Seca, alto agosto, e só se faz reclamar de uma coisa na cidade: falta chuva. Sopra, de vez em quando, um vento que parece tão cansado quanto as árvores incumbidas de espalhá-lo. Minucioso em cada folha, galho, flor, ele é o verdadeiro senhor do escuro, uma voz de todos e ninguém ondulando e cavando reentrâncias no vácuo.   Atravesso a calçada que acompanha um parque deserto, brinquedos enferrujados de playground assomando como desfigurações ameaçadoras, um tanque de água muito suja onde um anjinho urina pingos escassos e onde, se houver um sapo, já desistiu de coaxar. Também já desisti dos sinais de vida que só existem em meu desejo.

Esse vento é o sinal onipresente do mês: em casa, faz com que as folhas das janelas trepidem o tempo todo, os sininhos de pedra tilintem, e nas ruas tanto arrasta folhas, pedaços de jornais, garrafas pet, sacos de plástico, quanto afaga mendigos estendidos que, sem este afago, seriam muito mais solitários e infelizes. Talvez fale a eles de alguma terra natal ou de um pedaço de felicidade irrecuperável. Houve, não sabem quando, um dia de brisa, e alguma coisa poderosamente inocente, nesse dia, foi fugazmente sua. Mas está enterrada em tantas trevas que só mesmo por algum efeito involuntário reaparece, deixando-os inexplicavelmente gratos.

 

Tarde da noite, em que pensar? Penso no casal Jeffrey e Sandy que, em Veludo azul, passeiam certa noite por uma rua de Lumberton, e a música da trilha sonora de Angelo Badalamenti acentua o negror e a presença opressiva e enigmática das muitas árvores ao longo do calçamento. O vento que as agita levemente parece, sob efeito da música, o parceiro suave de um suplício iminente. Nunca a noite e seus terrores mais secretos foi tão bem evocada no cinema. A inocência de Jeffrey e Sandy está prestes a se afundar no negror mais denso.

As roupas me atrapalham. Por mais limpas que estejam, parecem precisar de lavagens sem conta. É o pó, o infatigável pó de agosto, o corpo como um grande estorvo exigente, a inexplicável melancolia dos grandes hotéis silenciosos, o medo de algumas caras abruptas, hostis, nas esquinas, e a pressa de chegar ao terminal de ônibus, deixar o centro.

 

É muito tarde. Já vivi um tempo em que o avanço da noite era uma promessa. Hoje, à medida que as horas se estendem, só se adensam as ameaças, sombras irrompem de cantos familiares, há risadas que não são exatamente de alegria, gestos que precisam ser avaliados de esguelha, e às vezes é necessário fugir sem pensar muito: o relógio clama que o ônibus poderá ser perdido.

 

Silêncio, os carros já são poucos, e talvez o meu desejo de tudo tentar decifrar por precaução, tenha feito com que eu captasse isso: uma vozinha, um fio de choro em algum canto do escuro. Um som tão indistinto que poderia ser o pio de um passarinho desalojado das grandes árvores.

Mas, não: há alguém, que só percebo vagamente, porque não quero olhar muito, sob uma marquise, espremido contra um canto de uma porta fechada, e, sob o vento que subitamente ficou mais frio, a cabeça enfiada nos braços cruzados.

Percebo melhor, mesmo sem parar: é um menino, terá seus oito ou nove anos. Ouço de novo o som, o choro débil que nem é um pedido, mas um lamento que se cumpre, automático, na sua inutilidade de lamentar.

Mais alguns passos adiante, decido que é preciso voltar. Quando volto — e talvez tomar essa decisão tenha levado tempo demais — já não há ninguém sob a marquise. O vento e a noite engoliram o vulto visto e ouvido — ou apenas imaginado? Fosse o que fosse, sou perseguido pelo som e pela imagem do apelo que nem apelo era: àquela hora, quem é que espera ser ouvido? A criaturinha só devia estar temendo as grandes assombrações soltas na cidade vazia e, com certeza, escondera-se de mim rapidamente: eu era mais uma ameaça.

 

Pressa, medo. No caminho da pressa e do medo, tudo ignoramos ou tudo interpretamos como um desarranjo ameaçador na ordem das coisas. O outro está lá, em seu breu inescrutável, e temos que nos defender dele, de qualquer modo. Mas tanta é a defesa que a vida acaba por nos escapar também. Certo, não queremos ser tocados, e perfeito: não seremos tocados, nem pelo Mal nem pela Salvação.

Ignorar é imperioso. Erguem-se muros, trancam-se janelas, são impenetráveis os jardins da omissão: as festas privadas, com sólidos vigilantes aos portões, prosseguem. No entanto, a noite não quer acabar. E o pó do deserto é invencível. E ninguém dorme, a não ser com sedativos, um sono imerecido, com sobressaltos.

 

O mundo, o que é? Uma ordem inumana de só se pode esperar algum gesto de intimidação, alguma negativa que gele. A noite é enorme, a cidade é feita de coisas e, se gente há, é melhor temê-la. Ouve-se o pedido, passa-se além. Ouve-se o gotejo, mas é um pingo de água, um único, para ser ouvido uma única vez, contra as paredes de um poço onde o que despenca, despenca sem testemunho e sem retorno possível.

 

Alcanço o meu ônibus, que já sai. Tenho um livro para ler. O passageiro que vai à minha frente abre a janelinha, deixa entrar o vento. Puxa assunto: "Tempo esquisito. O senhor acha que pode mudar? Será que vai chover?".

Não respondo, faço apenas um pequeno gesto de dúvida. Não digo que espero chuva. Que há muito tempo espero chuva, chuva desmedida.

Ele não me escutaria.

 

 

 

 dezembro, 2012