Ademir Assunção
2 poemas
Tanto ódio, Carlos
o mundo é grande
e tem extremos
tem estrela e tem estrume
tem perfume e tem veneno
tem dias a gente ama
tem dias a gente briga
mundo mundo vasto mundo
mundo malo mundo bueno
não me chamo raimundo
mas algo estranho me intriga
como cabe tanto ódio
num caráter tão pequeno?
Um idiota no meio do caminho
não havia uma pedra no meio do caminho
havia um idiota completo com seu olor de ódio
um idiota completo que relinchava
— sem a elegância dos cavalos
um idiota completo com seu fedor de coisa pútrida
babando bílis, bebendo pus, peidando, defecando
sobre bandeiras verdes sem matas
sobre bandeiras azuis de céus sufocantes
sobre bandeiras amarelas de raiva
sobre bandeiras brancas manchadas de sangue
um idiota completo regurgitando e resfolegando
violência, tortura, ameaças, assassinatos
um idiota completo e mentiroso com seu pau hasteado
numa selva escura e sem saída, sem onça-pintada
sem lobo-guará, sem tatu-peba, sem rola-bosta
um idiota completo que berra nos ouvidos de madalena
eu não te estupro porque você é feia!
meu filho não te come porque você é preta!
um führerzinho mal ajambrado em talho tosco
gritando morte aos veados! morte aos vermelhos!
morte aos que ouvem essa música barulhenta!
morte aos montes! morte em marte! marche! marche!
e a turba trevosa e tenebrosa entra em transe
e afia as facas e estala as esporas e engatilha as armas
revelando às crianças uma face dura e rude
sem leveza, sem beleza, sem delicadeza alguma
um idiota tão maligno e digno de pena
que nem vale o esforço de um poema
Ademir Assunção
Na Germina
> Poesia
> Risca Faca
Adriana Versiani
O amor e seu tempo
entre bananeiras,
a bica
onde, velha, se banhava.
sobre a pedra de minério:
a sombra de José,
esquecido das palavras.
dos pássaros,
agora,
só sabiam as asas.
Adriana Versiani
Na Germina
> Poesia
> A Genética da Coisa
> Sementinha
Alex Simões
QU4DR1LHA
João marcava Teresa que enviava a Raimundo
num direct pra Maria que zapeava Joaquim que tuitava pra Lili
que não dava match com ninguém.
Raimundo foi cancelado, Maria compartilha fake news,
Joaquim e Lili estão em isolamento social,
marcando nas publicações e enviando pro zap de J. Pinto Fernandes
que não tinha visualizado o Stories.
Alex Simões
Na Germina
> Poesia
> Estar vivo é poder sempre perder-se
Amanda Vital
confidência
para Drummond
assim que ponho os pés
nas calçadas empoeiradas
do pó preto da Usiminas
retiro de seus altos-fornos
as lâminas da minha vida
"sou triste, orgulhoso: de ferro"
já dizia o poeta dos minérios
e alguns quilômetros depois
transformam a poesia em aço
oitenta por cento de mim
é de material galvanizado
filha legítima da siderurgia,
pretume dos pés descalços.
Amanda Vital
Na Germina
> Poesia
André Ricardo Aguiar
Quadrilha
João que pegou de Tereza que pegou de Raimundo
que pegou de Maria que pegou de Joaquim
que pegou de Lili que pegou de alguém.
João foi pro hospital, Tereza pra quarentena, Raimundo
foi só uma virose, Maria espalhou fake news,
Joaquim foi pra aglomeração, Lili ficou em casa
lavando freneticamente as mãos enquanto via na TV
Bolsonaro — que não tinha entrado pra história —
infectar o país.
André Ricardo Aguiar
Na Germina
> Poesia
Antônio Oswaldo
Guedes (Drummondiana nº 1)
E agora, Guedes?
O Chile acordou,
A luz acendeu,
A noite esquentou,
Estudante gritou,
Revolta espalhou,
Escumalha aderiu...
E agora, Guedes?
O que será do Chile,
Se salário já não há
E a universidade pública
Virou paga por lá?
