I


E eu que amava o sonho dos pássaros,
dizia às vozes imprevisíveis
que dormiam no mar:

"Como posso sonhar,
se a exatidão em que navegam as aves
é maior que a própria vida?"

E as sombras do silêncio repetiam:

"É preciso cantar para invadir o segredo".

 

 

 

 

 

 

II

 

 

O silêncio invade
as rotas da indagação.

Existo?

E as flautas do mar recobram o olvido.

 

 

 

 

 

 

III

 

 

Imagino através das cítaras.
Ouço pelo esquecimento.

Levanto.

Respiro.

Sei que o mundo é imenso.

 

 

 

 

 

 

IV


Colossal angústia
da muda serpente
que passa rente
à inexistência.

O inefável labirinto absoluto
está em tudo.

A essência é o enigma,

e a morte toca as margens
com dedos surdos.

Somos o estigma do vento
na estiagem do infinito.

 

 

 

 

 

 

 

NOTURNO



Nos estreitos breves
a arte íngreme
de ser,
frente às faces do mundo.

A margens se re-
dobram nas entranhas das luas.

As barcas sonham a distância das flautas.

Fendido ao tempo feito
um canal,
nos orifícios cegos do fôlego,
basta
aquilo que arrefece.

A inocência do mar submerge as cítaras.

 

 

 

 

 

 

 

Paisagem Marítima 

 

"Não este encontro derradeiro
No reino crepuscular..."
T. S. Elliot

 

I


Os sudários do Sol eunuco

fertilizam as águas
das sombras profanadas
pela luz do imenso declínio.

O esplêndido teatro interior

nos saltos transparentes da paisagem.

O grito agônico da treva

no instante do enigma,
cortado pelo canto infinito de uma gaivota. 

No cais,

o baile emaranhado de redes e pescados
sacraliza a idade incongruente do esquecimento.
Mesmo que os Salmos da manhã
desvelem a dobra do inferno
nos cabelos das mulheres loucas.

Enquanto a areia movediça da visão

joga seus dardos
ao redor do arco das cotovias. 

No vagar arcaico das crianças na areia,

no tombo algébrico e eterno dos peixes,
o mais perverso sacrilégio,
enraizado no vento,
torna-se música
tocada pelos dedos
de infindáveis labirintos.

Um entre-

ato de ressacas
no nascimento contínuo do mundo.

Parte a caravela

rente ao sono profundo. 


 

II


O mar tem o sexo lançado

contra o ar zodíaco dos marinheiros.

As cabeças,

nas línguas das marés,
batem nas metades
remendadas pela treva,
pelo anjo infecundo do sono.

O anzol faísca a esfinge solar

no seio do vento. 

Os sepulcros do céu

pendem cegamente
sobre as ondas infindáveis,
suplicantes. 

Só a morte escala,

com mãos ensurdecidas,
a criança inaugural,
o assombro maculado.

Mergulhado nessa treva inominável,

o espetáculo sufocante
da meditação marítima.

Diante da lua, diante do vício.

Até as águas se esgotarem em segredo,
na idade inimaginável do silêncio.

 

 

 

 

 

 

*

 

Um poeta que encontrasse as palavras puramente.
Migrando através de cidades diria,
por exemplo: a casa é rosa, sua boca azul,
seu ânus (o céu) é da cor das seivas invisíveis.

 

As palavras seriam alegria nas mãos do poeta.

 

Por exemplo: casa roxo festa ilimitado lodo estrela dançou lua.
Ou seja, tudo.

 

Adentraria as cidades e elevaria tudo.
Gatos raptos vestido de moça o moreno da pele
notas de jazz astros invadindo o escuro
a cigarra trama atrás das luas oblíquas notas colidem.

 

Um poeta assim bem antigo.

 

 

 

*

 

A menina tem medo.

O mar invadirá as casas.

O céu engolirá o mundo.

A terra engolirá os homens

Mortos de fome.

