LADIES FIRST! 

 

Eu queria ser um casal de velhinhos ingleses. E só existiriam tardes e parentes distantes e pontuais, que nunca apareceriam sempre na hora certa. Mas por mais que tente não consigo descobrir quem sou. Faço o que posso, o que me requer bastante esforço e tem uma importância relativa na minha vida. Por que não consigo fazer o que não posso? Por que coube logo a mim desempenhar o meu papel? Deve haver uma explicação em algum lugar, em alguma ciência, em alguma ressonância magnética dessas, tão modernas. Eu podia ser outra pessoa, uma Fernanda Pessoa, por exemplo, ou Giselle, a espiã nua que abalou Paris, ou aquele mágico lá dos Estados Unidos que se deixava amarrar todo, era trancado dentro de um barril e jogado do alto da mais bela catarata. Durante a queda ele se desamarrava e saía do barril. E eu, o que faço durante a queda? Eu não, eu levo a vida cantando, ai-lili-ai-lili-ailou. Cante comigo, o tom é menor, subiu para 23 o número de mortos no desastre, a economia mundial vai entrar em recessão, o aquecimento do planeta vai desestabilizar as civilizações e eu não posso ir ao curso de inglês com essa chuva. Mas hei de aprender inglês mesmo sendo... o quê? Quero aprender tanta coisa. Os evangelizadores da Companhia de Jesus faziam suas pregações ardentes no planalto de Piratininga. Você sabia que Deus ao criar o homem colocou terminação nervosa no cu? E onde tem terminação nervosa tem dor e prazer. Por isso atrás de uma terminação nervosa vêm dezenas de religiões e centenas de exércitos. E eu? Eu necessito de instruções para navegação. Navegar é impreciso, eu não sei o que é preciso nem o que vem a ser liderança adaptativa e suas implicações ou quais são as tendências para a maquiagem outono-inverno — cores quentes ou que lembrem a nuance da pele? Tons de coral ou de rosa queimado?

Eu queria mesmo era ser um casal de velhinhos ingleses. Não haveria nada de imperioso no império, eu socava as tragédias no cachimbo, tudo virava fumaça e eu me olhava bordando na cadeira de balanço. Mas eu não vi os sinais. No vermelho piscante gire com cuidado. No vermelho piscante gire com cuidado. No vermelho piscante. Onde está o trio elétrico e todo mundo que não morreu atrás dele? Onde foi parar o estado de bagunça transcendente? O piano que mamãe tocava no caos? Por que não acatamos o ato do abacateiro? O que queriam dizer os olhares de mamãe, as porradas de papai? Eu dizia coisas como "essa noite eu sonhei que eu era o seu caderninho e que podia ficar juntinho de você". Não adiantava. Também tentei estudar, me aprofundar. O que fazer durante o sexo. A arte de calar em público. Não funcionou. O que me sobrou? Organização. Por exemplo: expressão que antecede a menção de um ou mais casos individuais e ilustrativos de uma ideia ou conceito, formada pela preposição por e pelo substantivo exemplo e que ainda pode ser abreviada: p. ex. Ótimo, ótimo. Exemplos (e aqui já temos a desinência s, indicativa de plural) são excelentes maneiras de ensinar a vida. E a vida deve ser ensinada. Refiro-me aqui à vida humana, uma das muitas formas de vida, como a vida bêntica, a vida latente, a vida pelágica ou até a não-comprovada vida extraterrestre. Mas não quero saber da vida de dicionário, quero me ocupar da nossa vida, terrestre e humana. Como ela começou? Não sabemos. Como estará no ano de, suponhamos, 2180? Não fazemos a menor ideia. E, no entanto, fazer ideia é a principal ocupação humana. Há chimpanzés que pintam? Há cavalos que contam? Há baleias que obedecem? Sim, sim e sim, mas nenhum deles me diz que não gostou do quadro, que odeia números pares e que vai passar a tarde arrumando os álbuns com todas as fotos de seus saltos para mostrar aos netos. Por quê? Por quê? Eu preciso de uma dose extra de dalmadorm.    

Não. Eu queria ser um casal de velhinhos ingleses. A França, a Alemanha, os povos da África, os hindus e os muçulmamos estariam todos bem longe, eu só escutaria os risos de minha neta hippie acampados em algum lugar da propriedade e balançaria a cabeça rindo de mãos dadas comigo. Mas estou aqui dentro sonhando a rua. A câmera numa tomada aérea, helicópteros cruzando o céu e despejando bombas ao som da marcha nupcial, as crianças interrompem seu jogo de bola para que a kombi do ferro-velho passe lentamente, quase se desconjuntando com o caolho ao microfone, compro minas, compro AR-quinzes, compro... e ninguém o escuta no meio da algazarra. Apenas uma pessoa atravessa em passos lentos a multidão e se aproxima do que restou do pequeno cemitério. Ele entra, dobra à esquerda e logo se ajoelha. É Deus. Ajoelhado, deposita um terço sobre um túmulo. De quem será? Ele murmura algo incompreensível. A dentadura frouxa por causa da boca torta, a boca torta devido ao derrame, as costas com uma dor constante do abaixar para as guimbas, os dedos amarelados pelas guimbas, o peito atravessado pela alça da bolsa, o zíper quebrado, os retratos amassados dentro da bolsa ou às vezes na memória — ah, a humanidade! —, as pernas cheias de bandagens, o cachorro por entre as pernas, ele também sonha. Com o que sonha o cachorro de Deus? Eu não sei, preciso me levantar e lavar o rosto.

