Estrangeiro

 

 

No pesadelo da noite anterior eu morria nessas paragens. Velho e só, feito agora. Uma tarde igual a essa, quente e de brisa nenhuma, o ar como que estagnado. Um mal que me acometia num desses repentes. Me levava até a última memória. E lá ficava eu, oco por dentro, minguando sob aquele deserto todo, azul e ofuscante, qual esse que já me assola o juízo. Piso o cimento, ensaio palavras numa língua que mal sinto o gosto. Tarde de domingo, acho. Caminho a passos omissos. A estação rodoviária deserta. Penso se chegaria ao fim de tudo. Esqueço o propósito de minha viagem até ali. Deixo de buscar o endereço horas depois, mais ou menos quando me perdi. Mais ou menos nesse instante, quando resolvi entregar os pontos e ceder. Sim, mais ou menos aí, quando eu já não tinha mais forças para exigir coisa alguma de minha vida àquela altura. De modo que sentei. O banco de pedra de meu pesadelo. E esperei, sobre o dorso das horas. Esperei que algo me ocorresse. Uma puta dor no peito...

 

 

 

 

Fome

 

Disse que estava faminto, que essa sua fome o consumia o corpo, ali onde só a presença um do outro não abarcaria esse anseio todo. Sua pele era curtida do sol, um bronzeado castigado, me lembrava até a de um retirante, com seu fado sobre o espinhaço, pelejando com Deus a própria sobrevivência. Lá fora ardia o sol. E de pensá-lo, assim, alheia que eu estava, esmorecia e queria desabar, feito corpo morto. Não sei se digo algo, ou se me deixo antever no precipício que eu imaginava perigar, mas esse homem que aí vem, a pele recendindo a água de mar, o sorriso na boca, esse homem aí vem e me ampara o corpo e diz também padecer dessa fome. Que eu não me privasse, pelo contrário, que eu me agarrasse à vida com aquele ardor. Diz isso e me beija, o beijo salgado de um banhista à beira-mar. Tudo sob esse teto, uma tarde quente de segunda-feira. O dia lá fora a arder em brisa nenhuma. Alguém se queixa, a vida parece mesmo ruir. E cá dentro esse homem me penetra a carne, cada vez mais fundo, com a força de quem tem tudo prestes a se perder. Gozo duas, três vezes sob esse seu corpo suado. E algo em mim se esvai, de modo a me deixar ali, exausta...

 

 

 
 

 

Meiohomem

 

Sim, eu era esse homem a recolher dessas mãos incrivelmente limpas os poucos préstimos de sua generosidade. Mãos alvas, sequer me interessava o restante provável do corpo que as sustentavam naquele movimento até mim, ali ao chão. Toquei-as, involuntário. E estremeci, como se num repente me percorresse o corpo a certeza de outro, que me tomasse sem sobreaviso, habitando os dois essa precariedade que eu era. Agradeci. Guardei os cents no bolso, e me perguntei para onde eu seguiria dali, então. Onde eu haveria de descansar esse corpo já negligenciado, sem que sentisse a ameaça me rondar nas sombras de uma madrugada árida desses confins. E se eu me exilasse, sim, buscasse outra afirmação, talvez se me recostasse sob uma marquise, esse corpo ainda, esse mesmo, talvez se eu o recostasse e aguardasse, como sempre fiz, quem sabe agarrado àquele fruto convulso em meu peito, e aguardasse sim, que essa dor não me consumisse por demais a parca existência e eu pudesse assim ansiar uma sobrevida, um pouco mais ainda...

 

 

 

 

No Instante

 

... que ficássemos ali, então, feito agora: meio que à deriva os dois, suspensos no que ainda me parecia o meio do dia num domingo mormacento, de brisa quase nenhuma, amenizando nosso cansaço aos pés de uma frondosa sombra, aquela que eu imaginara que amenizasse esse nosso cansaço à certa altura, aguardando o momento seguinte àquela nossa sonolência. A brisa nos lambe a pele, com algo de ruína, e penso que bom seria não esperar nada mais de meu destino dali em diante, que eu me desatasse dele, assim feito quem abre mão da própria vida. Só penso, porém. A bem da verdade não dizemos nada. Ficamos mudos. E sim, ficaríamos desse modo por um bom pedaço de tempo, com esse ranço de palavras perecendo no silêncio que nutríamos ali, no meio do dia num domingo mormacento, amenizando nosso cansaço aos pés de uma frondosa sombra e, repito, ficaríamos desse modo por um bom tempo, aliás, um bom pedaço de tempo, aguardaríamos bem ali, naquele pedaço do dia, sem desenlace algum, saboreando esse instante duro, ruminando algo de inspiração que nos arrebatasse dali posteriormente, quem sabe, ali mesmo, onde já quase dormitávamos sob as horas, antevendo nossa morte... [Inverno 2009]

 

 

 

 

O Banhista

 

Toquei-lhe com esses dedos naquele instante, imaginando a manhã já quedar em face do calor virulento da tarde. Cheguei mesmo a conferir-lhe a respiração, assim, colado rente ao seu rosto, a fim de sentir-lhe algo afetado, os miasmas que exalavam daquele sono veemente, uma nesga que fosse de sua existência naquele corpo. Nada. Havia morrido, acho. Levantei. E disse comigo mesmo Ainda nessa manhã verei e tocarei o mar, eu disse comigo mesmo antes que tudo ruísse. E que me daria por inteiro, feito oferenda àquele ventre convulso, e me esqueceria de um corpo sem vida em meu quarto. Faria isso como que a castigar essa carne que aí vai e pisa a areia morna da praia lá fora e pensa Meus pés já perderam o costume dessas paragens e agora vagam nesse anseio torto, pensa assim, e lhe ocorre, num repente, como se num mal que o assolasse, o que havia esquecido horas antes, como algo que se reduzisse a pó...

 

 

 

 

Áridas Rotinas

 

(...)             Eu morreria com o ranço da fome me azedando a boca: a memória sofrida das primeiras horas do dia. O ânimo de um desvalido nessa tarde de um outono pegajoso: morreria e apodreceria ali e tudo seria paz. Morreria, assim feito o sono da noite anterior, quando eu não cria poder mais.           Faz calor, uma brisa morna feito o hálito de Illar vem e me lambe o corpo e me reduz a ruína — essa, sob o arvoredo, quase no fim dos dias. Eu esse homem a sofrer sabe Deus o quê. Lembro, não faz muito, e eu descia um caminho logo ali, veja, e imaginava tudo ceder: o dia, esse meu corpo — a vida minguando feito as forças que não sustentam nem mesmo o corpo — o cansaço de quem deita e morre: tudo daria a esmorecer no mais íntimo de mim, padeceria da própria inatividade, apodreceria, lembra? Não faz muito, agora há pouco, quando eu ainda não havia me dado conta de que deitava esse meu corpo e sofria, sabe Deus o quê.
 
 
(imagens @dominic rouse)
 
 
 
 
Fábio de Souza (Cuiabá/MT, 1987). Escritor. É colaborador do coletivo literário Dona Zica tá braba. Reside atualmente em Brasília.