quando todos partirem

1.
quando todos partirem
eu vou ficar sem muros
e o silêncio dos cachorros
vai desabar sobre mim

penso nas ladainhas a rezar
nos bancos que serão meus assentos
e na ausência das aves

as pedras do meu olho
vão cair nos rios
e a minha mão
vai moer as cordas do tempo

pela noite
minhas facas saberão das noites a cortar
dos bichos a saber
e do meu corpo desfraldado

as carnes não deixarão rastros
e o ferro das ruínas
não caberá no poema.

2.
quando o mundo acabar
vou mutilar meus braços
meu hálito, meu desacerto.

quando o mundo acabar
vou desatar a glória
dos deuses correntes:
todos os diabos vão ficar nos cantos
das vias destratadas

os sóis serão banidos
e o começo de tudo estará pronto
(cozido, costurado, morto)

no adro do tempo
nem o meu coração tremido
vai bater.

 

 

 

 

 

 

vila, 1

 

esta vila é uma verdade

plena de matos e pedras

rica de ouros e águas

espraiados pelos corpos

que ontem se viram escravos

nos atos mais comezinhos

 

onde cada ponte leva

onde cada água afunda

a memória dos algozes

do ouro por sucumbir

em lanhos, facas, machados

nos próprios ossos das gentes?

 

quanta carne se abriu

nos cantos desta cidade

que a fizeram roer ossos

e quebrar-se pelas pedras

entremeadas, devotas

com verdes caldos de lama?

 

o seu corpo é do diabo

a sua alma é fundida!

 

 

 

 

 

 

montar a musa, 5

 

montar a musa é mais do que fatal

que além de tudo a engrenagem entoa

(que importa a mim se a bicharia roa?)

e eu enfio os pés no lodaçal.

 

 

juntadas as regiões nobres e as paletas

lavradas em oficinas, todas elas retas

montá-la é desmontá-la pelo avesso:

 

onde faltar questão, eu ponho gesso.

 

 

 

 

 

quanto de mim vale um anjo

 

quanto de mim vale um anjo

se cada vazio oculto

se traduz por um diabo

na alma cheia de dentes

 

meus cavalos e pedreiras

minhas glândulas atávicas

os umbrais da minha sede

prontamente se revelam

 

uns bois de olhos sagrados

me contemplam com seu dorso

de pura dureza vista

nos antanhos já bebidos

 

são anjos, demônios, roncos

de uma pele atrevida

já pisada de histórias

e pratas não semeadas

 

quantos deuses me engolem

quantas almas me sufragam

se a avó em ato louco

pôs suas asas sobre mim?

 

 

 

 

 

 

os mestres, os vandálicos, os loucos

 

1.

os mestres, os vandálicos, os loucos

não são os todos, e nem são muito poucos.

seus edredons são peles de camelos

suas carnes se respaldam em novelos

seus ovos são férteis nutrientes

a desmanchar e recozer os dentes.

quantas manhãs os vi a trovejar

os seus bafejos chegados d'além mar.

 

2.

seus atos dominados por bobinas

se atropelam em todas as esquinas.

 

 

 

 

 

 

travessia, 1

 

se ela quiser eu vou

faço logo a travessia.

manuelzão já me chamou.

 

inda que seja na cheia

atravesso o vau de rio

com um cavalo na veia.

 

o sertão é gado limpo

música semi colcheia.

 

com que roupa eu chego lá?

que pente que me penteia?

 

 

 

 

 

 

aço, 1

 

eu construí a musa de improviso

com uma carne feita de maçã

e uma terra certa: o paraíso.

 

mas eu padeço de febre terçã

e o seu olhar de aço foi o aviso:

a minha musa é toda em rolimã.

 

 

 

 

 

 

o braço de manuelzão, 1

 

minas é um rio comprido

como um cachorro latido

no braço de manuelzão

 

eu olho minas de perto

como tecido coberto

pelo balaço do mar

 

manuelzão e mar são coisas

de fazer minas chorar.

 

 

 

 

 

 

o corte da terra

 

a vida, solidão, toda impotência

caminha numa pele de novelo

onde ela rasga a carne em desmantelo

a demonstrar ao mundo abstinência.

 

pudera ser mais torpe e mais estrada

nos meus cavalos, encantos, aguaceiros.

 

a vida se acabou em quase nada.

 

 

 

 

 

 

desmontar a musa, 1

 

1.

eu pego da amada os parafusos

e reconheço cada, nos seus usos.

jumelos, lambrequins e outras gentes

monto e desmonto os olhos e os dentes.

 

daí carrego a musa em meus arreios

pra assegurar os tanques e os freios.

 

a vida já virou uma caçada

quem sabe dos chassis da minha amada?

 

2.

vou remontá-la toda, em madrugada

numa poesia de dança e gargalhada.

 

 

 

 

 

 

as coisas de Caravaggio, 3

 

há coisas como o dia, como a noite

como as maçãs dormidas no seu prato.

há coisas pelos anjos, que intranquilos

revelam um macabro sobre tudo.

há coisas que são poucas e devassas

há coisas muitas, pedras, feitas breves

numa sangria de cuidado e morte.

que coisas arrebatam e nos queimam

de pura dor e sofridão intensa?

as coisas reveladas são mais duras

que a irrevelada ação que as sustenta?

 

há coisas tão medonhas enterradas

e outras só encanto nos seus vôos

que ávido de tudo me carrego

neste mar de sangrias infundadas.

umas coisas me dizem que sou bruto

tantas outras me regem que sou sábio

e dilaceram meu ânimo de bicho

ou corrompem um ombro puro osso.

 

todo corpo regado de martelos

que são coisas de ferro desterrado

só me traz um mormaço de peleja

pelas velas que pisam sobre mim.

 

quanta coisa me faz ser anjo podre

ou demônio marcado de ciências?

 

neste prato de coisas caravaggio

a vida é um pecado sem final.

 

 

 

 

 

 

soneto torto para Maradona

 

a sede que invade meu espanto

meu fel e meu extrato de agonia

se encontra toda no tropel do manto

que me socorre em plena luz do dia

 

soubesse dessas luzes no encanto

dos ancestrais da minha agonia

o meu estado de noite em que levanto

seria só o espanto pelo dia

 

sou mais devasso ao me perder portanto

nessas estradas de cavalaria

que outro homem feito de quebranto?

 

que homem se repete só no espanto?

só Maradona em estado de poesia

veria meu suor por todo canto.

 

e eu me arregaço pela luz do dia.

 

 

 

 
 
setembro, 2012
 
 
 

 

 

Romério Rômulo (Felixlândia/MG). É professor de Economia Política da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Poeta e editor, prefaciou e publicou com Sebastião Nunes a primeira edição assinada dos poemas eróticos de Bernardo Guimarães, O Elixir do Pajé (Dubolso, 1988), mais de 100 anos depois da edição original. Até então todas eram clandestinas. Publicou os livros de poesia Bené Para Flauta & Murilo (1990), a caixa Tempo Quando (4 livros em 2 volumes, 1996), Matéria Bruta (2006) e Per Augusto & Machina (1999), entre outros. É um dos fundadores do Instituto Cultural Carlos Scliar, com sede no Rio de Janeiro. Outros poemas podem ser lidos em seu blogue [ http://romerioromulo.wordpress.com ].

 

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