"A música e o movimento, como expressões orgânicas do ser

humano, se  encontram tão enraizados e entrelaçados que  é

difícil situar o limite entre ambos, se é que existe."

                            (Carlos D. Fregtman)

 

 

 

Uma intersecção de estilos musicais — samba, choro, bossa-nova, baião — talentosos intérpretes e obras de alguns dos mais extraordinários compositores brasileiros só poderia resultar em um álbum esplêndido. CIRCLE OF THE DANCE1 foi gravado em Minneapolis, Minnesota, por Clea Galhano (flautista), Joan Griffith (violonista e compositora) e Lucia Newell (cantora), que integram o Trio Alma Brasileira. A produção é de Steven Wiese e, em algumas obras, há a participação da pianista Laura Caviani e do percussionista Tim O’Keefe. Nas quinze faixas do CD, são apresentadas aos ouvintes obras de Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Pixinguinha, Mário Mascarenhas, Luis Bonfá, Waldir Azevedo, Ari Barroso, além de cinco peças de Joan Griffith, todas elas escritas em ritmos brasileiros tradicionais, como baião, samba e bossa-nova, nos quais a intérprete/compositora/arranjadora americana trafega com extrema desenvoltura e naturalidade. Finda a primeira audição, imediatamente surge o ímpeto de se ouvir novamente, e mais uma vez, e mais uma, e outra, e mais outra, infinitas vezes.

O encontro musical entre a flautista brasileira Clea Galhano, virtuose radicada há anos nos Estados Unidos2 e as norte-americanas Joan Griffith e Lucia Newell, todas elas com suas carreiras plenamente consolidadas em âmbito internacional, traz este importante registro fonográfico, percorrendo as tradições da música instrumental brasileira com vibração e elegância, refinamento e vigor, entre desenhos de maior complexidade harmônica original — presentes nas faixas de bossa-nova — e sutilezas rítmicas e tímbricas muito bem exploradas no amplo diálogo entre sopro (a flauta doce de Clea), voz (Lucia) e variadas cordas (violão, bandolim e cavaquinho executados por Joan).  A vocalista Lucia Newell fornece ao trio a densidade de sua experiência jazzística conjugada ao trinômio leveza/liberdade/arrojo adequados às peças que compõem o belo repertório de Circle of the dance. Co-autora de uma das faixas (são suas as letras de Nina e Because of Love), Lucia traz em sua formação dois anos de estudos musicais realizados no Brasil. A suavidade da voz aveludada flui pela arquitetura melódica das faixas Nina, Manhã de Carnaval, Circle of the dance e Because of Love, articulando-se em fluxos contrapontísticos com flauta, cordas, piano e percussão. Somente estas quatro músicas trazem voz, sendo as outras onze faixas exclusivamente instrumentais, inclusive Papagaio Embriagado, de Mário Mascarenhas, virtuosístico choro que originalmente recebeu letra do próprio compositor, mas, no projeto estético do Trio Alma Brasileira, no lugar de voz, exibe o fraseado melódico perfeito da fascinante flauta doce de Clea Galhano. A inspirada Circle of the dance, que dá nome ao disco, composta por Joan Griffith, tem letra de Janis Hardy e nesta, como nas demais peças em que há voz, a letra é gravada em português e inglês.

O CD se abre com Joan’s Baião. Breve introdução de piano e percussãoprecede a entrada da flauta que, em notas longas, desenvolve a melodia inicial, deixando fluir, em alguns pontos, na medida certa, delicados ornamentos que se adensam, abrindo caminho para uma marcação rítmica destacada e constante, que, por sua vez, dará passagem à repetição do tema.

Segue-se a delicada canção Nina, bossa-nova em que Joan Griffith deixa entrever seu talento como compositora de diversos gêneros e estilos, tanto de música vocal quanto instrumental e, neste caso, de música tipicamente brasileira. É a confirmação da enorme versatilidade musical igualmente demonstrada na execução de seus vários instrumentos de corda (violão, bandolim, cavaquinho, baixo, os três primeiros presentes neste CD) e em sua ampla atividade didática.3 Aliás, Sertão, também de sua autoria, é outro exemplo de lirismo e sutileza a impregnar a estrutura rítmica do baião.