E os velhinhos suicidas,
Sem plano de saúde?
E o povo todo,
Sem saúde pública?
O que seus Chicago's Boys,
Mimados playboys,
Aprontaram por lá?
E agora, Guedes?
O metrô não veio,
Santiago parou,
O Chile descarrilhou,
Barricada surgiu,
Tudo queimou,
General decretou
Toque de recolher,
Não adiantou,
Povaréu desafiou...
E agora, Guedes?
A receita falhou?
Seu modelo faliu?
O Chile não era tão bom?
Eu não quis acreditar
Que você faria
Igual por aqui...
E agora que o Chile fracassou
Onde está seu modelo
Que já matou vinte,
Feriu cem,
Prendeu mil?...
Seu modelo chileno
Não era tão bom?
Como foi que faliu?
E agora, Guedes?
Chile não há mais...
Você está sozinho no escuro,
Perdido, sem rumo...
Mas errar é tão humano!
Corrija a rota,
Admita a derrota
Dos seus Chicago's Boys,
Seus Chicago's "Toys"
De gente que manda,
Comanda a miséria...
E agora, Guedes?
Que seu neoliberalismo
Nos lançou no abismo
Da desesperança?
Coragem!
Faça mea culpa,
Saia de cena,
Mas não fuja correndo,
Diga que falhou,
Beba o seu veneno
E morra com a honra
Tão pouca que lhe sobrou...
Chico Buarque
Até o fim
Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
Inda garoto deixei de ir à escola
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão, eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fim
Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim
Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso
Em Quixeramobim
Não sei como o maracatu começou
Mas vou até o fim
Por conta de umas questões paralelas
Quebraram meu bandolim
Não querem mais ouvir as minhas mazelas
E a minha voz chinfrim
Criei barriga, minha mula empacou
Mas vou até o fim
Não tem cigarro, acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim?
Eu já nem lembro pronde mesmo que vou
Mas vou até o fim
Como já disse era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu tava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
Chico Buarque
Na Web
> Quase tudo
Emílio Moura
Soneto a Carlos Drummond de Andrade
A hora madura envolve-te e palpita
nela o que ora te oferta, ora recusa:
posse do que és, na solidão recôndita,
graça de amar, ressurreição dos mitos.
Claros enigmas riscam céus distantes.
Falam-te as coisas pela voz que é o próprio
sentimento do mundo e pela meiga
sombra gentil que ressuscita a infância.
Ouço-te andar nas lajes desta rua,
que nem sei se é de Minas ou de alguma
pátria remota que ao teu canto se abre.
E amo-te a voz multiplicada em ecos:
verbo dócil à força íntima e pura
que à máquina do mundo se incorpora.
Emílio Moura
Na Germina
> Poesia
> Emílio Moura: abandono póstumo, por Fabrício Carpinejar
Fabrício Marques
2 poemas
nascer é muito comprido
quando eu nasci
nem um anjo torto
desses que vivem na sombra
nem um anjo esbelto
desses que tocam trombeta
nem um anjo muito louco
com asas de avião
nem um anjo safado
chato querubim
surgiu-me, no meio de tantos
serafins, um estranho ser
equilibrando-se entre a vaga
literatura e os poemas com defeito
primeiro anunciou: não há nada a dizer
embora nada tenha sido dito
disse depois, principalmente:
tudo já foi dito, inclusive isto
então saiu, meio sem jeito
com passos desencontrados
no torvelinho dos séculos
minha voz é um eco
dentro do silêncio de um eco
em outros ecos desdobrado
Ecos de Drummond
Por que só existir?
Que tal viver?
[o poema virou canção]
Fabrício Marques
Na Germina
> Poesia
> A carne é franca
Guga Limeira & Hugo Limeira
Abril
[cantiga de amor sem eira nem beira...]
Guga Limeira
Na Web
> Paraíba Criativa
> Instagram
Jairo Fará
Meia homenagem a Drummond
No meio do cameio tinha meia pedra
Ao meio-dia e meia
No meio do cameio tinha meia pedra
Nunca meio esquecerei desse acontecimeio
Na vida das meias retinas meio fatigadas
N me d cam tin u ped e me.