 

Do Sol vem a luz

E o calor que esquentam seu corpo.

O mar bate em suas costas pequenas.

Por que o medo menina?

 

Brinca.

O calculo é irmão da angustia

E tece esse poema.

 

Brinca apenas.

Deixa a agonia para mim.

 

 

 

 

 

 

*

 

João era homem do mar. Pouco a dizer. Enfrentava marés. Pescava. Morreu com um tiro no peito, sobre os rochedos. Encontrado na ponta da praia. Pele fina, enrugada pelas águas. Nada foi dito. Ninguém lamentou. João era incógnito como o mar, quieto como o mar, impenetrável como seus segredos mais longínquos. Ninguém sabia quem era João. Ninguém sabe o que é o mar. Alguns, às vezes, se perguntam: João teria existido? Tão calado, tão discreto, quase nulo. O mar nunca responde, apenas suspende as barcas. Ninguém sabe o nome oculto das águas. Ninguém sabe nada. Nos mercados fala-se muito. A vida continua. O mar não diz nada. A barca flutua.

 

 

 

 

 

 

* 

 

a

senda

rasgada

navalha

palmas

cortadas

a

Deus

 

se

o

Sol

cega

seja

guia

entre

brumas

labirintos

mudez

 

véu

 

 

 

 

 

 

*

 

A morte é forte

porque evoca sempre

a queda.

 

Como pedra

caindo sempre

contra o chão.

 

Mas não quebra.

Negar é vão.

No pacto final

seu ato ecoa: "vida"!

 

E a morte perde-se

belamente

onde cega o estigma.

 

 

 

 

 

Poema Equivocado

 

 

Um poema corajoso, obtuso, com colhões,

como todos os outros deveriam ser.

Um uivo apenas,

sem restrição.

 

Que não diga muito, mas grite alto com poucas palavras.

Há quem fale muito sem nada dizer...

 

Banqueiros não dizem nada!

Revolucionários também não dizem nada!

As nuvens sim, talvez digam alguma coisa.

 

Que eu possa gritar!

Ah sim, eu posso.

Posso porque quero

e faço.

Me lembro de fazer.

Não desisto.

 

É isso o poema:

um grito.

 

Que afirme abertamente minha ebriedade e,

no outro extremo, minha lucidez taciturna!

Tente reverberar o silêncio sujo dessas ruas soturnas,

agitadas e festivas da urbe noturna.

Se não podes arrebatar todos os muros.

Se não podes ser meu próprio gesto um gesto sem fim,

e ser todas as coisas, sendo e não sendo

ao mesmo tempo, o tudo e o nada.

Se não podes ser ao menos tudo que não seja essa rua,

e ser, dentro dela, cada instante, cada espasmo, nos acontecimentos,

na vida desses jovens que circulam, bebem e se beijam.

Se não podes ser minha extrema liberdade, migrando por todas cidades, sendo pouco, bem pouco. O mínimo em um átimo sendo tudo, em tudo, em nada.

Se não podes ser todos, ou todos em alguém, qualquer um que passe despercebido.

Alguém que eu saúde, abrace e gire e arda,

ou quem eu nunca encontre, ou ignore.

Se não podes ser a angústia de cada poeta no mundo...

 

Seja ao menos esse uivo estranho reverberando sob essa lua turva.

 

...

 

Mas não! Fui diminuído nesses versos! Tudo é uma metade, ou uma parte mínima, de um jogo de espelhos e vaidades... Fui diminuído por mim mesmo, ou multiplicado! Não era isso que eu queria, não mesmo! Em toda essa prolixidade sei que não alcançarei todos os cantos. Poderia dizer, ou não dizer. "Dizer é jogo perigoso".  De diversas maneiras poderia. Eu, eu, eu! Contar como gosto do mar, de um mestre andando à beira-mar. De dois mestres (um velho e um novo) andando juntos, em um velho vilarejo marítimo. Vê? Já começo a mistificar, fazer algo que lembra (imita?) a poesia. Mas não sou eu que você lê agora. Eu, eu, eu. Isso é só o instante, nem imenso, nem mínimo. É agora! Você lê a si mesmo! 