Em Bebê, de Hermeto Pascoal, o virtuosismo da flauta percorre as semicolcheias do fraseado melódico dançante, secundado pelo bandolim, enquanto os instrumentos harmônicos e a percussão enriquecem a profusão de ideias musicais e articulam com precisão as células sincopadas deste exuberante baião, considerado um marco na música instrumental brasileira, desde que registrado em disco, em 1973, pelo próprio compositor4 .

As faixas seguintes trazem Aquarela do Brasil5 , de Ari Barroso, e Manhã de Carnaval, de Luis Bonfá/Antônio Maria, ambas obras-primas, representativas de duas faces que tecem a alma musical brasileira, quase compondo, em conjunto, um verso/reverso, um jogo de alternâncias semânticas entre a atmosfera de júbilo de um ufanismo bem assumido, no samba de Barroso, e o lamento característico de fim de festa que se expressa lânguido na tonalidade menor, e, em especial, em toda a expressividade das notas em legatto das frases entoadas pela flauta doce, na canção de Bonfá. Manhã de Carnaval se inicia com a exposição do tema, por Joan Griffith, em solo de violão, o que acentua, evidentemente, seu tom intimista; em seguida, o tema se repete na flauta de Clea Galhano e, depois, na voz de Lucia Newell. Esta canção de Bonfá e Antônio Maria integrou a trilha sonora do filme Orfeu Negro (Black Orpheus, de 1959, co-produção Itália-Brasil-França dirigida por Marcel Camus) e se tornou uma das músicas brasileiras mais gravadas fora do país, nos mais diversos idiomas. A magia da flauta doce torna especial a interpretação do Trio Alma Brasileira e a tornará, certamente, uma gravação antológica.

Seguem-se magníficas interpretações de obras de Waldir Azevedo — o samba Vê se gostas e o choro-canção Pedacinho do céu — e o choro Carinhoso, de Pixinguinha. Destes mesmos expoentes máximos do choro, tem-se outras duas composições. De Pixinguinha, o saboroso Vou Vivendo. De Azevedo, Brasileirinho.  Em todas estas obras, as articulações contrapontísticas são valorizadas pela expressividade que Clea Galhano e Joan Griffith imprimem às suas execuções, justificando plenamente as palavras de Andrea Carter, inseridas no encarte do disco: "Spend an hour with  Circle of the Dance and you begin to differentiate these styles — the popular harmonies of samba, the complex urban rhytmics of bossa nova, the Baroque ‘ragtime’ of choro, the colorful country dance of baiao. And fast or slow, wistful or festive, the unifying thread throughout the music, throughout Circle of the Dance, is the celebration of that inner core of joy that defines the Brazilian soul."

Destacam-se, ainda, a interpretação de Papagaio Embriagado, choro em que o autor, Mário Mascarenhas, de modo onomatopaico, abre a melodia com uma espécie de interrogação: uma anacruse composta por três colcheias que, em dois intervalos seguidos de oitava, (o primeiro ascendente e o segundo descendente) fazem o anúncio da melodia que se aproxima. Como assinala José Miguel Wisnik, em O som e o sentido, "a oitava é um intervalo sem maior valor dinâmico-afetivo. Em princípio, é um espacializador neutro dos sons. As mais diversas culturas reconhecem duas notas oitavadas através do mesmo nome (embora diferentes, são o retorno do mesmo numa outra frequência). Esse intervalo oferece uma moldura para as escalas".

Em Papagaio Embriagado, tem-se a anacruse de oitavas e, logo, a flauta, vibrante, com ataques precisos e em toda sua fluência, irradia o tema em uma veloz escala descendente construída em semicolcheias. A célula rítmica introdutória formada pelas três colcheias se repetirá outras vezes, em algumas com o intervalo de oitava, noutras com a repetição da nota na mesma frequência. Toda a beleza do choro se faz presente nesta peça de andamento rápido, em em que os voos melódicos também comportam cromatismos a cargo do instrumento de sopro. O delicioso fraseado é entremeado por síncopes e, na segunda parte, ganha andamento ainda mais rápido, quando a flauta desenvolve a melodia em toda a sua virtuosidade.

