Wesley Duke Lee | "Egipciana" | Óleo sobre fotografia de Otto Stupakoff, com aplicação de buril
 

 

 

 

 

 

Criado-mudo

 

O rosário de jade sobre a Teogonia

O livro de Leonardo

Meu caderno de sonhos

Cristais de gengibre

A caixinha de Alhambra

A pedra cor-de-rosa

O hexágono da China

Potinhos de pedra-sabão de Minas

A obra em negro

Os escritos de Blake:

 

Tudo existe porque tem um nome

 

 

 

 

 

 

Declaração

 

Abúlica, nevrálgica, efêmera

Helênica, epidérmica, esdrúxula

itálica, inédita, neófita

ínclito, másculo, cáustico

seráfico, trópico, feérico

Amor às proparoxítonas

 

 

 

 

 

 

Os poetas de nossa cidade

 

Supõe as aves, as águas, os peixes

os redemoinhos, as cachoeiras, as retinas

repousadas

Supõe a bem-aventurança, o desatropelo, a lucidez

casas térreas

Supõe a urbe desurbana

a integridade

 

E supõe o sertão, chão de estrelas, vagalumes

 

Os poetas de nossa cidade

redivivos

 

 

 

 

 

 

Coração torto

 

O meu nome não é brasileiro

e o desespero tão profundo

sequer transparece na face

 

A minha raça é estrangeira

e o que me comove pode ser

mais forte do que o que me move

 

Eu reverencio a estranheza

 

 

 

 

 

 

O medo

 

Escombro de urzes

Anatomia de trevas

Abrolho

Entre os brotinhos

A relva fresca

 

A desalumbrar

 

E geme e entra por

tímpanos, vísceras

Estanca torrentes de pura luz

 

Momento de cal

 

Porta aferrolhada, negro gato

 

Por quê, em nome de Deus

Tão violenta sentinela

 

 

 

 

 

 

Tempo

 

Sábio e grave senhor desta esfera

Alerta e instiga nossa medida

Brilha, reluz, a face que o encara

Salteador cigano em densa neblina

Vela enfunada em tanta tormenta

rasga fronteiras, singra e ilumina

Vã sentinela, cáustica e atenta

Mago obstruso que a si determina

Nas vagas de dor, aqui e agora

É quem traz resposta, no éter perdido

Entre legiões de anos, tão preciso

Cala e ofusca o cal desta hora

 

 

 

 

 

 

Jockey

 

Pesando 58

como Joppy

Konisberg

Joldeneb

e Ostade

Goethe está inscrito

para a reunião de quarta-feira

 

 

 

 

 

 

Arcaicas íris

 

À raiz dos cílios

Decantar os rios

E constelações

 

 

Encantar o não

Encontrar o fim

Meio, fio e pão

 

Vigo, Vela, Volans

Tibre, Ganges, Tejo

Rios, Irons, orions

 

Nem três, nem total

Nem um, nem sinal

 

 

 

 

 

 

Aimez-vou Brahms?

(Sinfonia n. 2 em ré maior, op. 73

Sala Cecília Meireles/RJ)

 

Quer alcançar o céu

nem liga para pé no chão

a desafiar a gravidade

Allegro no troppo poderoso

demais para a pequena Cecília

a explodir os poros de todos os tijolos

 

 

 

 

 

 

Por quem o sinos dobram?

 

Para Roberto Piva e Wesley Duke Lee

 

O poeta rebelde hoje esquenta ao sol das 11 horas

No Parque da Água Branca

 

O poeta da cidade — ácido, lírico, transverso

 

Livro numa mão, firme

A outra, trêmula

 

Mas ainda aprecia os rapazes

E acha que as moças, cada vez mais, estão parecidas com eles

Por isso, até começa a gostar delas

 

(Teu olhar maluco atravessa os relógios as fontes a tarde

de São Paulo como um desejo espetacular tão

dopado de coragem

marfim de teu sorriso nascosto fra orizzonti perduti

assim te quero: anjo ardente no abraço da Paisagem)

 

Seu amigo, o artista plástico do primeiro hapenning desta cidade

Não reconhece mais o mundo

 

Quando o visitei, anos atrás

 

Figura de brilhos e fulgores

 

Mostrou uma mesa cheia de coisas empoeiradas

Não permitia que a limpassem:

"Para marcar a passagem do tempo"

 

Mostrou também um mural repleto de fotos da sua vida:

"Para não me esquecer"

 

"Ele dói e brilha", escrevi, emprestado verso de Veloso sobre o homem velho

 

Na parede a frase, quase no teto:

 

"Entusiasmo-Pleno de Deus"

 

Só hoje fui atrás da etmologia

 

Do Grego: entu: DEUS,

iasmo: Cheio

 

Pleno de entusiasmo, então, aquele velho homem belo

 

Uma enfermeira o acompanha, ele sorri

 

São Paulo, 28 de fevereiro de 2009.

 

 

 

 

 

 

Noite ocidental

(Pensando em Roberto Piva)

 

Um poema está escrito no lençol que voa do armário no caminhão de mudanças

Da Gare de Lyon até Santa Cecília é noite no Ocidente

Na hora sem estrela o poeta flana

Madrugada de ecos

"Oh cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar

Asilo na tua face?"

Não é de plumas seu discurso

É canino pontiagudo.

Heterodoxo e numinoso

Sangra a carne no Restaurante Brasileiro

Brada o poeta gesticulando

ecoa Höelderlin

"e para que ser poeta em tempos de penúria"?

Enquanto seus coturnos pisam corações desavisados

Predador voraz de décadas

Caçador de ovos azuis e coxas sem celulite

 

A vida sempre foi andar

 

Na hora sem estrela o poeta flana

cidade de pedras e luz

esconderijos escancarados

 

nem pai, nem mãe, nem mestre

quando o rouxinol gorjear será a hora

dos garotos que passam e de esticar o olho esquerdo

 

poetas bêbados confraternizam na madruga

estalando línguas

escorre do caminhão de lixo um livro de poemas sujos.

 

4 de outubro de 2010

 

 

 

 

 

 

S e r t ã o

 

Tudo será

esquecido

 

Tudo será

aprendido

 

Tudo terá

se fingido

 

Tudo sertão

 

 

 
 
 
 
 
Elizabeth Lorenzotti é jornalista e escritora, autora do livro de poemas As dez mil coisas (2011) pela Editora Biblos para a Amazon.com, prefácio de Claudio Willer; do ensaio Suplemento Literário: que falta ele faz (Imesp, 2007) e da biografia Tinhorão, o legendário (Imesp, 2010). Faz parte da antologia lusófona A poesia é para comer (Babel Brasil, 2011). Doutoranda em Literatura Brasileira pela FFLCH/USP.