LAMENTO DO EU INDIGENTE

 

 

trago uma lua de plástico barato

escondida no branco do olhar

um breviário em latim na mão direita

na esquerda uma revista de mulher nua

dividido entre a oração & o desejo — sigo

o meu caminho sem nada esperar de mim

 

não preciso de óculos para ler os escuros

sei de cor todas as madrugadas por onde andei

sou grato pelas esmolas que me deram

só careço de alguém que me empreste algum remorso

para eu pagar as minhas multas

 

se eu morresse agora levava apenas

uma calça velha uma camiseta

um par de sandálias de lona & uma úlcera gástrica

os sonhos não — deixava todos por aqui mesmo

: bagagem demais me incomoda

 

 

 

 

 

 

POEMA ECUMÊNICO

 

o pastor anuncia que o fim do mundo está perto

o padre de rito romano desmente

o bispo ortodoxo diz que até pode ser

o rabino prefere não falar nada

a mãe de santo — na dúvida — canta pra exu em nagô

o poeta acadêmico concorda um pouquinho com cada um

como não tem nada a perder quer que o fim-do-mundo se foda

manda a moral pro caralho

afrouxa a gravata

e escreve um soneto safado pra mulher do vizinho

 

 

 

 

 

 

OFÍCIO DE NATAL

 

Da Estrela Guia não tenho notícia.

Mas sei que uma menina de 13 anos

 

— prenhe de um soldado —

deu à luz um menino na Praça da Sé.

 

(A criança morreu 15 minutos antes

da Missa do Galo.)

 

 

 

 

 

 

POEMA SEM DESTINO

 

 

esta dor que dói

como o sótão vazio

de uma casa abandonada

este olhar sujo de ruínas

estas palavras doentes de significados

este meu país desconhecido

sem nome sem bandeira

sem coração

que não aparece em nenhum mapa

 

 

 

 

 

 

MATINAS

 

do quarto onde escrevo

posso escutar os sinos do convento do carmo

batendo as horas

queria tanto o colo de santa teresa de ávila

mas só posso escutar os sinos

tristes como todos os sinos

chamando viúvas também tristes

que vão à primeira missa chorar

o leito limpo e vazio onde dormem seus maridos mortos

 

 

 

 

 

 

PEQUENA AUTOBIOGRAFIA DE UMA

COISA QUE TENTOU VIRAR GENTE

 

nasci em 1956

filho único mimado

nasci no bixiga

na rua frei caneca

fui o melhor ponta-direita

do time do meu colégio

embora só soubesse chutar

com o pé esquerdo

pura ironia

 

volto para o bixiga

onde pretendo morrer

vinicius de moraes um dia

num rompante de bebedeira

viu em mim um grande poeta

o que o álcool não faz?

 

 

 

 

 

 

*

 

meu irmão

que dorme na calçada

com a cara enfiada

numa caixa de maçãs argentinas

não sonha com nada

apenas descansa um pouco

do pesadelo diário

 

 

 

 

 

 

SUGESTÃO PARA MAIS TARDE

 

nem licor de figo

nem amaretto

chá de capim santo

com cianureto

 

 

 

 

 

 

NOTURNO DA RUA MARTINIANO DE CARVALHO

 

um poste calado

em sua dura solidão

de poste

 

uma calçada ador-

mecida em seus

buracos

 

uma igreja fechada

sem ouvidos para

orações ou milagres

 

um casal em de-

lírio que se ama

no muro

 

um latido de cão

um carro que

passa

 

um homem trôpego

que sonha navios

perdidos no mar

 

uma lua no céu

sem nenhuma

importância

 

um segundo homem

andrajoso que insiste

em viver

 

(de bicicleta a morte

passa assobiando um

samba-canção)

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE AMOR

 

Para Cristiane

 

