VELHA. VELHA. VELHA.

 

 

Alguém está me seguindo. Seguindo. Seguindo. Eu apresso os passos e a pessoa que me segue também se apressa. O sol vai alto, encandeia-me o juízo. Às minhas costas, eu escuto alguém me dizendo velha, velha, velha. Não sei quem me segue tão insistente. Eu me esforço, mas não consigo. Não consigo. Estou envelhecendo a cada minuto. É irrevogável, irreversível, irreversível. Conheço meus sintomas, minhas manias mais antigas e as mais novas. Este meu jeito de me meter no que é dos outros. Não, não tenho esse direito. Meu tempo já passou. Já passou. Já passou. Não tenho nada a ver com o que não é minha vida. Eu temo parecer ridícula. Tento me controlar, tento frear meus dizeres, que é para não estar falando a toda hora. Toda hora. Toda hora. Detesto falar em tudo quanto é ocasião, em todo canto. Todo canto. Todo canto. Essas coisas são estranhas, muito estranhas. Minha casa é desarrumada,  o fogão na sala, a cama na cozinha, minha cabeça na lua. Tenho muitos anos de vida percorrida. Juntei em meu juízo tantas experiências. De que vale, se ninguém me ouve, ninguém presta atenção em mim. Noventa e dois anos. Noventa e dois. Magra, a pele franzida, velha e feia. Assim, vagueio pela casa corredor acima, corredor abaixo, sem destino. Sem destino. Sem destino. Vou até o portão e volto. Sem sentido, vou ao quintal, sem finalidade. Não escuto bem, vejo pouco, esqueço as coisas. Deixei minha blusa preta dentro da geladeira. Ralharam comigo por causa disso. Não tenho culpa. Não tenho culpa. As coisas de antigamente fervilham em minhas lembranças. Mas as coisas recentes são logo esquecidas. São esquecidas. Onde está minha família? Meu filho. É você, meu filho? Não, você não é meu filho. Como é o seu nome? Seu nome. Seu nome. Seu nome.

 

 
 

 

CASCAVEL

 

 

Nem Deus tem o direito de se meter no que faço ou deixo de fazer. A vida é minha. Quem é você para me criticar, para me corrigir. Eu fumo quando quero fumar. Bebo quando me dá na telha. Eu trepo, sim. Não devo nada a ninguém. Eu me mantenho com o ganho de cada dia. Tenho sorte com os meus clientes. Eles reconhecem e respeitam meu trabalho. Graças a Deus, eles me pagam na medida justa. É pouca coisa, eu sei, mas dá para ir me virando. Você me passa na cara coisas que não sou, coisas que não fiz. Você me diz que não presto. Diz que sempre fui ruim, fui puta. Que meu passado é escuro. Você me acusa de já ter sido prostituta de traficantes, que trepo até com presidiários. E daí. Sou mulher, sou fêmea viçosa, gosto de homem. Eu trabalho, tenho meus direitos. Você me acusa de viver baixando as calcinhas para todo mundo. Não é verdade. Não baixo as calcinhas para qualquer escroto que aparecer. Para mim, o dinheiro não é a coisa mais importante. Nem viagens, nem conforto. Você sabe disso, mas vive me cobrindo o rosto de vergonha. Se meus tempos de antigamente foram escabrosos, você também nunca foi flor que se cheire. Lembre-se que sei de seu passado. Homem safado. Macho casado e louco por menininhas. Tarado de crianças, você pensa que não sei. Sei de tudo. Portanto, não se meta a me desmoralizar. Tola sou eu que divido minha comida e minha bebida com você. Ocupamos um só espaço. Eu respiro seu hálito. Você respira meu hálito. Como pude ficar com um sujeito nojento como você, sabendo quem você é. Sua ingratidão não tem limites. Você não considera o que sofro em sua companhia. Não me considera quando sou muitas vezes generosa com você. Divido minhas coisas com você. Reparto minha vida, meu dinheiro. Mas, você me despreza, me humilha. Chama-me de puta, diz que sou vadia. Você usa palavras de baixo calão quando me fala. Se é por ciúme, fique sabendo que eu lhe sou fiel, sempre fui. Se vou para cama com outros machos, você sabe muito bem por que. Sabe que sou prostituta, eu vivo disso. Não sei fazer outra coisa. Mas nunca faltei com o respeito a sua pessoa. Eu sempre digo aos meus clientes que sou comprometida. Declaro a todos que você é o amor de minha vida. Não me impressiona esse seu ciúme, esse seu zelo hipócrita por mim. Pensa que sou idiota. Seu merda, inventou ciúme só para ter um motivo de me deixar, me trocar por outra. Mas juro que vai me pagar. Eu sou que nem cobra cascavel. Meu bote é traiçoeiro e meu veneno certeiro. Um dia, quando me cansar, eu enveneno você. Então me debruçarei no parapeito de uma janela num apartamento do 18º andar. Darei gargalhadas quando avistar seu enterro passando lá em baixo. Sua família chorando. Você inchado dentro de um caixão de luxo, lacrado.