Consigna Julio Medaglia, em seu livro "Música, Maestro", que, "nas duas últimas décadas do século XIX cristaliza-se a linguagem do choro, concomitantemente com a do ragtime, base do jazz americano. Ambas tiraram proveito da desenvolvida instrumentalidade das músicas de salão européias polca, schottisch, valsa, quadrilha, mazurca e outras. No Brasil, a excitação rítmica sincopada de origem afro dá mais swing ao choro se comparado ao jazz em sua fase inicial (ragtime)." Estas mesmas fontes, a mesma origem, e a época e a simultaneidade de surgimento talvez possam explicar a facilidade com que Joan Griffith e Lucia Newell, ambas praticantes de jazz, mergulharam no projeto do disco, e, embora norte-americanas, enfrentaram o desafio de música brasileira e o desempenharam com notável grau familiaridade e excelência.

Para completar sua seleção de compositores geniais, o álbum traz, de Egberto Gismonti, Água e vinho, do disco homônimo de 1972, que, originalmente, tem letra de autoria do poeta Geraldo Carneiro. O Trio Alma Brasileira optou, em sua gravação, por uma versão exclusivamente instrumental e a estrutura polifônica permitiu a exploração dos variados timbres de flauta e violão, cujo diálogo representa uma das mais perfeitas combinações da música de câmara. A interpretação sensível realça a bela estrutura melódica concebida por Gismonti.

 

 

Uma nota especial sobre Circle of the dance, a faixa que dá nome ao álbum. Música de Joan Griffith, letra de Janis Hardy (original em inglês), com tradução para o português de Lucia Newell, que, neste CD, alterna com a flauta de Clea Galhano a apresentação da melodia. Acompanhadas pelo violão de Joan, as intérpretes vocal e instrumental sublinham com suas performances o clima de circularidade que se instala em cada compasso e se expande, como uma força centrípeta para o núcleo da obra, para o centro do álbum, consolidando, assim, o peso de cada nota, a forma do silêncio que as emoldura e a viagem em que se embarca ao ouvir o chamado da melodia. E, de repente, em procedimento similar à intertextualidade — tão frequente em literatura — a flauta faz uma citação-homenagem ao mais famoso baião de Luiz Gonzaga, inserindo entre os compassos a sequência de terças descendentes de Asa branca.

Analisando o caráter de circularidade da música modal, José Miguel Wisnik reconheceu: "as melodias participam da produção de um tempo circular, recorrente, que encaminha para a experiência de um "não tempo" ou de um tempo virtual". Discorrendo, em seguida, sobre a estrutura pré-tonal e o sistema tonal, Wisnik identifica a circularidade da escala, que, segundo suas próprias palavras, "gira em torno de uma nota fundamental que funciona como via de entrada e saída das melodias, ou, em uma palavra, como tônica, ponto de referência fundante para as demais notas". Inerente a todos os sistemas e à própria essência da música, a circularidade se manifesta na dança e no movimento, pois o círculo também simboliza o tempo e a infinitude.

O círculo sempre retrocede para si mesmo. Representa a unidade, o absoluto, a perfeição. Como anota Herder Lexicon, no zen-budismo, no cristianismo, na cabala, na psicologia junguiana, o círculo sempre teve seu lugar de honra. Os círculos concêntricos do budismo simbolizam o grau mais elevado de iluminação. Interessante observar, neste ponto, que o primeiro álbum solo de Clea Galhano, justamente intitulado Magic Circle (1996) traz em seu encarte o fragmento de Rilke:  "...in this immeasurable darkness, be the Power that rounds your senses in their Magic circle, the sense of their mysterious encounter".