Eu não queria ser Deus, queria apenas ser um casal de velhinhos ingleses. O olhar de meu dálmata à beira da lareira aqueceria minhas almas. Os casais de velhinhos ingleses, sim, têm alma e uma reserva de quartos separados no céu. Mas fico aqui nesse inferno. O inferno são os outros que trago dentro de mim e as maiores saudades que sinto são de coisas que não aconteceram, como a primeira paixão e nossa vida, no teu seio, mais amores. Amor é sal de fruta, sabe? No começo ferve, borbulha, cosquinha gostosa no nariz. Depois? Aquela água morna, amarga, só pra aliviar. E nem alivia. Fazer o quê? Abrir o gás e botar a dor pra dormir? Eu não faço nada, não evito, sigo sem saber. Ai-lili-ailou. Por que é que a água ferve quando se entorna sobre a cal viva? De que é feita a fumaça? Por que é que o trovão azeda o leite? Como pode um homem andar em cima de um arame? Por que é que algumas cores vistas à luz do gás nos parecem diferentes? Fazemos mal às flores quando as cortamos? Por que é que a água salgada do mar não provoca sede nos peixes? O que aconteceria se o mundo girasse ao contrário? Por que faz frio no inverno? Donde provém a pedra-pomes? A que altura acima do horizonte veríamos a terra se estivéssemos na lua? Aonde vai ter o pó? O cantar de cada ave é sempre o mesmo? Por que têm as folhas formas tão diferentes? Podem os corpos inflamar-se espontaneamente? Por que há num dia duas marés? As moscas podem ouvir? Por que morre a abelha quando perde o ferrão? Por que ouvimos melhor quando fechamos os olhos? De que são feitos os nossos olhos? Por que veem os nossos olhos? Por que meus olhos não o veem mais? Ele se foi, quem é ele, se foi pra onde? A praia de areia fina com a água gelada do rio, as carretas cheias de eucaliptos indo embora e me contando que o mundo, garupas, montanhas, granizo nas ruas, os cachorros vivendo como gato e rato, as vontades de chorar, os medos namorando na porta fechada do quarto, as primeiras comunhões esquecendo rezas, minha teresa revelando o que havia embaixo de sua saia, porquinhos da índia assados, rodinhas sem bicicletas, jogos de botões e eu entrei no ônibus, sentei na janela aberta, ouvi o motor sendo ligado, fechei os olhos e vi tudo aquilo se transformar em nunca mais enquanto lá longe o sol se punha no mar como um sal de frutas vermelho. Mas eu não conhecia o mar. E fugi quando ele estava ao alcance dos meus pés. Mesmo assim não desisto. Quando vou aprontar o meu passado e poder vivê-lo finalmente? Qualquer dia desses vai ser a gota dágua, aí é que eu quero ver, eu perco as estribeiras, não respondo por mim, viro a mesa e digo todas as verdades. Ali, cara a cara, no espelho. Enquanto esse dia não chega reservo os domingos para viver um pouco. Gosto de passear nas Lojas Americanas. São tantas ofertas, tantos produtos, embalagens, prateleiras... E é tudo pra mim, pra mim. Um dia ainda faço uma loucura e compro aquela manteigueira de inox. Como brilha a manteigueira de inox. Dá até pra ver o meu rosto nela. Ah, os casais de velhinhos ingleses! Sabia que se você subir no terraço do Edifício Martinelli, num dia de semana e, de lá, olhar para as pessoas que transitam apressadas no centro de São Paulo, elas se parecerão com minúsculas formigas? Sabia que se você descer e olhá-las bem de perto, também? Sabia que o Pato Donald não tem nenhum parentesco com os três patinhos que ele chama de sobrinhos? E que toda noite, ao colocá-los na cama, ele faz sexo oral em cada um dos três?

Eu queria ser um casal de velhinhos ingleses. A morte ficaria lá fora no portão, mandaria um convite registrado pelo correio e eu me ajudaria a subir na carruagem pronta com um gesto largo de braços: "ladies first!"

 

 

[Do livro As primeiras pessoas. Rio de Janeiro: Oito e meio, 2012]

 

 

 

 

 

 

[imagem ©cadeira de balanço Astúrias, de Carlos Motta]

 

 

 

 

Cesar Cardoso. Roteirista, em 2012 faz parte da equipe de redatores do programa "Os Caras de Pau", da TV Globo. Já escreveu para programas de tevê como "TV Pirata", "A Grande Família" e "Sai de Baixo". Também foi colunista da revista Caros Amigos e dos jornais O Pasquim e O Planeta Diário. Um de seus livros para o público infantil, O Que É Que Não É?, (Editora Biruta) foi selecionado para o PNBE (programa Nacional de Biblioteca Escolar 2012) e para o Programa PNLD Alfabetização na Idade Certa, do Ministério da Educação.
 
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