 

Mas novamente, era para ser um poema corajoso, mas não... Vou capengando, eu... Eu, eu vou remendando. Queria dizer e disse muito. Muito pouco, deveras! Bastava o verso...

 

Coragem! Escrever com coragem, assim:

 

O Brasil dentro da Europa, dentro da África, dentro de um Índio. A Santíssima Igreja Católica dentro de um bar, no Viaduto do Chá. Um homem comum, de blusa amarrotada bebe uma cachaça, faz sinal da cruz e sai... Em casa sua mulher reza o terço, isso é a Igreja dentro do poema, em algum lugar dessas linhas ela passa ocultamente, pois está em todas as partes. Esse é o mistério dos poemas. Mas não exatamente isso que você está pensando...

 

T. S. Elliot já fez isso (em métrica grega).

 

"Na verdade só uma coisa importa". Era só isso que bastava dizer! Isso é minha Igreja. Não, minha não.  Nem esse poema (isso era uma poema?) é meu, nem sou eu quem você lê...

 

Ou jogar com as palavras, ou jogá-las simplesmente: fóssil coragem gritar trem pulo muro ir não isso estrada flor dor computador.

 

Você leitor, você lê a si mesmo, é todas essas coisas, digo: carro, passo, lista de compras, telepatia, os confins do universo, você alma arremessada, arrebatada, você tudo, você no todo, em partes, come o pão, suco de laranja, confere as tarifas, leva à escola, olha por vezes o céu, você novo, você antigo, você metrô, criança, velho, babá, travesti, você metade, você mundo inteiro, você pedaço de ideia, nota, bolor, dúvida, dádiva, mistério, São Paulo, Santos, Porto Alegre, Singapura, diarreia, você no trem, trem, trem, trampolim, enfim, todas as coisas e palavras que eu poderia escrever aqui, ou esquecer de escrever.  Vê, você lê a si mesmo. Você lê o tempo e um indício do infinito, o instante. Isso é tudo!

 

Tudo, mas também você poderia ser nada. Tendendo ao extremo vão essas linhas, ou essas linhas um vão entre o tudo e o nada. Digo, tudo que me lembrasse de escrever não bastava. Deixe o poema como um pêndulo! Dó ré mi, cansei de ti, cansei de mim, de descrer-nos, de descrever-nos, de escrever sobre escrever...  e você lê a si mesmo! 

 

Mas eu, eu (o que me importa é essa única coisa), eu sou... Sim, mas não, não sou, eu... 

 

Sou um lunático.

 

Por vezes me canso, alquebrado,

e volto à melodia, à beleza, ao ideal...

 

E você se lê nesse silêncio. 

 

 

 

 

 

 

*

 

Era homem bruto, o mar e ele, o homem. Muito se calou através das águas. Era de se expandir, certa vez ele, maré, chegava.

O mar é naufragar, ele também, homem das barcas. Calado, muito, navegava.

Seus peixes, ele era estando assim, longe. Calmaria é hora de prosa.

Amou muito uma dona, seus peixes batendo, lutando, rede ele era. Pescador, o mar imenso não cabe no homem não, expande.

Vê, escuta, silêncio, era pausa. Mar de prosador, de dentro...

Ela endoideceu, seus cabelos voavam, relâmpagos, e ele sabia de instinto. Mar é saber.

Os peixes todos na areia, a rede, os braços assim, ondas, vento. Vê, a calmaria espreita o homem. Ele calado, ela docemente, brisa marinha, sereia. O vento, as águas, o baile, os peixes, as espumas, os braços. Mas o mar chama às margens. O mundo é grande demais. Partir, pois, em si. O mar não cabe no homem, continua.

Uma calmaria incestuosa, e era de muito medo. Ele naufrágio, ela historia, a louca. Mundo é ciclo, travessia, cidades, lendas.  Ele lá fora é vento, marinheiro é sem fim.

