A MULHER E O CAVALO

 

 

— Nem precisei ir pra China pra nascer amaldiçoada.

Ednéia continuou calada, por isso fui falando.

— Você sabe o que é isso, Ednéia? Você faz idéia do que seja nascer sob o signo do cavalo de fogo?

Ednéia não me respondeu. Percebi que ela não estava pra conversa, mas se ela não queria conversar isso era problema dela. Eu precisava falar porque acordei com a garganta seca. Palavras, palavras.

Desisti de contar pra ela que na China antiga era costume matar as garotas que nasciam no ano do cavalo de fogo. Acreditavam que esse tipo de mulher convidava a ruína pra hóspede. Sábios, esses chineses antigos.

— Ednéia, eu já lhe falei de minha festa de casamento? Foi muito linda, linda como a noite naquele dia, linda como o vestido que vestiu minhas núpcias. O vestido, Ednéia, parecia coisa de história velha. Tinha um véu enorme, meus passos em compasso com a marcha. Marchei igreja adentro e vi Jorge me esperando. Jorge todo arrumado lá no altar. Jorge parecia um príncipe. E eu entrei naquela igreja como quem entra em seu conto de fadas particular.

Sabe qual foi o problema, Ednéia? O problema foi Edson. Jorge fez questão que Edson fosse o padrinho, ele sempre foi muito ligado ao irmão e eu até achava bonita a amizade entre eles, mas quando vi Edson lá no altar, descobri por que os contos de fada acabam no dia do casamento.

Edson virou meu sonho, minha consumição... Sabe o que foi pior, Ednéia? O desejo foi recíproco.

Olhei pra Ednéia e ela estava com os olhos semicerrados. Eu sabia que minha revelação seguinte iria despertá-la, por isso calei-me um pouco. Ednéia debaixo de seus cachos não podia imaginar as coisas que eu tinha capacidade de fazer.

— Você sabia, Ednéia, que as pessoas de cavalo de fogo mudam de objetivo como quem muda de roupa? Dizem inclusive, que essa troca de objetivos está ligada ao medo de qualquer tipo de fracasso. Já ouviu falar disso, Ednéia? Ouça-me falar agora que eu passei muito tempo me dizendo que na realidade eu só trepei com Edson naquela noite por medo de aquele casamento fracassasse.

Os olhos de Ednéia abriram-se em minha cara. Continuei, então, em tom casual.

— Não tinha lhe falado? Pois é, trepei com Edson ainda na festa de casamento. Trepei com ele no banheiro do salão de festas. Eu estava tão excitada que não precisei de muito para estar pronta. Daí foi só levantar as saias do vestido e baixar a calcinha branca, branca. Gozamos juntos, sem ruídos. Edson me olhava incrédulo enquanto gozava. Realizava sei lá que pensamentos enquanto eu pensava o que fazer com aquela calcinha suja depois. Depois, passamos o resto da noite nos evitando, mas isso não foi possível ser feito durante mais que um mês, em três meses nos tornamos amantes.

Não sei bem por quê. Na realidade, com medo do fracasso ou sem, o que sei é que sempre amei a conquista, por isso, Jorge já não me estimulava a nada.

Edson se corroia de culpa. Culpa que eu o fazia esquecer entre os lençóis do irmão.

A merda é que Edson cometeu o erro de se apaixonar por mim.

Você pode se colocar no lugar dele, hein? Ednéia? Jorge era seu único irmão e seu melhor amigo. Edson contou tudo para o Jorge.

Ednéia continuava calada, embora eu percebesse que ela prestava atenção à história que eu contava. Continuei meu monólogo.

— Jorge quando soube, não falou nada.

Eu juro que preferia que ele gritasse, me xingasse, me batesse, sei lá mais o quê. Preferia coisas ao silêncio dele.

Jorge ficou me olhando sem definição um tempo, deu as costas e saiu. A porta ficou aberta pra ruína entrar.

Jorge não quis falar desse assunto com ninguém. Tomou como única confidente a bebida.

Calei-me porque me doía falar de Jorge. Pensei em comentar com Ednéia a respeito do pôr-do-sol, mas desisti. Aquele aperto correndo no sangue. Continuei falando.

