NESTA HORA

 

O espasmo e um facho de luz

Embebido nos vitrais de um templo,

Ou talvez um dilúvio,

A voragem do estupro, e então

A calma trevosa debaixo d'água —

 

Algum arrebatamento

Algum sortilégio sobre a realidade

Que deixa um corpo lívido e cheio de glória

Como reminiscência de um bosque

Rebrilhando em noite de geada.

 

 

 

 

 

 

COMO QUEM PESCA

 

Esperar ainda é pouco.

Mais é esperar como quem pesca

Absorto entre dois céus —

 

Um barco fadado às trevas,

Feito para ser levado ao fundo

E o mar, desmesurado, não leva...

 

Serena e soberana fera

Que vem lamber as mãos de um homem

Por um instante e por obséquio.

 

 

 

 

 

 

PRIMEIRO DIA

 

Não são os ossos de uma casa

Nem é a sentença de um fracasso

Que tudo se desfaça —

 

Se há uma tarde e uma manhã

Ali onde houve um massacre

 

Uma sombra movediça

Um indício de mariposa

Um olho que volta a se abrir

 

É a misericórdia.

 

 

 

 

 

 

DEZEMBRO

 

Três e meia da tarde no relógio de parede

No fundo à esquerda de uma fotografia

E do teu rastro d'água contra um céu de dezembro

Nem o mais tênue vestígio.

 

Antes alguma âncora te prendesse.

Nada te prende. O que inspira

Não te move mas te apaga e dessedenta.

Um sol de dezembro. Um sol além do medo.

 

 

 

 

 

 

NA MADRUGADA

 

Se conheceu uma passagem

Ou se de dor alucinava,

A verdade é que se viu numa jornada

E, não pesando mais sua angústia,

Era suave, qualquer coisa como um nó

 

Se desatando, ver a si próprio

Num mirante e no horizonte

Apenas neblina sobre as casas,

Branca lã sobre todas as suas vidas

Já confundidas, remotas e perdoadas.

 

 

 

 

 

 

ROTA 40

 

Iremos até a copa de árvores petrificadas

E sobre vértebras de centenas de milhões de anos.

Não será um idílio pastoril.

 

Sentiremos frio e tudo o que já suportamos

Será nada na alvura dessa terra

De turistas do abandono e da amplidão.

 

 

 

 

 

 

PANORAMA

 

Já esquecemos o quanto foi destruído

Até que se abrisse essa paisagem —

Só o que vemos são essas formas escavadas pelo vento

 

A beleza de uma terra violada até a pureza —

Esse vazio das estepes onde nada cresce

Além de uma relva amarela que é pasto das ovelhas.

 

 

 

 

 

 

UMA FLOR ENTRE AS PÁGINAS

 

E espalha os odores pela casa onde habitas, meu Deus.

Etty Hillesum

 

Olhai o jasmim como cresce

Entre o muro lamacento e o telhado,

Como continua a florir no meio dos campos gelados —

 

Nem o lírio dos Evangelhos

Nem a rosa branca de Rilke

Em todo o seu esplendor se vestiu como um deles.

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagem ©lívia vasconcelos]

 

 

 

 

Mariana Ianelli (São Paulo/SP, 1979). Poeta e mestre em Literatura e Crítica Literária (PUC-SP). Publicou os livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005), Almádena (2007), Treva alvorada (2010) e O amor e depois (2012), todos pela editora Iluminuras. Participou dos livros Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa (Ed. Casa da Palavra, 2009), Roteiro da Poesia Brasileira — anos 90 (Ed. Global, 2011), Caminhos da Mística (Ed. Paulinas, 2012), entre outros. Tem poemas publicados em Portugal, Espanha, Cuba e Argentina. Em 2008, recebeu o Prêmio Fundação Bunge (antigo Moinho Santista) na categoria Juventude. Em 2011, obteve menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas (Cuba) pelo livro Treva alvorada. Colabora como crítica literária para os jornais O Globo – Caderno Prosa&Verso (RJ) e Rascunho (PR). Site oficial: www.uol.com.br/marianaianelli.