Em foto original de Ida C'K
 
 
 
 
 
 
 
 

 

SÉCULO XX

 

Quanto mais perto

das estrelas,

mais sangras:

os mercadores voltaram

com as três armas

e tomaram de vez o Templo;

e agora, contra a tristeza,

tomas um antidepressivo:

que século!

 

 

 

 

 

 

INSCRIÇÕES AO VIVO

 

Escreveu sua alegria

assim: "outubro",

e ninguém entendeu.

Ela era simples: ao arroz quente

deu a forma de suas mãos

e o amado achou-o doce,

e o amado nunca o esqueceu.

De pequenos

e constantes gestos

é que se faz

a grande saudação.

Foi assim que as palmeiras

e as crianças

conseguiram crescer

e suportar-nos.

 

 

 

 

 

 

A EGÍPCIA

 

Era uma moça de subúrbio

e daquela beleza leve

que a menor pétala do lírio

às vezes tem, quando amanhece;

 

mas uma simples balconista,

sem os tiques de toda artista,

 

o que produzia um efeito

simplesmente devastador

a quem tivesse esse defeito

 

de sempre amar o belo puro:

esta Cleópatra sem futuro

 

 

 

 

 

 

CONFLUÊNCIAS

 

                   Para Clau

 

Não te amo contra Maria,

contra Tereza,

contra Luzia;

eu te amo amando

todas as Marias,

todas as Terezas,

todas as Luzias

que moram em ti;

eu te amo a favor de todas

que não amei como a ti;

eu te amo amando

as duzentas Marias,

as trezentas Terezas,

as quatrocentas Luzias

que moram em ti.

 

 

 

 

 

 

ARTESÃ DO TEMPLO

À tia Albertina
 

Pranto mais litúrgico a cera
não derramou sobre o assoalho
da capela nova e suave
e mais rude que suas mãos.
 
Mágoa de minha tia que acha
poucas as flores do universo
e as faz de papel e de pano
entre suas santas de gesso.
 
Podem lá fora os carvoeiros
morrerem negros pela estrada,
ela o sabe, mas ainda é fraca
para levantá-los: faz flores.
 
Porque é seu modo de ser santa
e jardineira aqui na Terra.
Ela não critica o Senhor,
ajuda-O, a falta é tão grande.
 
Se são aves que estão faltando,
ela  se põe a trabalhar
no seu quartinho, modelando,
com muito amor, pombos de goma.

 

 

 

 

 

 

UM HOMEM NA REDE

 

Eu me dirijo ao homem frio
que me lê sem misericórdia,
e que me julga no silêncio
da tarde, entre duas mangueiras.

 

Na rede côncava, deitado,
solta uma queixa, que me atinge
e vai alcançar os primeiros
e últimos cárceres do tempo.

 

Tem como provas contra mim
alguma vírgula assustada,
algo que busca merecer
uma impossível salvação.

 

E de repente ri tão alto,
tão longe, que faz  balançar
as duas árvores absoltas
desde a semente, desde o Éden.

 

Todas as coisas inocentes
são castigadas, quando o tempo
embora curto é dividido
entre o sono e a destruição.

 

 

 

 

 

 

PUBLICAÇÃO DO CORPO

 

Quando distanciar-me das altas
nuvens, onde sempre habitei,
devo levar algumas delas
para que saibam minha pátria.

 

Após soltar de espaço a espaço
as cascas vivas da memória,
devo levar para a cidade
o corpo, esta palavra forte.

 

Só meu corpo vai realmente
pisar nos jardins e nos pátios
e com mãos novas sacudir
as grandes árvores por perto.

 

Vou conduzi-lo com o cuidado
de livro muito alvo na tarde:
É minha única esperança
de estar bem vivo entre vocês.

 

Só meu corpo sabe virar
todas as páginas do tempo
e só ele foi publicado
completo, para ser seguido.

 

 

 

 

 

 

ORAÇÃO PELO POEMA
 
XXVI

 

A cem quilômetros por hora,
solto a direção do automóvel,
para escrever alguma coisa
mais urgente que minha vida.

 

Devo portanto utilizar
o vocabulário econômico
do Século: é proibido
amar, fumar, pisar na grama.

 

Mas gostaria que restasse
algum tempo para dizer
no poema as palavras súbitas
de recompensa e remissão.

 

Ó meu Deus, eu quero escrever
a minha vida, não teu Céu.
Eu estou só e enlouquecido
como as ovelhas mais longínquas.

 

Dá pelo menos a esperança
de terminar o doloroso
poema. Dá isso a teu filho,
caído, e coberto de sal.

 

 

 

 

 

 

ESTAÇÃO TERMINAL

 

O céu parece revestido
de uma camada de cimento:
deixo as marquises porque sei
que esta chuva não passará.

 

Se esperasse um tempo de paz,
nem meu túmulo construiria.
Começo e recomeço a casa
de papelão em pleno inverno.

 

Um plano, um programa de ação
debaixo de uma árvore em prantos,
e voltar à primeira página
branca e ferida pela pressa.

 

A poesia já não seduz
a quem mais forte ultrapassou-a,
libertando um pouco de vida
e luz, da corrente de estrelas.

 

Toda renúncia nos convida
a recomeçar outra busca,
porque algo a inocência perdeu
no chão, para arrastar-se assim.

 

 

 

 

 

 

VINTE E TRÊS HORAS

 

Deveríamos estar em casa
ouvindo a mulher queixar-se
das crianças, das varizes,
do vento de agosto
quebrando suas dálias,
do seu corpo jovem
esperando o outro... verão.
Deveríamos estar com as mãos
em seus cabelos indecisos
e propondo-lhe o terrível
passeio de ônibus
à praia de São José da Coroa Grande,
em algum Domingo
depois da promoção.
Tudo isso seria possível
se a vida merecesse
uma agonia maior
do que o remorso
de não ter sofrido um pouco mais.

 

 

 

 

 

 

NOVA POESIA,
GROSSEIRA NOVIDADE


Urgência
de mandar um recado,
que não exija
outra forma
demorada e dúbia
de perfeição;
assim tenso
e condensado,
como de radiotelegrafista
comunicando, trêmulo,
a invasão.

 

 

 

 

 

 

PATRIOTISMO
A MEU MODO
 
Minha bandeira
é meu coração,
mas olho com amor
a pupila azul
da bandeira da pátria
procurando por mim;
minha pátria
é meu coração;
mas olho com pena
as pálpebras verdes
da bandeira da pátria
se fechando por mim.

 

 

 

 

 

 

NORDESTINOS FAZENDO FEIO

 

Sou besta, muito besta:
basta alguém prometer
algum horizonte
de terra molhada,
e já me domina
toda a eternidade:
isso não é coisa
que homem do norte,
homem de armas
pesadas, homem
com espinho velho
de facheiro nos pulsos
possa confessar.

 

 

 

 

 

 

ANÁFORAS

 

A palavra sabe doer,
quando esfria o sangue no rosto,
assim de surpresa, navio
atropelando o próprio porto;

 

sabe degolar a sereia:
chamar de gorda a moça feia;

 

sabe emudecer os aplausos
que aconteceram anteontem,
depois de décadas de atraso;

 

sabe matar pelo distrito,
sem deixar marcas do delito.

 

 

 

 

 

 

ESSAS VELHAS SURPRESAS

 

Fora do fogo,
não há saída:
porque fugir
é a pior
maneira de ficar.
Teus escuros
e falsamente apodrecidos
pedaços
envenenarão os abutres:
isso ainda é lutar.
Fora da luta,
não há descanso merecido
não existe despertar.