A cidade se esquece, o mar é sempre. Ela, tempestade, crepúsculo.  

O mar é o que é, nele cabe toda a vida. 

 

 

 

 

 

Interiormente era uma flecha que morria

 

 

Interiormente era uma flecha que morria.

Uma flecha que nascera agora, maravilhosa dentro da carne.

Uma flecha que sabia cantar luas enlouquecidas,

da a boca ao sexo pendendo

tanto.

 

Tanto interiormente essa flecha que um trajeto alucinante,

muito antigo, subia até o cú porque sondava até o nascimento

e almejava as margens fugitivas.

 

Uma flecha tão lúcida nos bosques do corpo

que supunha o ser ter uma massa alagada com campos inexistentes,

onde uma mulher se deita sobre todas idades do mundo.

 

Uma flecha violeta dormindo

pelos anos e anos dentro da música,

dentro do poeta sangrando.

Sangrando flores pelos ouvidos

aos pés, enlouquecendo terrivelmente.

A flecha amando em sua boca.

(A lucidez da flecha invadindo os poros da musa).

 

Tanto inexistia como era uma mulher. A flecha

ressurreta nas cores do ser eu via.

Uma vez vi a flecha mudamente migrando

no violeta das margens fugitivas, dentro do ser.

Flecha raríssima como pedra louca, que cobre e desvela-se.

 

Tão interiormente nascera, sondava e morria.

Girassol sombrio contra o ser-não ser. Sou,

mas não a flecha dentro de mim.

 

 

 

 

 

 

Canção arcaica

 

 

Os reinos do leste e do sul estão em guerra.

Disto resultarão muitas mortes.

A terra ficara devastada.

 

Os curandeiros se recolhem.

Os guerreiros entoam hinos ao império,

Que os fazem valentes.

 

Estou exilado na montanha do norte.

Escrevo versos sobre a saudade,

Pois sou um poeta.

 

Quando acabar a guerra,

Terei de refazer os hinos,

O mundo estará mais velho.

 

 

 

 

 

 

Relato



Deste tempo em que estamos
(de onde escrevo este relato),
uns dizem o fim de uma era,
outros, o início de um fraternal estágio.
Eu bebo meu chá.

Sou do tamanho da minha janela
e nela cabe até o mar.

Quando os cargueiros somem no horizonte
deixam de existir aos meus olhos carpinteiros.
Talho o mundo a minha medida.
Usei amores, naufrágios, despedidas,
e já não eram sentimentos,
eram versos.

Leitores do futuro
desculpem a falta de decoro,
falo de um tempo meio cego,
meio caolho.
Sei que Camões via só com um olho.
Pessoa via com oito.
E eu, com três, vejo por um vidro embaçado,
um tanto roto.

De minha janela vejo comícios,
revoluções. Lá embaixo gritam muito,
todos sabem de tudo.
Falam em recriar a escrita,
reverter o status.
Mas além do mar,
do mar sem fim,
vejo deuses e mitos antigos,
seus nomes ainda intactos.

Então meus olhos navegam,
conquistam novas terras,
alçam guerras,
cantam presságios.

E finalmente se apequenam,
como gota de sal
do imenso mar de Portugal,
em uma síntese impossível.

Ó mundo antigo, nós te recriaremos!

 

 

[ imagens ©felipe stefani ]

 

 

 

dezembro, 2012
 
 
 
Felipe Stefani (São Paulo, 1975). Poeta, artista plástico e fotógrafo. Tem seus desenhos publicados no site Só Desenho. Ilustrador, já ilustrou muitos livros de outros escritores, e também os de poesia que publicou: O corpo possível, pelo coletivo Dulcinéia Catadora (2008) e Verso para outro sentido (Escrituras, 2010). Prefere que sua arte fale por si mesma. Edita o blogue Cultuar. É o ilustrador de Sabiás & Exílios.
 
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