitchcock, Pirandello, Pelé, São Paulo Futebol Clube. Não, não se trata de uma gradação. O que essa lista traz em comum é o fato de todos os seus elementos serem espetaculares em suas respectivas áreas. São, portanto, clássicos, que o tempo não apagará das próximas gerações. Nessa lista de essenciais, na literatura, é praticamente unânime, entre leitores do mundo todo, a presença da obra Cem Anos de Solidão, do escritor colombiano Gabriel García Márquez.

 

A chave para iniciarmos o entendimento desse livro se encontra escancarada no próprio título. García Márquez não faz questão de ser sutil ao apontar os temas predominantes em sua obra-prima: a solidão e sua permanência no tempo. Se Euclides da Cunha afirma em Os Sertões que "O sertanejo é, acima de tudo, um forte", Márquez nos mostra aqui que o ser humano é, essencialmente, um solitário. Um ser social, que busca no outro o estímulo para seguir vivendo, mas que é forçado a  buscar refúgio em si mesmo quando vê no rosto de cada pessoa um par de olhos que refletem a característica que nos torna ao mesmo tempo únicos e iguais: somos todos sós. Ponto sem parágrafo.

 

Cem anos traduzidos nas cerca de 400 páginas da história de cinco gerações da família que nasce com o casal José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán, que ajuda a fundar a cidade de Macondo. E nós, leitores-solitários-em-busca-de-companhia, imediatamente, colocamos esta cidade no mapa: localiza-se na Colômbia, na América do Sul. Mas Macondo não existe, é uma cidade fictícia. Mas Macondo existe: o Google a menciona 916.000 vezes. Macondo é virtual. Macondo é real. Macondo é realismo mágico. E estamos sós.

 

Carybé: Arcadio, o ditador de Macondo, e Úrsula  |  Amaranta e Aureliano José

 

Existe nessa obra a tentativa de negar a solidão, como se fosse possível, ainda que apenas em Macondo. Nem Cazuza conseguiu romantizar a ideia de que a solidão pode ser evitada ao cantar: "Solidão a dois de dia/ Faz calor, depois faz frio/ Você diz 'já foi'/ e eu concordo contigo". Pois no verso seguinte dispara: "Você sai de perto, eu penso em suicídio". O desejo de Cazuza é ter uma bomba; no entanto, em Cem Anos de Solidão o leitor não precisa gritar "eu queria ter uma bomba" e pedir "um flit paralisante qualquer". Por mais que se passem cinco gerações em 100 anos, a solidão não é explodida: ela se impõe. E permanece.

 

Mas os habitantes de Macondo, cientes de que a solidão é inerente ao ser humano, procuram resistir e negociar com ela, solidão, uma existência compartilhada. E, solitários inconformados, buscam formar grupos que se auto implodem: a família, os partidos políticos, o casamento, uma vila, uma cidade, um país. Solidão não se partilha nem se compartilha. Não, Raul Seixas, "um sonho que se sonha junto" não é realidade: é apenas um sonho. Solitário, como o sonho de todas as noites.

 

A atmosfera onírica em Cem Anos de Solidão transporta para o texto uma camada de lirismo e leveza na abordagem da solidão que acolhe a todos os personagens: é a sós que crescemos, é a sós que aprendemos; é, enfim, a sós que vivemos. Mas a solidão não deixa de ter sua beleza: "Mais do que mãe e filho, eles eram cúmplices na solidão", decreta Márquez. E a realidade é mágica na Macondo dos Buendía: e a magia se dá na enorme quantidade de personagens que surgem na trama, formando uma teia de nomes e eventos que vão colando o leitor, que pode se deixar confundir e delirar no nascimento de um local inóspito e quente em que sopra um vento tropical e paradisíaco. Mas é no paraíso que nasce o pecado. E o ser humano peca nesta obra de García Márquez porque tenta transformar Macondo em um paraíso de utopias e ilusões, um "paraíso de solidão compartilhada", como escreve Márquez: e se frustra quando a realidade se revela.

