*

 

A mala está pronta no quarto.

O presente não conjuga mais as paredes.

Há sempre uso para o que de tempos em tempos bate asas.

É como ser criança outra vez.

Amassado entre as meias de dormir,

coloquei-o no trem que levaria ao porto.

 

 

 

 

 

 

*

 

Cercado do desafeto de seu corpo,

recolheu-se à mesa dum café.

Uma congregação de cabeças à sua volta.

Uma cabeça é uma religião.

Crescem como amendoeiras,

fazendo sombra umas às outras.

Nem por isso o sol se apressa.

Era o caso.

Elas seguiam em fila para a água.

Quando se fecha um livro,

as palavras sufocam.

Sem ler e escrever corretamente,

adormece o açúcar no fundo da xícara.

 

 

 

 

 

 

*

 

As primas procuram sob a cama o camarim de lençóis.

Os primos pingam moedas nos cofrinhos.

Querem ver para crer e dividem uma poltrona.

Ao fundo risinhos de uma outra vida.

Uma menina traz a pipoca. Pouco falta agora.

A dois passos dali uma fila de baratas donairosas

cruza o tapete vermelho, as asas palpitando.

Os primos despem-nas com olhos arregalados.

Sedas, plumas, tiaras e pedrarias.

As meninas apagam a luz e deixam o quarto.

Os ninhos da casa suspiram.

As mulheres do seu tempo não são mais feitas de carne.

 

 

 

 

 

 

*

 

Encontrou o pai chorando sozinho.

A ruazinha descia à esquerda,

abrindo uma picada na luz.

Sentou no banco da praça

e amarrou o sapato.

O pai sempre chorava de noite,

o que é uma forma de dizer

que não o compreendia.

A outra é escrever

coisas sem importância.

O pai lê e não entende.

 

 

 

 

 

 

*

 

Pensa na saudade

e as lembranças recuam, assustadas.

O algodão continua ali.

Doce. Desmanchando na boca.

 

 

 

 

 

 

*

 

A matéria-prima continua sendo a menina,

folha pautada que procura

no papel-manteiga do sanduíche

aquela coisa qualquer que é o seu nome

antes de mudá-la o corpo ao virar a esquina.

 

 

 

 

 

 

Um bom lugar para se trabalhar

 

todo mundo tem seu assassino no quarto dos fundos,

diz Tia Thally recheando um cream cracker 

com miolos do Petiso Orejudo da esquerda

para a direita na mecânica das cartas líricas

 

pêssegos & penumbras

nosso apartamento sofre a influência

de todos os apartamentos em volta

naqueles poucos segundos de costas

 

 

 

 

 

 

A prateleira de cima

 

Ninguém sabia melhor do que ela

que ele não devia fumar.

E pegou o revólver.

 

A calma do jeito que resolveu ter.

Com duas mudas de fronhas.

 

 

 

 

 

 

*

 

não é por ser meu filho, não

mas Aderaldo é burro

acho que emburreceu

no dia em que aceitei

ser madrinha de um elefante

— mãe minha não batiza elefante

fez uns olhinhos de

queijinhos chorosos

e desdaí só abre a boca

para traçar nacos de

minhas goiabadas Thereza Quintella

hoje pede carinho aos cães

eu não me meto porque

não se deve acender fósforos em Cabul

e porque obras de gênio demoram

mas também apodrecem

o pai dele diz que a culpa é minha

por ser vegetariana

e o vegetarianismo

como toda gente sabe

encolhe o cérebro

acho que o pai dele

também é burro

bem faz o Rubens

que não tem TV em casa

tá bom o chá, minha filha?

 

 

 

 

 

 

Double stops

 

