desvio para o vermelho, 1

 

Alice não tem mais tempo Senta no chão

e chora Suas lentes estão gastas desde que o Outono

desfez-se como um pesar sobre a natureza Ela

não tem mais tempo e mesmo assim gostaria

de ouvir o rugido que vem das estrelas ou

do espaço entre elas ou não se sabe de que

nenhures vem este rumor que se confunde com a cidade

trincando suas engrenagens enquanto

as galáxias se afastam com ela no centro

sem endereço fixo vendo as estrelas indo embora

como efeitos locais de tanta espera e inventando

teorias pinçadas do se que observa nos escombros

de ser quem é Alice não tem mais tempo Ela

permanece olhando o passado em estilhaços

que são espelhos que fogem com as galáxias

pra dentro de si mesmos apagando pistas Ela

senta no chão e chora cada descoberta como

o acidente de estar no centro e só enquanto

as luzes se afastam antes que se pudesse definir

de onde vem a sua urgência Ela não tem mais tempo

e os pombos não podem mais voar Não podem mais

levar nenhuma carta

 

 

 

 

 

 

desvio para o vermelho, 2

 

Alice voltou do sonho mais completamente

só do que antes Ela voltou atravessando o vazio

entre  dois desertos e sem achar ninguém que lhe dissesse

bem-vinda  O mundo estava resumido a poucas palavras

e o sonho não era mais um lugar pra onde

se voltasse Ninguém para comunicar as decifrações

elaboradas a punho, perdendo sangue, nem o amor

de sua vida, deitado ao seu lado, num universo

paralelo Ainda lhe dói o estrago da grande explosão

mesmo que o seu ruído agora se confunda ao mínimo

arrulhar dos pombos e seu brilho não passe de um desvio

no espectro, imperceptível sem equipamentos pesados,

como cabe a qualquer passado Neste dia Alice cruzou as pontes

incineradas do sonho e passou a contar os anos aos pares até

montar peça por peça o espólio do incêndio, o seu museu

portátil, sua história natural

 

 

 

 

 

 

cinco ou seis maneiras de se perder na cidade

 

você tem cinco ou seis maneiras de se perder

na cidade Numa delas

o Livro dos Espíritos é um oráculo

tatuado em braile na pele

de meninas mestiças que dançam

nuas sobre lençóis grená

um cântico sufi enquanto

o sentido arde em suas vísceras e seus pés

escrevem um livro chamado

motel nosso lar Em outra

o labirinto de memórias detona

a dessublimação feroz

que você rasura no Breviário

das Horas, estação

por estação, como se isso

criasse qualquer âncora

entre você e o mundo E ainda uma

que repete ao infinito a metamorfose

em que diante do abismo você

é um poema escrito numa língua

estranha cujo último verso

esconde uma

chave As outras não

interessam

 

 

 

 

 

 

wireless

 

o medo de se perder, mundo

punk, desenhando à faca na água suas dúvidas, você

conversa consigo pelo espelho oxidado em terceira

pessoa, rasurando à unha o nitrato, comendo grama

por grama o retrato que lhe vem na prata

quando rói os dedos entre os campos

minados, o medo

de se perder, converse comigo, nada

mais pode ser dito depois

que o chão desaparece, mundo

junkie, jungle, os hipopótamos são os únicos

que atravessam a rua sem esmagar

as flores no asfalto, linces e gazelas

não, você está

solto no espaço, nenhum céu

desaba, permanece

imóvel na aparência do instante

em que você escorre a esmo pelas trilhas

e deleta arquivos antigos, converse

comigo, menos laços, odiar

as lembranças, o medo

de se perder, mas é justo

pra onde você

vai

 

 

 

 

 

 

tutorial

 

não é um espelho o mundo, nem

moído, serol

colado na meada

dos dias que se desenrolam com a goma

do espanto, isso

que arranha sua pele, arranca a pátina

dos gestos, fatia

o real em lâminas, películas

projetadas sobre um fundo áspero, árido,

turvo, e você

descreve lentamente ao longo de uma órbita

marginal palavras que não limpam

a barra do mundo, ele não é

um espelho, nem

moído, sua farofa

seca servida na ração

diária, não é mesmo qualquer coisa em que você

se reconheça, meu chapa, por isso

escreva num livro

o inventário de técnicas

para quebrar os espelhos, agredir

os espelhos violentamente, mesmo cortando

os punhos, os pulsos, erradicar

os artefatos

da ilusão.

 

 

 

 

 

 

retorno ao inferno interminável

 

você desce ao inferno

de escada rolante e ele está cheio

de meninas louras falando línguas

estranhas, elas

têm bocas que você gostaria

de desejar com qualquer tipo

de sinceridade,

com a pureza que o desejo

esqueceu ao lado do cinzeiro

no motel de quinta da rodovia

quando saiu batido, você erra

pelos corredores do inferno e descobre

mais escadas, mais corredores e não sabe

se são vitrines ou quartos escuros

estas cavernas em que as meninas

exibem sua penugem de água

oxigenada e seus sorrisos

de propaganda enquanto você

se sente a sombra deambulando

na galeria de luzes

feéricas, artificiais e o real segue cifrado

em bits no sistema servidor

central, ligado

por cabos ao caixa, você

não tem nenhum trabalho pra descer

ao inferno, ele se abriu

como um útero quente, como um buraco

molhado e pulsando por onde

seu corpo escorrega, você

está fodido, e ela não tinha

um girassol nas mãos, o girassol

estava escrito no ventre com pétalas

excessivamente amarelas enquanto no ombro

uma petúnia ameaçava

com um perfume doentio o resto

da sua vida e o mundo

girava perdido como um grafitti no meio

daquelas omoplatas.