— Para Edson, não importava o fato da família ter se afastado de nós. A única coisa que somava era que agora nós poderíamos ficar juntos. Pra sempre. Sempre foi muito tempo pra mim, pra sempre. Edson não sabia do cavalo. O cavalo de fogo que soltava fogo dentro de mim e desejava outros campos. Nesse tempo, eu já preferia buscar meu prazer de outras formas. Até meus dedos e pareciam mais excitantes que o pau dele.

Aí eu descobri que estava grávida.

Na hora que eu soube que estava grávida eu soube também que não agüentaria aquilo. Família, filhos, almoços nos fins de semana. Edson pro resto da vida seria a morte.

Ednéia, eu lutei contra isso, juro. Quis ser uma mulher normal. Mãe de família, dona de casa, o cacete. Mas o maldito cavalo não deixou. A vida sentimental do cavalo de fogo é seu ponto mais vulnerável. Basta que um relacionamento se torne firme para que ele passe a achá-lo monótono, rotineiro.

Sabe, Ednéia, só depois que eu fugi é que eu fui atrás do cavalo de fogo, justo eu que nunca acreditei em horóscopo. Embora não tenha descoberto como domá-lo, estudei seu galope, pesquisei seus movimentos, era uma maneira de tentar me entender, sei lá.

Aprendi a andar em L.

Ednéia me olhou inquisitiva.

— É. Eu fugi. Fugi porque não pude confessar pra Edson que abortei nosso filho, ou filha, como ele desejava tanto... Decidi fazer quando ele chegou com você em casa. Você era o primeiro presente pra nossa filha, você era a boneca mais linda que eu já havia visto. A única lembrança da filha que eu abandonei.

Se bem que poderia ser um filho, não é?

Que importância tem isso? Nenhuma. Você me acompanhou esse tempo, até eu chegar aqui nesse lugar de gente doida. Doída. Quando eu resolvi vir para cá, Ednéia, eu tinha certeza de que precisava parar de distribuir minha miséria. O estado de inferno no qual sempre vivi.

Sabia, Ednéia, que aqui são todos malucos? Eles pensam que eu é que estou louca. Fico quieta. Que me importa que pensem. Não digo. Não conto a ninguém o que conto a você agora. Que foi o cavalo. O maldito cavalo que me fodeu a vida inteira.

 

 

 

 

 

 

 

ADEUS AO DEUS

 

 

Havia uma testemunha, é bem verdade. Falávamos baixinho. Ele primeiro. Rasgou o silêncio perguntando-me se eu voltava do trabalho. Sim. Dupla jornada, expliquei.

Alto. Devia ter mais de um metro e oitenta. Sorria e tinha um sorriso belo. Quebra gelo. Quebra-nozes. Nós dois calamos por instantes. Mais alguém entrou e saiu em seguida.

Segui o silêncio com os olhos. Os dele me olhavam. Pensei em falar a respeito da teoria do vácuo. Existe matéria no vácuo? Ou nada? Nada me impediria de puxar assunto. Mas foi ele primeiro. Sou artista plástica respondi.

Voltamos a conversar, baixo. Meus olhos colados no carpete. Por que será que nessas horas nunca me ocorre algo inteligente? Existe vida inteligente em outro planeta? Meus olhos enfim, descolados do carpete, orbitavam em torno das mãos dele. Adoro mãos. É algo que observo de pronto. Pronto, ele tinha percebido meu olhar e sorria.

Dia cansativo. Trabalho num departamento financeiro, respondeu-me. Que absurdo, deveria ser modelo para esculturas gregas. Um deus. Adeus, fui obrigada a dizer quando a porta se abriu no décimo sexto. Adeus, disse-me ele.

Num canto do elevador, nossa testemunha disfarçava um sorriso.

 

E eu só precisava de mais cinco minutos para fazer dele o homem de minha vida.

 

 

 

 

EU NÃO TE AMO

 

 

Quais as possibilidades de uma coisa assim acontecer na vida real? Uma em cem? Em mil? Uma em um milhão? Milhares de vezes eu me perguntei isso. E me pergunto mais uma vez agora.

