Dia desses Arlete Porto, jornalista da Revista FOCO, em Passos, me perguntou uma coisa que sempre tive vontade de contar, mas nunca o fiz.
"Como foi que você conheceu Drummond, o poeta?".
Não sei se por timidez — ou por falta de tempo mesmo, fui deixando pra depois... Há coisas da memória que a gente vai adiando sempre, como se com isso pudéssemos também ir alongando o tempo. Engraçado, o tempo: é uma espécie de estilingue... Deixa então eu botar minha pedra no caminho desse bodoque e esticar a goma. Depois, se eu quebrar a vidraça, tento pagar o conserto.
Puxemos pela memória...
Eu tinha 27 anos, era 1981. Acabara de voltar de uma primeira viagem ao Iraque, onde estive trabalhando na construção da ferrovia Bagdá-Akashat e da Expressway, que ligava Bagdá a Ammam, na Jordânia. Jeferson de Andrade, grande amigo — e o cara que me deu o primeiro emprego em Beagá (em 73) — já era editor da Record, no Rio. A Record tinha acabado de comprar o passe de Drummond, que estava na José Olympio. Então, Jeferson e CDA ficaram amigos. O primeiro editava o segundo. E eu morria de vontade de conhecer pessoalmente meu ídolo maior: ele, o grande poeta de Sentimento do mundo! Na verdade, já havíamos trocado correspondência, depois que ele leu meu primeiro livro: O sono provisório. Esse livrinho (editado pelo Paulo Rocco, que na época estava na Francisco Alves) havia ganhado o prestigioso Prêmio Remington de 77, concorrendo com mais de 3 mil escritores do Brasil inteiro. E como eu era totalmente inédito, e com 21 anos, aquilo estava chamando a atenção do pessoal da área, modéstia às favas.
Drummond recebeu o livro via Affonso Romano e Silviano Santiago, que estavam na Comissão Julgadora, juntamente com a professora Dirce Cortes Riedel, da UFRJ. O poeta, então, me encheu a bola numa carta (aliás, chegou até a fazer algumas linhas sobre minha poesia, em uma de suas crônicas do JB).
Aí, passamos a trocar figurinhas.
Lá um belo dia o Jeferson me liga e fala:
— Quer conhecer o hôme?
Quase desmaiei. E fui pro Rio, mais a Graça, minha mulher. Lá chegando, encontramos também com o Roberto Amado (sobrinho do Jorge Amado) que era doidinho pra conhecê-lo, que nem eu. Aí, na hora de entrar e subir o elevador pantográfico do prédio onde ele morava, na Rua Conselheiro Lafaiete, me deu uma suadeira, uns arrepios na espinha e coisital... Trem de tiete mesmo, diante da possibilidade de conhecer o ídolo maior, o monstro sagrado da adolescência e da juventude.
Na hora agá as pernas tremeram e falei:
— Podem ir na frente que vou tomar um pouco mais de coragem! Vou depois...
Os três, então, subiram. Na porta do prédio acendi um cigarro. Me lembro que era o último palito de uma caixa de fósforos... Tentei relaxar e, depois de uns minutos, vupt!
Subi. E de repente vi o poeta ali na minha frente: magrinho, cara chupada, queixo proeminente (que nem o meu), olhinhos vivos e azuis, fala mansa, cordial. E como falava! Ao contrário do que muitos pensam, não era tímido coisa nenhuma, e sim um sujeito genial mesmo, com uma verve e uma oratória de deixar qualquer bom "adevogado" no chinelo!
Naquela tarde conversamos e conversamos, entre doses de conhaque (um Napoleón legítimo, que me deu de presente) e uns queijinhos provolone, de tira-gosto. Ele queria também me servir uma pinga "da boa" — pois já sabia que eu gostava de apreciar umas canjebrinas — mas resisti. Não misturei. Só misturei as palavras mesmo. Eu parecia uma máquina de escrever enferrujada. Catilografava o ar, mas não conseguia encontrá-las, as palavras... Cadê elas? Fugiram pra Pasárgada? Ou pra Itabira?