 


 

 

daqui

 

a âncora é o corpo, o fundo

não se sabe Morto pela água

das décadas o Homem

-Aranha considera riscar

na areia fina com a ponta

em riste da última fratura

exposta o seu poema

mais abissal: vês? Ninguém

 

 

 

 

 

 

concerto

 

ela me sorri  como se nada, longos

cabelos, crina onde se encrespa

o meu desejo no delírio de morfina

das imagens da natureza, ela parece

não sentir a vertigem de tudo,

ao fundo a gravura de um adolescente

com asas, partem de seu sexo raios

em todas as direções, não dos olhos

ou do peito, e ainda espreito, mudo,

alguém  que tenha a alma sutil

no cubículo do mundo, na volúpia

dos ardis ela desabilita o sentido

que, desfeito, espera no meio do salto

mortal ser salvo no último segundo

enquanto ela me sorri como se nada

 

[em itálico, samplers do poema "Pierrete", de Manuel Bandeira]

 

 

 

 

 

 

bug

 

lá fora amores à última vista atravessam

a cidade e fica difícil se concentrar na conversa

porque 2 ou 3 os idiotas (você ainda está

na dúvida se incluir a si mesmo seria mais

realista) na sua mesa exibem sorrisos

frenéticos, trapos

com etiquetas Richard's, olhares calculados, fé

nos seus salários do banco federal

de desenvolvimento e na migração

de capitais para mercados mais atraentes

 

eles insistem nos seus sorrisos de filme

B quando dizem que encontrar a mulher

ideal é difícil mas sua procura é uma delícia,

eles parecem acreditar que isto é

a felicidade, a sua cota de transcendência

nos mercados da vida — aqui é um bar

irlandês numa ladeira da Lapa e o mundo

inteiro exala toneladas de imagens

falsas sobre você neste exato momento

 

em que a trilha sonora liquidifica sangue,

glitter, as doze mais e um blues antigo

e tão rascante que se desloca para o fundo

mais escuro do corpo e quem, como

você, olha para a rua, quem como

você não acredita, quem

se pergunta sobre este chão pisado

por Madame Satã, este alguém

desconfia que os amparos do sentido

andam rodando como um carrossel

em marcha à ré com engrenagens gastas

 

os inocentes de Manhatan não sabem

de Madame Satã, vão precisar consultar

o índex da academia em que uma sombra

dele pode morar e outras sombras se movem

no estilo touch screen, mas a caverna

ninguém sabe se existe – aqueles dois

que sorriem existem e estão

a fim de levar pra cama o seu amor

à última vista, ela pode ser a mulher

da suas vidas, ela pode ser uma noite

extensa, uma noite longa e profunda

que vai atormentar seus dias, ela poderá

ser um slide fantasmático na ruína

de seus futuros ocos e amparados pelo banco

de desenvolvimento, poderá ser o delírio

da carne, ter pernas mágicas, boca

de prodígios, pele ardente, poderá ser

o esquecimento, ser a chave, o labirinto,

ela está ao seu lado e aparenta não

saber, aparenta não sentir como pulsa

o coração do sentido, como pulsa

o desejo por cima das pedras

do pavimento, como seu corpo quer

se atirar sobre ela buscando o que está

além, amparado só pelos sentidos,

amparado e só

 

nem eles, nem ela, nem você

sabem onde vão levar todos os desvios

desta noite atravessando o mundo agora, só

e torto.

 

 

 

 

 

 

jogos de armar /trajeto

 

Entrar (, violento, abrupto como cápsula de metal, nave que incandesce enquanto cai no ar denso, metáfora brilhando rubra na escuridão do céu, diáspora em que não se sai, antes se mergulha no nada até rebentar no chão qual semente e, assim, germinar) no real, cair (, precipitar-se numa fuga pelo abismo, voluntário mau passo no vazio, deixando o chão que o arranha-céu alçou, artificial e estranhamente, ao antes impossível espaço dos pássaros, verter-se até o fim como quem não vai se encontrar) em si.

 

 

 

 

 

 

jogos de armar /no espelho

 

Se você tem algo, de fato, a escrever sobre o tempo, perceba que ainda uma outra vez ele passou de vez sem que você soubesse que a chance de dizer as poucas coisas que lhe foram caras, na esperança vaga de que tais palavras sustentadas pelo poema possam, na sua dança, tatuar em outro corpo a mesma marca, está perdida: o mundo segue algum desvio, desesperos portáteis, vãos, gomorras sem o olhar de um deus, distopia e corrosão do século vinte e um, dessublimações, falsa anunciação que lhe afunda em soul, sexo e melancolia.

 

 

 

 

 

 

jogos de armar /por dentro, por fora

 

Vivendo como um pária, neste exílio de uma pátria que não existe, a não ser na mais absurda alucinação, nenhum dia me abre o seu sentido. Mas isso é por dentro: além do corpo, mundo afora, as coisas seguem normais em seu destino, superficiais até o limite e assim é o mundo todo. Só que isto é por fora: sob estas coisas, sob a pele das coisas arde um tal incêndio, uma inconstância, um vago mal estar sem ponto fixo, entre as doidas vertigens da espiral que é pensar, via inútil entre as muitas que há.

 

 

 

[imagens ©jon sullivan]

 

 

 

 

Nuno Rau é poeta, letrista e carioca. Bloga em As Musas Pós-Modernas.