CANÇÃO SEM RUMO

 

A vida subiu, desceu,

foi longe demais a vida.

Como uma estrela caída,

a minha vida desceu

rolando na tua vida.

 

Como uma estrela caída,

Caída, de onde? Do céu?

a tua vida desceu

rolando na minha vida,

como uma estrela caída.

 

 

 

 

 

 

O MENINO E O MUNDO

 

A água canta nas pedras.

Um arco-íris inocente brinca num raio de sol.

A vida sorri à vida.

A realidade está sonhando.

 

 

 

 

 

 

MISTICISMO

 

O céu lindo da vila pobre!

E a igreja pequenina, que se espicha toda na torre,

com vontade de ver o céu.

 

E o céu tão alto, e o céu tão alto!

 

 

 

 

 

 

TOADA DOS QUE NÃO PODEM AMAR

 

Os que não podem amar

estão cantando.

A luz é tão pouca, o ar é tão raro

que ninguém sabe como ainda vivem.

Os que não podem amar

estão cantando,

estão cantando

e morrendo.

 

Ninguém ouve o canto que soluça

por detrás das grades.

 

 

 

 

 

 

AQUI TERMINA O CAMINHO

 

Os sinos cantando, as sombras todas se diluindo

dentro da tarde. Dentro da tarde, o teu grave pensamento de exílio.

 

Por que ainda esperas? Aqui termina o caminho,

aqui morre a voz, e não há mais eco nem nada.

 

Por que não esquecer, agora, as imagens que tanto nos perturbaram

e que inutilmente nos conduziram

para nos deixar, de súbito, na primeira esquina?

Essa voz que vem, não sei de onde,

esses olhos que olham, não sei o quê,

esses braços que se estendem, não sei para onde...

 

Debalde esperarás que o oco de teus passos acorde os espaços que já não têm voz.

As almas já desertaram daqui.

E nenhum milagre te espera,

nenhum.

 

 

 

 

 

 

MEU CORAÇÃO

 

Penso agora nos mortos que não têm nome,

nos vivos que não têm nome;

penso agora naqueles que vieram cedo demais e se cansaram,

e naqueles que chegaram depois que todas as portas já estavam

                                                                       fechadas.

Penso agora na sede do homem desesperado que se deixou ficar no

                                               [deserto;

nos que lutaram inutilmente por caminhos que não levaram a nada;

nos que se calaram, porque compreenderam,

e nos que disseram todas as palavras e não foram compreendidos.

 

Por que foi que, de repente,

todas as vidas se somaram

para me envolver neste momento?

Meu coração se multiplica:

agora é apenas meu coração que está palpitando no mundo.

 

 

 

 

COMPREENSÃO

 

Bem sei que já não ouvirás mais, ah, nunca mais, as palavras

        de uma infinita doçura que estão nascendo dentro de mim.

Se elas falam sem voz, é porque a noite me surpreendeu, de repente,

                                nesta encruzilhada que não tem nome.

É daqui que partem os que não voltam;

é daqui que partem os que já não têm raízes, mas ainda vivem.

 

Em vão, me calo, bem vês.

Em vão me calo, tudo são vozes:

o mar e a noite, o céu e o vento.

Tudo são vozes.

 

Vozes de fogo... que dizem elas?

Que dizem elas que a claridade

se espalha no ar?

 

Só agora é que nos entendemos;

só agora é que teu sorriso,

morta a esperança, me ilumina.

 

Fraternais, os teus braços se estendem através da noite e é como se

                                                                a aurora me tocasse.

 

 

 

 

 

 

GÊNESE

 

Há sempre uma hora,

uma hora densa,

uma hora inesperada,

em que a paisagem mais inocente

tem o fulgor de um fiat.

O tempo sonha que é espaço,

o espaço sonha que é tempo,

a realidade se compenetra de sua irrealidade.

O homem repensa o mundo.

O mundo se recompõe em sua nostalgia de Deus.

 

 

 

 

 

 

BILHETE DE SUICIDA

 

Já nada importa.

Nada de nada.

Quero é silêncio

puro, ah, tão puro

que me redima

de cada sonho

e seu reverso,

de tanto amor

e seu vazio

de toda a vida

e seu remorso.

 

 

 

 

 

 

ÀS VEZES

 

Às vezes, subitamente, a poesia te visita.

Pura.

Infinitamente pura.

Como uma rosa.

Melhor ainda:

como a idéia de rosa.

 

 

 

 

 

QUEM SOU EU?

 

Estou diante de ti.

Imóvel.

Absolutamente imóvel.

Nu e silencioso.

Por que não te prevaleces deste instante

e não me revelas quem sou?

 

 

 

 

 

VIAGEM

 

Viajo agora contigo.

Que frios caminhos.

Que ermas solidões.

Que longa viagem.

Mas vou contigo.

Suspeito que nada sabes e calo-me.

Teu jeito de atravessar

nuvens, astros, nebulosas,

que jeito tão diferente

do que tinhas e fazias

sereno, à rosa dos ventos.

Mas segues e estou contigo.

Não sabes que te acompanho.

Não falas.

Não ouves.

Segues.

Não falas.

Apenas cumpres teu abstrato itinerário

súbito aberto no bojo da eternidade.

E que coisa fria a eternidade!

 

 

 

 

 

 

 

[imagem ©johanna may gustavsson]

 

 

 

 

EMÍLIO Guimarães MOURA (Dores do Indaiá/MG, 1902-Belo Horizonte/MG, 1971). Ao lado de Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, fez parte da célebre geração que renovou a literatura na Belo Horizonte dos anos 1920 e 1930. Embora pouco lido e conhecido ("poeta ainda não bastante admirado", na expressão de Otto Maria Carpeaux), é um dos nomes importantes do modernismo brasileiro. Publicou Ingenuidade (1931), Canto da hora amarga (1936), Cancioneiro (1945), O espelho e a musa (1949), O instante e o eterno e Poesia (reunião de Canto da hora amarga, Cancioneiro e o Espelho e a musa, 1953), A casa e 50 poemas escolhidos pelo autor (1961). Em 1970, recebeu o Prêmio de Poesia do Instituto Nacional do Livro com Itinerário poético, coletânea de todos os seus livros, considerada por ele sua obra definitiva. Mais: http://emiliomoura.br.tripod.com.