Nesse vaivém de batucada cacofônica, coração também desfibrilado, de repente, me surgiu um assunto. Falei que já estava meio desanimado com "esse trem de ser poeta, num país de ágrafos e analfabetos...". Enfim, reclamei da falta de leitores, no país, para o gênero poético. Então ele respondeu o seguinte (e nunca mais me esqueci disso):
— Olha, meu rapaz, se você fosse jogador de futebol, com 27 anos nas costas e ainda não tivesse sido convocado para a Seleção Brasileira, eu te daria razão. Mas você, nessa idade, já faz parte da Seleção Brasileira de Poesia, não percebeu ainda?
Me arrepiei! — E aí ele completou o nocaute, me mandou pra lona, de vez! – De mais a mais, normalmente, um poeta só se faz depois dos 60 anos bem vividos! De forma que, aos 27, você já tem 33 anos de frente no páreo com os outros convocados!
Então, o que restava da minha tapera veio abaixo! Puxei outro cigarro pra relaxar, mas cadê fósforos? Ele percebeu minha ansiedade e foi lá na cozinha buscar uma caixinha. Gentilmente acendeu-me o cigarro — como era cavalheiro! E botou a caixinha em cima da mesa. Tentei rebater a teoria dele, dizendo que era "muito tempo pra encarar, que nunca havia pensado em viver até os 60 anos", coisital... essas velocidades que a gente se impõe na juventude. Ele falou que também, na minha idade, pensava da mesma forma.
Rimos a valer, convers
amos fiado mais um pouco. A Graça descobriu com ele alguns parentes comuns em Itabira (coisas de mineiro) e até ganhou de presente um desenho que ele fez na hora, de próprio punho: um bico de pena de São Francisco de Assis.
Jeferson e Roberto ficaram na maior inveja. E, na saída, depois de mais um golinho de Napoleón, o Roberto pegou a caixinha de fósforos em cima da mesa e pediu pra ele um autógrafo: iria levá-la de recordação. Drummond assinou, nos despedimos e descemos novamente pelo elevador pantográfico. Lá embaixo protestei:
— Roberto, essa caixinha de fósforos devia ser minha, pois ele acendeu com ela foi o meeeeeeu cigarro! E não o seu! (Roberto também fumava).
Ele propôs, então, que jogássemos uma partida de porrinha — era um exímio jogador de porrinha. E quem ganhasse ficaria com a caixinha. E claro, ele tinha certeza de que iria ganhar mais essa. Então jogamos. Saí de lona. Ele cantou dois palitos. Eu cantei um... e pimba! Acertei!
Até hoje tenho essa caixinha guardada no meu escritório, do jeitinho que ela ficou: uma Fiat Lux com 44 palitos! Só um foi usado! E esse um palito, mais tarde, Roberto me confessou: ficou com ele também. Pegou-o no cinzeiro e levou-o de lembrança, por via das dúvidas... Pode uma coisa dessas?
Naquele dia também ouvi do mestre, na despedida, algo que nunca mais me esqueci. E que procuro sempre colocar em prática na minha vida (antes de riscar um fósforo pra iluminar a escuridão dos dias ou já ir botando mais fogo na refinaria em chamas):
"Nenhuma literatura vale mais do que uma boa amizade!".
Fecho a porta com calma. Penso que a vida retorna aos poucos, encontros, olhares, vozes queridas. Recolho as taças, os pratos, desligo a vitrola (sim, vitrola), guardo o Clube da Esquina; Dora se recolhe; e no apagar das luzes, a lua me surpreende, atenta, silente, serena, pairando sobre o jasmineiro, e diz: vai, Diana, ser gauche na vida. Ah, noite, noite de lua. É cedo ainda, medita a mulher que crê na poesia das madrugadas. Dormir de janelas abertas, de lua; mas antes uma pequena saideira "dose" de vinho (me falta conhaque), é preciso sonhar comovida como o diabo...