ASPEREZA

 

No calo, na ruga,

o gosto do sentimento,

o tempo resignando

acostumando o corpo

ao sofrimento.

O homem na erosão da vida

consumida pelo vento,

o fogo lento das paixões

lavrando a dúvida

e o desalento,

a esperança crua

na carne encarcerada

de alegria,

de onde germina o abandono,

a lágrima, o lamento.

O sonho

— alimento de vigílias —

o remorso

— complemento da ira —

a morte

instrumento da paz.

 

 

 

 

 

 

PERPLEXIDADE

 

Olha para a vida que passou

para o que não fizeste

para o amor que não vingou.

 

Olha para os olhos no espelho:

há neles a loucura e o medo de estar só.

 

És velho e já não choras

nem ousas mais sonhar que eras menino.

 

Nada ficou por baixo do sorriso

que o tempo desfez.

 

Foste traído: a vida era só isso.

Olha para a morte que chegou.

 

 

 

 

 

 

SINGRADURA

 

À margem da varanda passa a rua:

desce as escadas, joga-se no mar

o velho banhista —

úmido da luz crepuscular

a sua carne murcha no tempo

entristecida pelo vício de nadar sem rumo

e desaparecer na linha do horizonte

como um Deus que dividisse o mar.

 

 

 

 

 

 

CAIXA-PRETA

 

É preciso olhar o morto:

saber se quando morreu

estava alegre ou absorto,

saber o que em sua vida

deu certo ou deu errado,

se deixou fortuna ou dívida,

morreu pobre ou no conforto.

Será que seu corpo amou

e não foi bastante amado?

Será que pediu socorro

do homem que o assaltou?

Olhemos sua caixa-preta:

o que sobrou do acidente

de estar vivo e de repente

atirado a uma sargeta?

certo é que o tempo de areia

escorreu pela ampulheta,

e não se sabe direito

se a morte foi lenta ou súbita.

Mas afinal o que importa

assuntar com tanta astúcia

as razões de sua derrota?

Mistério que o morto deixa

não está no filho ou na viúva:

o que mais vale na morte

é se o morto levou dúvidas.

 

 

 

 

 

 

TRAGÉDIA

 

I

 

O bode

disfarçado em morte

era parte da terra

cisco

Corpo confuso

aos limites

sem saber o fim

porque tudo é

a mesma sombra

e sempre foi

o mesmo céu

uma dor grande

espalhada no espaço

O bode divino

disfarçado em morte

abarca todas as matérias

no olhar vidrado

eterno

 

 

II

 

O canto do hipócrita

em redor do sono

e o sono não morre

E o sono vigia

em vigília vazia

sem fixidez

o sono vigia

E o canto é triste

solene e triste

em torno de um deus

 

 

III

 

Tudo é princípio

e já não morre

e já não existe

mas também não morre

Mundo humilde

no serviço de honrar

os deuses

tímido holocausto

de corpo deixado

na lama

Catástrofe

de um sacrifício

consumado

a bem dos homens

Resgate de culpa

no canto

dos hipócritas

arrependidos

e as vozes sem fôlego

extintas

no colapso do tempo

 

 

 

 

 

 

SUSPENSE

 

A mão contida

dispara sobre o alvo

Corda de arco

vibrada

flecha voando cega

em busca da carne

sob a fúria do vértice

Sensação de perigo

inadiável

Olhos ariscos

em semicerro

no cálculo

da medida exata

à espreita do impacto

 

 

 

 

 

 

APOSTA

 

Os olhos

espreitavam a sorte

A moeda

tilintou no asfalto

e caiu morta

de bruços

 

 

 

 

 

 

[21]

 

Assoalho de escovas piaçavas

luzem teu corpo de ceras

por ti derrapam baratas

em batalhas de felpas de vassouras

a ti campo de chão proclamam honras

em teus limpos quebram louças

derramam águas e sedas

 

 

 

 

 

 

[39]

 

Um aço azula a noite

em arcabouço

mastros urbanos

armadas plataformas

Humano sacrifício

de mil braços

chispa de solda

rente aos rostos

operários

Siderúrgico espinhaço

de andares

ares de ferro

hectares de vergasto

Avulta-te por traves

calabouço

forja um touro de grades

 

 

 

 

 

 

PRECIPITAÇÃO DO CORPO

 

O cadáver boiando no aqueduto:

os brônquios dragam a catástrofe

 

Seu plasma na enchente seu fantasma

seus pelos hidráulicos suas fístulas

os cadarços do sapato

 

Sua gravata suas rugas

seus olhos goros sua dentadura

a barba enferma as unhas cianóticas

o esgar de sua cara escancarada:

a gargalhada bêbada de lodo

 

E o féretro de ferro das nuvens aguerridas

gravando a guerra seus daguerreótipos

 

 

 

 

 

 

XXII

 

Repousando meus olhos sobre a relva

Da rede da varanda onde me embalo

Vou passando meus dias sem abalo

A esquecer a cidade pela selva.