O projeto artístico de Clea, internacionalmente conhecida por seu trabalho com a Música Antiga, Renascentista e Barroca e também com a Música Contemporânea, parece vislumbrar nesta circularidade/simultaneidade a abertura para a plenitude imaterial do som. Fertilizando a experiência estética do ouvinte, Circle of the dance viaja por estações rítmicas diversas. Sua navegação circular e contrapontística entreabre, de modo exemplar, uma extraordinária fresta de prazer estético, em que o encontro de intérpretes de nacionalidades distintas, elegendo estilos tradicionais da cultura musical brasileira, fecunda uma idéia particular de alma em estado de som e de ritmo. Ritmo que, para concluir, com José Miguel Wisnik, "não é meramente uma sucessão linear e progressiva de tempos longos e breves, mas a oscilação de diferentes valores de tempo em torno de um centro que se afirma pela repetição regular e que se desloca pela sobreposição assimétrica dos pulsos e pela interferência de irregularidades, um centro que se manifesta e se ausenta como se estivesse fora do tempo — um tempo virtual, um tempo outro." Ou, como nos mostra o álbum, um tempo em que todas as frações convergem para um delicado círculo mágico e polifônico.

 

 

Notas

 

1 Circle of the dance – Alma Brasileira (gravado, mixado e masterizado por Creation Audio, Studio "A", Minneapolis, Minnesota, agosto de 2009. Engenheiros de som: Steven Wiese e Miles Hanson. Produtor Executivo: Steven Wiese).

2 A flautista brasileira Clea Galhano realizou seus estudos musicais inicialmente em São Paulo (Faculdade Santa Marcelina), prosseguindo-os no Royal Conservatory (Hague) e no New England Conservatory of Music in Boston, especializando-se em Música Antiga, Renascentista e Barroca, além de se dedicar à interpretação da música brasileira. Atualmente, além da carreira internacional de solista, é a Diretora Artística do St. Paul Conservatory of Music (Minnesota), além de dirigir a Recorder Orchestra of the Midwest. Entre seus discos, destacam-se Magic Circle, Blue Baroque Band, Beladona, Songs in the Ground, Distribution of Flowers.

3 Joan Griffith, multiinstrumentista (violão, baixo, bandolim, cavaquinho) e  compositora de diversificados gêneros e estilos musicais, leciona seus vários instrumentos e jazz) na University of St. Thomas e em Macaleste College. Também integra o Minnesota State Arts Board and Young Audiences. A cantora Lucia Newell desenvolve intensa carreira de solista em salas de concerto, clubes de jazz e festivais por todo o mundo, além de lecionar Improvisação e compor. Entre suas gravações, destacam-se " Steeped in Strayhorn" e "The Poetry of Jazz: Pablo"

4 Bebe faz parte do álbum "A música livre de Hermeto Pascoal", de 1973.

5 No Youtube, pode-se ouvir uma das faixas do CD Circle of the dance: Aquarela do Brasil.  Link: http://www.youtube.com/watch?v=ItWNwkvx5sY

 

 

Obras Consultadas

CASTRO, Ruy. A onda que se ergueu no mar novos mergulhos na Bossa Nova. São Paulo, Companhia das Letras, 1ª.edição, 1ª.reimpressão, 2001

 

COOK, Nicholas. Music, imagination & culture. Oxford University Press, New York, 1990

 

FREGTMAN, Carlos D. O Tao da Música. Tradução de Priscila Barrak Ermel. Apresentação de Egberto Gismonti. São Paulo, Pensamento,1987

 

LEXIKON, Herder. Dicionário de Símbolos. São Paulo,Cultrix, 1990

 

MEDAGLIA, Julio. Música, Maestro ! – do canto gregoriano ao sintetizador. São Paulo, Globo, 1ª.edição, 2008

 

WISNIK, José Miguel. O som e o sentido - uma outra história das músicas. São Paulo, Companhia das Letras, 2ª. edição,1ª.reimpressão, 2001

 

DICIONÁRIO GROVE DE MÚSICA. SADIE, Stanley. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1994

 

 

 

 

julho, 2012

 

 

 

 

 

Beatriz Amaral. Mestre em Literatura e Crítica Literária, musicista e escritora, publicou nove livros, entre os quais Planagem (1998), Alquimia dos Círculos (2003), Luas de Júpiter (2007).
 
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