O azul infinito e patético do mar
 
 
— Chega uma hora na vida que a gente para de apanhar que nem cachorro e senta o rabo num boteco sujo e pensa em algo por que estejamos dispostos a morrer. Literatura: escolhi esse câncer e agora sinto os buracos negros se espalhando como se Deus falasse através dos silêncios ofendidos embaixo do guarda-chuva.
— Podes crer, Miguel. É isso mesmo. Ontem, ouvi uma música diferente que mexeu comigo e liguei pra rádio pra perguntar o nome daquele troço que me deixou de peito ardido e me falaram que o locutor havia sofrido um infarto.
— Sabe, Ciro, eu sou um infeliz… Só você mesmo pra ouvir meus delírios roxos de solidão. — disse Miguel.
— Quero te agradecer por ter me apresentado aquele Amarelo-Rimbaud fudido e louco na África…
 
O cais parecia esmigalhar o arco-íris e o rio ainda sujo de sangue de um assassinato bêbado na noite anterior dava a atmosfera de filme noir.
 
— Lembra-se de quando nadávamos nessa porra e sorríamos como se não houvesse amanhã e tudo que alimentava a gente eram os poemas do Roberto Piva? — disse Miguel de olhos minguados.
— Lembro sim… Uma vez fomos pra porrada com uns punks fedorentos. Os filhos da puta pixaram o muro da marina, mais ou menos assim: "Pra que mar se tudo vira tsunami?". E depois de tantos socos e pontapés a gente pintou e escreveu: "Poesia é maremoto e aqui quem manda é nóis".
Riram como cordeiros apanhados em adultério.
— Nós éramos terríveis. A gente escrevia umas porcarias e bebia Sapupara pra caralho.
— Eu só queria dizer que tenho 1 ou 2 anos de vida e os tumores no rim estão se alastrando. Nesse instante Ciro tira o chapéu da cabeça do amigo e vê as ruínas de babel.
— Então ouve esse teu amigo só mais uma vez: vamos atravessar essa imensidão até o porto das lamentações?
 
Dois peixes-bois embriagados mergulham rumo ao desconhecido, quando Ciro olha pra trás não vê o amigo. Então deixa que a força misteriosa de Deus se encarregue de afundá-lo completamente no abismo do esquecimento. Peixes em redemoinho devorando poemas no fundo do rio. Um navio atravessa o azul patético do mar.
 
 
 

 
 
Eu também amo Neil Young
 
 
Talvez eu seja o único cara andando a pé do centro a nova cidade
Recolhendo restos de coisas do século passado e transformando em livros
Chorando, ouvindo aquela canção do Neil Young da boca de um mendigo.
 
 
 

 
 
O escritor mais barra pesada do Amazonas
 
 
Paulo César
As mulheres acham que podem mijar no coração da gente e sair sorrindo como se fossem passarinhos.
Diego
A grande mágoa da minha juventude foi não ter ficado com a garota da torre do aeroporto da Bahia.
Chiado das ondas.
Paulo César
O que tem escrito?
Diego
Quase nada. O que tinha pra escrever ficou guardado na gaveta das alegrias.
Bota a mão no peito pensando ser uma caixinha de música onde se guarda os segredos mais bonitos.
Paulo César
Literatura…
Diego
Não tem volta, cara. Você pode ser metralhado na saída de um bar ou explodir num avião, mas sua literatura vai estar lá dentro da alma misturada com o azul do mar.
Temporal. Asa delta caindo nas pedras.
Paulo César
Cê é o escritor mais barra pesada do Amazonas.
Diego
Sou nada. Às vezes, bate solidão e entro numas de sentar na cadeira de balanço e chorar fumando Derby olhando pras nuvens.
Paulo César
Conheceste minha ex-mulher?
Diego
Não.
Paulo cutuca os bolsos e puxa uma fotografia antiga de um casal se amando na Argentina.
Paulo César
Tá vendo esse cara dançando tango?
Diego
És tu?
Paulo César
Tinha bigode nessa época.
Diego
O que aconteceu?
Paulo César
Caiu da roda gigante. Ainda pude vê-la dando tchauzinho enquanto estava escorado na barraca de maçãs do amor.
Diego
Foda.
Paulo César
É por isso que gosto de vir aqui na praia falar de mulheres e literatura.
Diego
Bebe mais um gole?
Riram até o tsunami lamber os sonhos e arrebentar tudo.
 
 
 

 
 
Hipódromo
 
 
Equitação para o sentimento
Nuvens em movimento
Ela deitada no meu peito lendo meus poemas prediletos
 
 
 

 
 
Sou tão cretino que não dedicarei um livro de poemas para você
 
 
A lembrança é um barquinho cheio de velhinhas dando tchau
Seus cabelos encaracolados na matinê de domingo
Sou tão cretino que não dedicarei um livro de poemas para você.

 

Orangotangos

 

 

A roleta-russa dos ventos para derrubar uma arvore que não dá frutos
O sujeito que não aprendeu a escrever e desconta o rancor da poesia num sorvete de morango
Orangotangos.

 


 

 

 

 

Manaus

 

 

Teu sorriso amarelo feito balsa enferrujada no cais do porto
A gente abraçadinho na saída de uma peça escrota do Teatro Amazonas
Estrelas que transformam amores em verrugas eternas.

 


 

 

 

 

Liberdade

 

 

Em cada esquina você vê um monumento invisível falando do amor
Carência com bafo de conhaque
A solidão nua e crua como prédio desabando próxima a estação liberdade.

 


 

 

 

 

Outono em Blues

 

 

Dário

Fiquei em casa lendo O apanhador no campo de centeio.

Paula

Eu tenho tudo e nada preenche. Entro numas de descascar laranjas. Duas, três da manhã e chorar como bezerra desmamada.

Dário

Já tentou fazer terapia? Sei lá. Escrever uns poemas terminados em flor.

Paula

Ele levou a bicicleta.

Dário

Aquela vermelha com assentozinho de bebê na garupa?

Sorvete de morango enverga e cai no asfalto. Cãozinho sarnento chega de mansinho e dá uma lambida no troço rosa.

Dário

Pega tuas coisas e vamos pra casa.

Paula

Pra sua?

Dário

É. Lá você vai poder rir e alimentar os pombos.

Paula

Você é um amor.

Dário

Amigos servem pressas coisas.

Balão de gás desvencilhando-se das mãos da garotinha. Azulão. Câmera dá ré tocando Bach.

Paula

E o livro?

Dário

Recusaram o quinto capítulo.

Paula

Você é o maior romancista da história do Amazonas.

Dário

Pena que os críticos só babem ovo do Milton Hatoum.

Paula

Posso te falar uma coisa?

Dário

Fala.

Paula

Milton Hatoum é chato pra caralho.

Chuva. Buzinas. Pegadas de sangue. Dobram esquina e vislumbram bicicleta toda fudida ao lado de um corpo sem cabeça. Agora toca o silêncio.

 


 

 

 

 

Javalis

 

 

Casal ruivo dançando tango dentro do sonho da padaria

Teu sorriso é um livro de setecentos e setenta e sete páginas de poemas terminados em flor

A solidão dos javalis nadando no Discovery Channel.

 

 

 

 

[imagens ©beata bieniak]
 
 
 
 
 
 
Diego Moraes (Manaus/AM, 1982).  Escreve contos, poemas, peças de teatro e roteiros cinematográficos. Publicou A fotografia do meu antigo amor dançando tango (Juiz de Fora/MG: Bartlebee, 2012). Alimenta ursos e hipopótamos aqui: http://ursocongelado.tumblr.com.