Jairo Fará
Na Germina
> Poesia
> Ilustração [Poesia Visual]
Kaio Carmona
Na Germina
> Poesia
Kátia Borges:
Perdi o bonde e a esperança, São Longuinho
Se eu achar, dou três pulinhos e não volto pálido para casa
Kátia Borges
Na Germina
> Poesia
> O poema perfeito brinca entre os ossos do crânio
líria porto
maria-homem
(chamam-na assim lá no bairro)
tem cabelo nas ventas
enfrenta o trabalho
o patrão
e quando volta pra casa
traz leite pão e até carne
pra alimentar as crianças
(o marido
aquele traste)
líria porto
Na Germina
> poesia
> tudo vira poesia
Mariza Lourenço
orgânico
no meio do caminho tinha uma cueca
surrada, encardida, mas de bom uso, ainda
lavei-a com esmero em sabão de coco
e amaciante
oh, bons anos de ventura aqueles
com minha querida cueca
[felicidade não é bem durável]
noutros caminhos, outras cuecas
e a falta de paciência
melhor levar à lavanderia
resolvi: encardiu
vai pro lixo
[felicidade não se recicla]
Mariza Lourenço
Na Germina
> Contos
> A Genética da Coisa
Nuno Rau
Coração Veterano
quando eu nasci um anjo porco
desses que andam nos esgotos
veio ler a minha mão
não disse nada
e de soslaio
seguiu subtraindo ao ar de maio
todos os signos postos na escritura
quando eu nasci um anjo sonso
e louco cego súbito inconstante
veio ler a minha mão
esse farsante
riscou um tosco enigma em minha pele
e sem anestesia:
será poesia?
Nuno Rau
Na Germina
> Poesia
> Escola de Samba Grêmio Recreativo Solidão
Raul Drewnick:
Quando eu nasci um anjo torto
como aquele do Drummond
disse vai polaco
chispa poltrão
você tem sorte.
Se você fosse outro
tinha nascido morto.
No rumo da modernidade
depois de tantos anos penosos
ainda temos sonhos pecaminosos
com lírios românticos
com ícones parnasianos
e já chegamos à metade
sem encontrar nem mário
nem oswald nem
carlos drummond de andrade.
Raul Drewnick
Na Germina
> Poesia
Romério Rômulo
Deixei as vidas arcaicas, delinquentes
Não vim de pai nem mãe. Sou filho torto.
Eu, filho da quadrilha e do esgoto.
Bandeiras ancestrais que me trouxeram
Nos ouros e nas pedras me deixaram.
Fui quantos na estrada deste mundo?
Não tive rima, nunca fui Raimundo.
Amei fadas e bruxas e miúras
E fui queimado no fogo destas fúrias.
Deixei as vidas arcaicas, delinquentes
No rasgo das estradas mais dementes.
Eu amei tantas, nem tanto fui amado
Absurdas vilãs do meu pecado.
Romério Rômulo
Na Germina
> Poesia
> Entrevista
> A Genética da Coisa
> Na Berlinda [Poemas]
Silvana Guimarães
arruaça
para drummond, meu príncipe
ele me lambia
e a lama debruçava-se sobre brumadinho
ele me lambia
a boca os dentes a barba babasilabavam
ele me lambia
e o 38º presidente tomava posse do brasil
ele me lambia
o coração chamejava entre as coxas
ele me lambia
e lula deixava a prisão
ele me lambia
o beijo abocanhava cuspe & cheiro de sal
ele me lambia
e o tal presidente destroçava o país
ele me lambia
meu nome na ponta da línguafaca
ele me lambia
e uma onça esturricava no pantanal
ele me lambia
aquela língua tão quente tão fugaz tão lenta
Silvana Guimarães
Na Germina
> 7 Contos de Réus
> A Genética da Coisa
Torquato Neto
Let's play that
quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let's play that
[Antônio Carlos Belchior]
outubro,
2021