 

Aqui nesta montanha que me eleva

Ao próprio céu como a um vizinho falo

E de manhã vem me acordar o galo

Que canta festejando o fim da treva.

 

Perambulando na amplidão dourada

Por entre os pássaros e a fonte amiga

Vou despertando as plantas orvalhadas;

 

Vou de pijama ouvindo esta cantiga

Já tão antiga e sempre renovada

Para pedir ao mundo que prossiga.

 

 

 

 

 

 

DE COMO VIVER SEM DONO

 

Como resistir ao colosso do músculo

evitar o perfil do tiro

a bravata do tigre bengala.

Como extrair o logro da mágica

sorrir no esmero do espelho

revelar a máscara elástica

do animal rupestre?

Como não ensinar à barca

o nado da valsa na tempestade

estender a toalha do oásis

escalar os poros do muro

na obra das cabras?

Vamos tocar depressa

o tépido epitélio da tecla

alçar a manhã diáfana

na harpa de pleura azul;

porque rotundo é o número

dos pombos sonâmbulos

chocando ovos no remanso esconso

e por trás da poalha do atalho

a tocaia de ensaia.

Sou eu que em verdade vos digo:

veloz é o perigo do túnel

que conduz traição;

e nas falácias das salas dos palácios

os sócios do ócio

almoçam um negócio

e trincham a carne do povo

no talher de ouro.

Em verdade em verdade vos falo

que os flácidos sócios do ócio

hão de queimar nos cigarros

as cinzas de vossos ossos.

 

 

 

 

 

 

CIO

 

O sol durou redondo sobre o rio.

A paisagem apanhou a luz.

Na clareira da mata

o animal está nu.

 

 

 

 

 

 

DIÁRIO DO FUNCIONÁRIO

 

Raptamos a verdade

e enfiamos no bolso.

A mentira é nossa convidada

de honra, toma café conosco.

 

No jantar e no almoço

mastigamos o remorso da carne

e após a sobremesa

escovamos os dentes

as unhas e a consciência.

 

Amigo, lavaste as mãos

enxugaste o rosto na toalha

repartiste os cabelos e as culpas.

Agora limpo te olhas no espelho

e te arrependes.

Já não és o mesmo:

O espelho é o teu criado mudo

teu melhor companheiro e confidente.

Vestes o terno, beijas a esposa

e vais para a luta da rua

com teus disfarces de pedestre honesto.

Medes a mulher, a palavra

o sinal, a travessia —

rolas no abismo do beijo

imaginado e já perdido

na curva de uma esquina.

És adúltero e íntegro:

teus olhos afastam

os maus pensamentos

mas as imagens do sonho e as silhuetas

saltam do teu amor latente.

Assim transcorre

teu tráfego e dia de homem trêfego

em nostalgia —

entre risos e xícaras

de café e azia.

 

É noite e já cansado

voltas para casa.

Tens fome e fastio

tens a boca seca

de sede, tédio e desvario.

Levas debaixo do sovaco

o amor e o jornal amarfanhados;

nos lábios ainda levas

o sorriso amarelo

e algumas moedas e notas

do teu salário congelado.

És marido e pai

corno e funcionário

o fantasma bêbado

foragido da taverna.

Atravessas a noite, a calúnia

a infâmia, o bairro.

Teus olhos piscam na poça

(será namoro ou apenas o cansaço

de tanto esforço visual?)

Ó virtude mal-recompensada

de ser moço e não gostar de nada.

Contínuo servidor da máquina

teu coração não para.

 

 

 

 

 

 

PROFECIA

 

A árvore que serás

dorme em tua semente,

a árvore que não serás

crescerá morrendo.

 

 

 

[Poemas do livro De olho na morte e antes. Cotia/SP: Ateliê Editorial, 2012]

 

 

 

 

 

 

[imagem ©sketches]

 

 

 

 

Fernando Fortes nasceu em 1936, no Rio de Janeiro, tendo exercido a profissão de médico psicanalista por mais de trinta anos. Publicou extensamente pelas editoras mais conceituadas do país. Seu último livro é De olho na morte e antes (Cotia/SP: Ateliê Editorial, 2012).