Inácia é braçuda. Abre mensagens uma atrás da outra, o cigarro aceso estrangulado entre os dedos, sujeitos que falam. Apoiando o celular no ombro, aquele bração é um sofá extradiscursivo. Como era seu costume, Carlota pensa nos sistemas de exclusão do século 19 em sábados chuvosos. As duas estão muito actantes hoje mas não se mexem para me ajudar. Sigo direto para o meu quarto e faço as malas. Elas ficam sozinhas na sala, palatalizando. A casa é espaçosa para quem gosta e diz que não gosta. A biblioteca é cheia para quem não lê e diz que lê. Inácia e Carlota gostam de poetas parnasianos contemporâneos e me viram a cara quando chamo seus fluxos de consciência de torrentes de cabriolés. Eu não me importo, nunca espero elogios de quem me entende. Etiqueta para ignorantes é distribuir elogios. O mais difícil é sair de dentro de si sem precisar de focinheira. Eu gostaria de ver o que elas guardam no sótão para ter em que pensar no trem. Logo que cheguei me alojaram nos fundos, um aposento úmido com luz de lampião. Conversávamos no escuro e ao dormir eu sempre caía no sonho errado. Tive de trabalhar muito com minhas fantasias. Na cozinha cheirando a refeitório de colégio interno, o braço enorme me oferece um chá com Mussolini antes de eu partir. Uma indireta. Não falam em almoço ou saudades transitivas. Repasso meu itinerário encaixando algumas mentiras enquanto bebo na xícara feita por Inácia, segundo ela uma nova concepção de objeto ocidental. Carlota inveja minha errância, meu negligée, meus braços fininhos, mas ao me beijar abrindo a porta da rua, elogia a singularidade de minha "paginação". Sensação de ardência no estômago. Na cabine, percebo que esqueci no criado-mudo do quarto de hóspedes minha Plongée velha onde fiz anotações para o futuro. Também não lembro de uma palavra que disse. Revejo na máquina as centenas de fotos que tirei do Zoo de la Barben. Inácia e Carlota só aparecem juntas duas vezes na frente de uma jaula. Não dá para saber de que animal. À noite me encontrarei com Alice no Baad Bukra. Se ela não tingiu os cabelos de vermelho e estiver de bom humor, talvez saiba reconhecer a jaula. Depois de tanto tempo fora, todas se parecem umas com as outras.

 

 

 

 

 

 

Máquina da noite

 

Partiu o comprimido ao meio e que diferença faz. Como se ouvisse uma sonda de piano. Até que pareço uma mulher pelo espelho da cômoda. Faltava um pedaço mas por dentro estava exatamente igual. Se começar a convergir, precisará partir outro ao meio. Há uma coleção de metades na cartela. Não sabe se medicar sem cortar. Agora que todos saíram, podia esperar o sono. Ler um livro sonolenta para esquecê-lo mais depressa e à sensação de que restavam muito poucas palavras no mundo. Lá fora um cão escolhe um dos seus latidos para outro cão. Ela não entende o chamado. Naquela noite não havia preenchido os papéis necessários. Os convidados eram figuras da cintura para cima na grande mesa de jantar. Por fim veio o café e cada um deles tomou meia xícara encobrindo  o rosto de porcelana e já pensando nas despedidas, em como seria maçante manobrar outra vez os carros debaixo de chuva para tirá-los daquela encosta íngreme. No ano que vem poderiam pensar em outra pessoa. Inteira. A casa tem vista para as montanhas, teve a impressão de ter dito isto ao telefone. E comprado caixas de comprimidos e algumas Dom Pérignon porque ela merecia mais do que Dom Pérignon. Bastou dar corda no relógio mecânico e todos começaram a traduzir os próprios pensamentos na língua local.  Lembra daquela vez? À noite, céu e terra parecem uma coisa só. Eu sempre evito perguntar o nome de um estranho, se posso pagar alguém para fazê-lo. Na última rodada, minha querida, teu inimigo jamais usará bolas de veludo. Tem muito mosquito? O problema é que não há fiscalização dos contratos públicos. Ela pensando se as uvas engarrafadas estariam afinal livres da vida, sem precisar resistir mais à oxidação. Aqui estão. O sabor da chardonnay, o sabor da pinot noir. Fácil identificar se ficasse com a boca calada, se se imaginasse amanhã desentupindo o chuveiro para lavar seus fios de cabelo das irmãs Brontë. Há naturalmente muitos outros casos.

 

 

 

 

 

 

*

 

sinto dores no reto enquanto durmo. eu não vou me levantar pra cagar. vai que me sai um caroço de tucumã e a noite arrebente lá dentro. não gosto de namoro grudado quando só eu existo no mundo. se toco outro corpo, é como se tocasse o meu. a pele do mar. abraço as pernas duras de drummond e um verso gelado e morto percorre minha espinha. a vida passada a bronze. o poeta vive jogado na praia. os amigos o abandonaram lá com as moscas da areia. você respira no meu ouvido, esperando que meu amor saia por ali. olhos de anzol, descarrega o mundo no meio da sala e me abraça às cegas. resmunga e me pede que eu não escreva isso. que não escreva nunca mais porque me arranha o trato intestinal. despede-se num balão de quadrinhos antes de partir pra Tremembé. patina nos meus pensamentos por uma estrada que já saiu de moda. bombons velozes, trocamos de pose. nossas mãos juntinhas suando no copo de gim.

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©cartier-bresson]

 

 

 

 

Maira Parula nasceu em Porto Alegre/RS, e criou-se no Rio de Janeiro, onde se formou em Letras pela UFRJ. É tradutora e editora de texto para editoras cariocas. Tem um livro publicado pela editora Rocco, Não feche seus olhos esta noite, e um blogue de literatura e arte, o Prosa Caótica [ http://prosacaotica.blogspot.com ].