é preciso que eu morra tanto tanto

muito mais do que os descasos do amor

e sem mais porém e nem por enquanto

ame-te louco com todo o meu pavor

 

pois é preciso sem ser um domador

e que me assuste com olhos de espanto

assim inocente sem ser teu senhor

que eu me ajoelhe aos pés de qualquer santo

 

e atravesse da palavra o limite

para no teu corpo me acabar de vez

e por muito menos que eu acredite

 

destas minhas mortes ser só bom freguês

que seja úlcera ou apendicite

enfarte e até mesmo de insensatez

 

 

 

 

 

 

ELEGÍACO

 

Quintais envelhecidos

Rastros varridos pelo vento

Resíduos de janeiros nas janelas

As lembranças

 

Paredes pálidas descascam segredos

Caras guardadas em caixas de sapatos

Um fio de eternidade em cada objeto

 

 

 

 

 

 

*

 

eu tinha uma esperança

coisa simples

como um beijo na testa

um dia ela embarcou

num saveiro triste

e esqueceu no meu peito

esta mala vazia

 

 

 

 

 

 

*

 

sou o silêncio de um navio cansado

poço fundo de tantos pesadelos

se sonho sonhos bons inda sem tê-los

sou conde num castelo abandonado

 

mas assim vou vivendo no ora-veja

debaixo das cinzas de quarta-feira

e fazendo da vida brincadeira

dou-me a qualquer mulher — se me deseja

 

se penso frevo canto marcha-rancho

e rio-me de mim — sinto-me ancho

sabendo enfim que a merda desta vida

 

não me fez dom quixote fez-me sancho

e mesmo olhando o sangrar da ferida

valeu-me a vida embora tão fodida

 

 

 

 

 

 

POEMA SECO PARA O DIA DE NATAL

 

ao camarada marighella, em memória,

e também ao frei betto

 

no dia 4 de novembro de 1969

em são paulo

na alameda casa branca

o poeta

político e guerrilheiro

carlos marighella foi assassinado

numa tocaia armada

pelo delegado sérgio paranhos fleury e seus comparsas

entre outros vícios

inclusive o da cocaína

fleury tinha fascínio em assassinar pessoas

no dia 4 de novembro de 1969

— dia consagrado a são carlos borromeu —

assassinaram carlos marighella

encheram marighella de tiros

antes torturaram dois frades dominicanos

com quem marighella mantinha contato

eu tinha só treze anos mas sabia quem era carlos marighella

pela boca do meu pai

o delegado fleury frequentava a igreja do sagrado coração

no bairro do bom retiro

onde minha avó me levava

o delegado fleury comungava todos os domingos ao lado da mulher

a amante ficava pra mais tarde

não sei por que estou escrevendo isto hoje

é natal

acho que eu devia escrever coisas mais bonitas

mas devo ter bebido demais

no dia 4 de novembro de 1969

a polícia política brasileira

assassinou carlos marighella

que só queria um brasil melhor

no dia 4 de novembro de 1969

o corínthians de rivelino

jogava no pacaembu

contra o santos de pelé

o serviço de alto-falantes do estádio

anunciou a morte de marighella

como se isto fosse uma glória

 

 

 

 

 

 

ARS POETICA

 

I

 

o rato

roeu

a rima

 

 

II

 

meu desequilíbrio

me mantém

em pé

 

 

 

 

 

 

EPIGRAMA FÚNEBRE PARA UM ESCRITURÁRIO

 

viveu ser-

vil

entre o quin-

quênio

& a licença-

prêmio

 

agora

duas vezes apo-

sentado

não parte só

leva consigo

por-favor-pois-não-

muito-obrigado

mais a gravata

&

o paletó

 

 

 

 

 

 

Júlio Saraiva (São Paulo/SP). Poeta, jornalista. Publicou A mímica do vento (1990) e Liturgia dos náufragos (2002). A ser lançado, Caso o telefone toque, não estou pra primavera (35 anos de poesia). Escreve o Currupião [ http://currupiao.blogspot.com.br ].