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

EU ME CHAMO ANTUNÍSIO

 

 

Tenho dez anos. Não gosto do meu nome. Antunísio. Não sei onde minha mãe arrumou este nome. Eu preferia ter um nome comum, como qualquer menino, José, João, Paulo. Moro com minha mãe, minha irmã e minha tia por parte de mãe. Não, senhora. Não tenho pai. Faz tempo que meu pai foi embora. Disse que voltava logo e nunca voltou. Minha irmã é mais velha do que eu. Tem catorze anos. Sim, senhora. Minha irmã trabalha de babá na casa de um vereador que tem dois pirralhos. Minha irmã sai de casa de manhã bem cedo, e volta à boquinha da noite, todos os dias. Nos domingos, ela não trabalha, porque o domingo é dia de folga. Minha mãe trabalha de faxineira, pega no serviço de segunda a sábado. Em cada dia da semana, minha mãe faz faxina numa casa diferente. Eu sei decorado. Na segunda feira, é na casa do juiz. Na terça é na casa de um doutor aposentado. Na quarta é na casa de um dono de escola. De casa em casa, a cada dia, minha mãe varre, espana, lava, passa pano. E assim, vive a semana inteira. Quando não estou assistindo aulas, eu fico em casa, com minha tia. Não, senhora. Minha tia não trabalha fora. Ela cuida de casa, limpa tudo. Varre o terreiro de trás e o terreiro da frente da casa, lava nossas roupas. É muito asseada, essa minha tia. E também é muito cuidadosa. Quando temos coisas para fazer almoço, minha tia faz almoço. Cozinha feijão, arroz branco e alguma mistura. Às vezes comemos farofa de cuscuz de milho, que é mais barato e dá mais sustança, diz ela. Quando não temos nada, minha tia diz vamos comer pão e nos conformar. Não, senhora. Minha mãe diz que minha tia nunca se casou. Quando pergunto porque minha tia não casou, a mãe diz que isso não é assunto de menino. Sou acostumado com essas coisas de ser menino a vida inteira.  Estudo, sim, senhora. Pela manhã, vou para a Beneficência Cristã, que é onde pego aulas grátis de violão. Depois, vou cantar no coral dos meninos da igreja. À tarde, tenho aula no grupo escolar. Aprendi a ler com sete anos de idade. No começo, era difícil. Na minha casa, de madrugada, todo mundo dormia e eu não conseguia dormir. Na minha cabeça, eu tentava juntar letras, experimentava formar palavras. Ma-to. Mato. La-ta. Lata. Ti-a. Tia. Tive uma alegria muito grande quando, no meu juízo, pude juntar as letras z, o, r, r, o. E formei o nome zor-ro. Zorro. Daí por diante, foi mais fácil aprender. Hoje, já leio muita coisa e até já faço contas. Conheço os letreiros dos ônibus que passam perto da minha casa. Sei escrever meu nome e o nome da escola. Não, senhora, minha irmã não estuda, mas lê tudo. A coisa de que mais gosto na escola é a merenda que servem para a gente comer. Na segunda feira, servem sopa de legumes ou de carne, com muito macarrão e um pedaço de pão francês. A sopa parece um creme. Às vezes a merenda é leite com café e bolo, ou então é um copo de suco e cinco bolachas creme craque para cada menino. Eu gosto mais quando é dia de sopa cremosa com macarrão. De volta da escola, no caminho de casa, eu me distraio na rua, vendo os meninos jogando pelada, ou então escuto piadas, os pirralhos gostam de anedotas safadas. Sim, senhora. Eu sei rezar, mas não fiz primeira comunhão. Sei Ave Maria, Pai Nosso e Santo Anjo do Senhor. Quem me ensinou isso tudo foi minha tia, por causa que minha mãe não tem tempo. Sim, acredito que existe Deus, inferno, céu e limbo. Acredito que existem diabos e anjos da guarda. Mas, essas crenças não nasceram da minha cabeça, que eu ainda não tenho juízo completo, diz minha tia. De tanto minha tia ensinar, eu aprendi que existem céu, inferno, santos e essas coisas que ninguém vê nem pega, mas sabe. Não, senhora. Ainda não tenho namorada,  minha tia me diz que ainda sou novo. Hamm? Não entendi a pergunta. Se já tenho pelos no meu bilau? Nossa, eu tenho vergonha de responder. Que coisa, dona. A senhora está me dizendo que quer pegar? Não faça isso, dona, pare. Minha tia não tarda a chegar, foi ali na mercearia comprar massa de cuscus. A senhora está fazendo meu bilau inchar, agoniado. Não. Sim. Não sei não, senhora. Não. Não. Não pare, dona.

 

 
[ imagens©trent strohm ]
 

 

 

Dôra Limeira (João Pessoa/PB, 1938). Escritora, formou-se e especializou-se em História e foi professora em escolas particulares, públicas e na Universidade Federal da Paraíba, desenvolvendo projetos de pesquisa na área de Historia Regional do Nordeste. Fez curso de teatro, atuou como atriz e participou do grupo Teatralia. Publicou os livros de contos Arquitetura de um abandono (2003), Preces e orgasmos dos desvalidos (2005), O beijo de Deus (2007) e Os gemidos da rua (2009), todos eles pela Editora Manufatura/João Pessoa. Considera-se eminentemente contista e faz parte do Clube do Conto da Paraíba.