Um dia desses, deu vontade de reler a poesia de Affonso Manta. No próximo ano, já se completa dez anos sem o poeta. Mas qual a real importância disso (sobretudo para aqueles que passaram, até aqui, a vida sem conhecer esse homem)? Você, certamente, poderia viver tranquilamente lendo e valorizando os clássicos da literatura (aqueles que ninguém fala mal com medo de soar ignorante) ou descobrindo novos tesouros perdidos nos sebos (se é que alguém ainda se perde por essas paragens). Assim, poderia o calejado leitor dizer-me, em tom de desaforo, que nunca ouviu falar em Affonso Manta: não falemos mais nisso e toquemos nossas vidas espirituais com fontes seguras e canonicamente reconhecidas.
Para acalmar os ânimos, alerto que não sou crítico literário e que este texto não emitirá nenhum juízo sobre a opera omnia deste ilustre desconhecido. Na verdade, a vontade de reler a poesia deste homem resgata em mim experiências da distante infância no interior baiano. Lembro-me que Manta gostava de ficar na praça central e, ali, conversava com seus amigos, fumava seus cigarros e gerava certo estranhamento ao meu olhar de criança. Eu tinha um medo tremendo daquele ser (na verdade, não sabia o que deveria temer mais: o poeta ou o velho monsenhor que, naquele tempo, também gastava suas horas na praça — um pouco mais acima do banco de Manta, porque é necessário separar o profano do sagrado).
Entretanto, mesmo com certo medo (ou timidez), jamais concordava com o julgamento rasteiro que imputavam ao velho poeta. Soava errado aos meus ouvidos adjetivar aquele homem como o estranho da cidade. Dava sempre a impressão de que as pessoas classificavam, pejorativamente, aquele homem como o mais excêntrico dos excêntricos para evitar que o mero fato dele existir e dizer, em versos, a que veio, incomodasse a tão almejada, limpinha mesmo, ordem social. É claro que naquele tempo eu não ligava para a moral, bons costumes, organização social etc. Era apenas um menino que se sentia incomodado com um senhor que teimava em gastar seus dias a observar os transeuntes e escrever livretos (nem preciso dizer quão "calorosa" era a recepção destes poemas pelos habitantes daquele sinal fulgurante de civilização).
E o que fez o menino covarde diante disso tudo? O que era de se esperar: nada. Cresci, vivi em outros lugares e, só mais tarde, venci o medo e li os versos do homem estranho da praça central. Ao ler, entendi o estranhamento. Compreendi a estratégia daquele senhor. Descobri que Manta não era a parte destoante e desnecessária da cidadela. A partir das leituras e releituras de seus versos, pude constatar que aquele temor pueril foi a benéfica oportunidade para ganhar um presente. Manta era, in persona, a Poesia. E com isso, ele me proporcionou a melhor das lições possíveis. Quase dez anos se passaram, ele se foi, mas ainda fica, ao reler sua poesia, a vontade de atravessar a praça central, apertar-lhe a mão e dizer: eu vi, eu sei, obrigado.
julho,
2012
Matheus Pazos, recifense de nascimento, criou-se no interior baiano. Atualmente, mora em Campinas-SP, onde faz mestrado em filosofia na Unicamp. Resolveu escrever crônicas para matar a saudade dos mestres já ausentes: Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Ivan Lessa e Paulo Francis. Escreve o blogue Crônicas exílicas.