Observo da janela. (Os prédios me espiam. Comprimindo-se contra o céu, eles estacionaram do lado de fora da persiana).

Quando meus olhos estacionaram em Estela meu coração gritou: é paixão certa. Estava certo. Estela desceu a escada sorrindo. Passou por mim. Atravessou meu olhar. O sorriso e os cumprimentos eram para o amigo Joca. Joca  estava ao lado. Do lado de dentro da garganta atravessei na fala. Gaguejei.

Quais as reais possibilidades de uma coisa assim acontecer na vida de alguém? Uma em cem? Em mil? Em um milhão? Milhares de vezes eu disse a mim mesmo: você não devia ter se apaixonado por Estela. Joca nos apresentou.

 

Estela. Carlos.

Carlos. Estela.

Prazer.

PRAZER.

 

Estela sorriu. A vida é cheia de dentes. Dizer que Estela iluminou, acendeu a minha vida seria abusar do estômago alheio. Mas é isso aí. Minha história com Estela é de provocar vômito.

(As persianas instigam meu olhar. Acompanho sua fuga com o canto do olho. O ponto existe ao alcance do braço).

Se eu fosse uma persiana eu fugiria de Estela, do sorriso de Estela, da roupa que Estela veste, do cheiro que Estela esquece em minha roupa, da ausência de Estela nos meus papéis em branco.

Quais as probabilidades (sei da existência de leis científicas que regem probabilidades) de uma pessoa se apaixonar à primeira vista? Se ao menos a recíproca não tivesse sido verdadeira eu poderia continuar infeliz. Estela me roubou o direito à infelicidade.

Nunca acreditei em amor correspondido, correspondências açucaradas, mel derramado. Sempre quis que formigas roessem o cu dos amantes. Minha solidão, minha dor de ser só era algo enraizado, cuidadosamente cultivado uma vida inteira. Sempre achei de uma pieguice extrema amar e ser amado.

Sou um desgraçado.

Estela me desgraçou.

Me amou de volta. Me olhou, baixou os olhos, sorriu. Voltou a olhar. A mão direita de Estela é absolutamente perfeita.

 

Estela. Carlos.

Carlos. Estela.

PRAZER.

Prazer.

 

O filho da puta do Joca nos apresentou.

Dali em diante Estela preencheu os buracos do meu suor. Eu sempre aguardando um deslize, um passo em falso, pra cuspir Estela de minha vida. Estou sufocado. Estela encalacrada em minha garganta.

Quais as probabilidades (quero saber das estatisticamente comprovadas) de duas pessoas se apaixonarem à primeira vista e continuarem assim depois de três anos? Uma em cem? Em mil? Uma em um milhão? Milhares de vezes tenho me perguntado isso. Não encontro eco.

(Janela fechada não engole dias).

Cada dia que passa odeio mais o amor que sinto por Estela. Estela é uma cadela. É de uma fidelidade canina. A constelação do cão maior traçando minha rota.

Giro em torno do pescoço longo de Estela como uma coleira. Colar de amantes. Colado aos olhos, cabresto. Estela só tem olhos pra mim. E eu tenho olhos para espalhar sobre relógios.

Fim de expediente. É hora de voltar para Estela. Ah se deus levasse Estela. Mas até ele Estela evita. Estela não reza. A noite de Estela é só minha.

Serei obrigado a matar Estela.

 

Apago a luz e volto pra casa.

 

 

 

[imagem ©john armleder]

 

 

 

 

Adrienne Myrtes nasceu no Recife/Pernambuco e vive em São Paulo desde 2001. É também artista plástica. Publicou o livro de contos A mulher e o cavalo e outros contos (Editora Alaúde, EraOdito Editora, 2006), a novela juvenil A linda história de Linda em Olinda (Editora Escala educacional, 2007) este último em parceria com o escritor Marcelino Freire e participou, das antologias Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê Editorial, 2004) e 35 Segredos para chegar a lugar nenhum — literatura de baixo-ajuda (Bertrand Brasil, 2007) entre outras. Eis o Mundo de Fora (Ateliê Editorial, 2011), seu primeiro romance, foi contemplado com o Prêmio Petrobras edição 2008/2009.