 

Carybé: Quase cinco anos de chuva em Macondo  |  Aureliano Buendía Babilônia e Nigromanta

 

Macondo é cercada por água em todos os lados. É uma ilha em cujo centro estão os Buendía. E lemos que "choveu durante 4 anos e 11 meses" ininterruptamente em Macondo. Os personagens são ilhas sociais de solidão. Assim como a água é fundamental para a existência da vida, a solidão, regada por um dilúvio de acontecimentos épicos, alimenta a família Buendía todos os dias. E quebramos o silêncio da noite dormida/sonhada a sós na ponte do "bom dia" ("buendía") dito para o outro. Macondo é, portanto, uma Fênix ao contrário: é quase destruída (e com ela seus personagens), para renascer: não das cinzas, mas das águas.

 

O jornalista Daniel Piza definiu em sua coluna no jornal "O Estado de São Paulo", em 25 de janeiro de 2009: "escrever é a melhor forma de solidão". Nesse sentido, o meio pelo qual García Márquez propaga a ideia de solidão é resultado de um ato solitário: a escrita. Assim, a realização deste ato solitário (que é a escrita) é feito pela concretização de outro ato solitário: a leitura. Metalinguisticamente, o autor colombiano não deixa de reforçar este tema na própria ponte que estabelece com o leitor no processo de escrita e leitura.

 

O personagem Melquíades, um alquimista que chega a Macondo pouco tempo após sua fundação (para nunca mais deixá-la, deixando-a várias vezes), é um personagem que morre seguidas vezes para continuar vivo para sempre. Sua transformação é sugerida por seu próprio nome, que é a própria alquimia gaguejada e transmutada. Em Macondo, a morte e o tempo vão e vêm. O tempo não é cronológico. Personagens como Úrsula e Melquíades não ficam velhos: "rejuvelhecem" com as conquistas e as desgraças de suas vidas. Ficam jovens após a terceira idade para depois envelhecerem novamente. Ambos apresentam um movimento ondular, característico na história: sobem e descem, aparecem e desaparecem, vivem e morrem e vivem e não morrem.

 

Há em Macondo a contagiosa praga da insônia: não se dorme, fica-se lúcido permanentemente — o que, ironicamente, no romance, leva à perda da memória. E, sem memória, o ser humano não carrega a vida em si. É como o Mal de Alzheimer, que transporta as suas vítimas a uma realidade paralela (realismo mágico?). Macondo nos engana; nos faz parecer que não existe existindo. É como o Haiti, segundo Caetano Veloso: "é aqui, não é aqui".

 

Carybé: Melquíades, o cigano  |  O Buendía com rabo de porco que põe fim à estirpe

 

Cem anos são cem dias e são apenas alguns minutos. A solidão muda a percepção do tempo. Pode-se observar no telégrafo, presença constante nesses Cem Anos de Solidão, uma tentativa de comunicação a distância — uma distância ecoada de outros clássicos da literatura. O fundador de Macondo, José Arcádio Buendía, possui uma presença que não desaparece da obra mesmo após sua morte. Ele possui algo de fanstamagórico, como o Rei Hamlet, cujo fantasma não sai de cena desde o início da peça de Shakespeare. Similarmente, José Arcádio Buendía fica rondando Macondo, desde sua fundação. Também é ecoada aqui  a sensação de estranhamento que têm os personagens em Macondo. O telégrafo é o fio pelo qual sai o grito de uma voz que se sente estrangeira em seu próprio habitat e poderia soar como uma personagem de Clarice Lispector ou como a voz de Jim Morrison cantando "People are strange".

 

A solidão, palavra repetida em média uma vez a cada três páginas neste livro, é, em Macondo, em Ibiraci, em São Paulo ou em Londres, o que a vida inteligente parece ter reservado para nós — terráqueos carentes neste universo em expansão — nosso destino: virtude e desgraça que não se esvai em tique-taques seculares. "Só, só somente só! Assim vou lhe chamar, assim você vai ser...". 

 

 

 

setembro, 2012