Georges Bataille, em A literatura e o mal, afirma que Entre todas as mulheres, Emily Brontë parece ter sofrido uma maldição privilegiada. Pois embora ela tenha vivido uma infelicidade moderada numa existência que durou apenas trinta anos, teve do abismo do Mal uma experiência profunda. Bataille se refere em especial ao tratamento por ela dispensado ao seu único romance O morro dos ventos uivantes, cujo tema é a revolta do maldito que o destino expulsa de seu reino e que nada contém seu desejo ardente de reencontrar o reino perdido.

Não há como pensar em tal maldição, a despeito da controvérsia que o termo "privilegiada" possa suscitar, sem que eu me lembre daquela primordial infligida às mulheres, a saber, Multiplicarei sobremodo os sofrimentos da tua gravidez; em meio de dores darás à luz filhos; o teu ventre será para o teu marido, e ele te governará. Tal imprecação divina se deu exatamente após a mulher, dando ouvidos à satânica serpente, ter experimentado o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, e tê-la oferecido também ao homem, donde, portanto, a queda.

Em ambas as situações, em O morro dos ventos uivantes e no Gênesis, vemos, por razões diversas, maldições imprecadas e expulsões de reinos e paraísos executadas de maneira implacável.

Bem, mas por que reunir Brontë e Eva, mulheres de pureza moral intacta, mas que tiveram uma experiência abissal do mal, numa discussão sobre as mulheres, a literatura e o mal nos dias de hoje, quando o reino da inocência e o paraíso da delicadeza já há muito foram extintos? Porque eu gostaria de colocar em relevo duas escritoras contemporâneas que me chamaram a atenção pela forma como manifestam a presença do mal em seus contos curtos e adensados, cujas personagens femininas são sempre ambientadas em situações desoladoras, angustiadas, trágicas, e em cenários em quem a esperança é sempre uma figura natimorta. Refiro-me à Mariza Lourenço1 e à Silvana Guimarães2.

 

I

 

Mariza traz em seus breves contos a marca sobretudo da ironia, mas no que a ironia tem, absolutamente, de sarcasmo, de zombaria, apesar da dor infinda pela qual as "suas mulheres" estão passando. Vejamos por exemplo, o caso de "Ledosmira".

 

 

Ledosmira

— Ledosmira, minha filha, você não se parece nada comigo. Desligue esse telefone e vá preparar a janta de seu marido.


— Mas, mãe, ele anda me ameaçando...


— Porque você é bocuda, Ledosmira. Se fosse seu pai, já viu!


— Mãe, é sério, tô com medo.


— Não deixe seu marido mais nervoso. Outro você não acha. Desligue esse telefone.


Ledosmira nunca mais ligou.

 

 

Ledosmira, dona de um nome incomum, cuja própria pronúncia já incentiva o leitor a um matreiro riso, torna de imediato o ímpar em corriqueiro, dada a identificação a situações comuns por que passam diversas Ledosmiras inominadas, provindas de uma longa tradição de opressão e violência. Segundo sua mãe, Ledosmira precisa deixar de reclamar da sorte que tem, reprisando a máxima de Caymmi, em relação à "Marina": "Eu já desculpei tanta coisa, você não arranjava outro igual". Bem, mas a mãe aprendeu cedo tal lição que Ledosmira talvez precisasse de mais tempo para dominar. Mas o tempo esgotou-se cedo demais para a tenaz e impaciente pedagogia de seu marido.

No conto "Neuza Sueli", a protagonista não tem um nome incomum como "Ledosmira", mas seu arranjo conduz para o mesmo objetivo: a passagem cômica do ímpar ao corriqueiro. Senão vejamos.

 

 

Neuza Sueli


Bem que eu gosto desta vida, antes eu nem gostava, sentia muita falta dos meninos, da minha mãe, até do meu pai com aquele jeito sempre doente. Mas fui tomando gosto por estas bandas e o meu povo foi todo morrendo.


Meu pai foi o último. Ele e aquele jeito doente dele.


Acho que passei mais da metade da vida grudada nesta janela. Quanta menina saiu daqui com promessa de casamento. Eu também casei um dia. Tem tanto tempo, nem lembro direito. Ele foi embora, vestido de branco. Camisa bem passada. Eu gostava de cuidar das coisas dele, mas ele foi embora e eu tomei gosto por esta janela. No começo era só espera, depois acabei esquecendo os motivos. E fui ficando. Não ligo pra dinheiro, as meninas ligam, eu não. Gosto mesmo é de olhar a vida dos outros. Tem dia que eu nem trabalho. Às vezes vem uma moça. Ela me dá presente e diz que queria aprender certas coisas. Eu ralho com ela: moça, tá pensando que é bonita esta vida? Volta pra sua casa, reza um credo. Isso é falta de oração. Ela vai embora, mas volta, envergonhada, dizendo que sente umas coisas esquisitas dentro dela. Tenho pena. Tão bonita e querendo aprender a ser feliz comigo.


Logo comigo: a piada mais antiga do puteiro.

 

 

O corriqueiro neste conto é anunciado, principalmente, no epílogo, quando a narradora-personagem afirma que se tornou a piada mais antiga do puteiro, por razões que podemos apenas supor. Talvez porque tenha desistido de casar-se outra vez, talvez por não dar importância ao dinheiro, talvez porque goste de ficar grudada na janela, não para esperar, como é caso da "Carolina", de Buarque, mas para falar da vida alheia. Mas, a meu ver, a razão principal de Neuza Sueli ter se tornado digna de riso entre suas colegas de profissão é o fato de ela ter optado por ser puta, não por uma obrigação que a vida lhe impôs, mas "por gosto". Sim, obviamente, primeiro ela veio para esta vida e diz que não gostava, mas tal desgostar ainda era fruto da saudade que ela sentia: dos meninos, da minha mãe, até do meu pai com aquele jeito sempre doente. Mas, conforme eles foram morrendo, seu sentimento foi se desincumbindo de sentir dores por conta de ausências e de culpas. Tornou-se livre. O que me ajuda a compreender a coisa desse modo? A moça que presenteia Neuza Sueli com o intuito de aprender "certas coisas". Neuza Sueli vê na moça a ausência de um sentido exato para a escolha de tal vida, ela simplesmente quer, pois sente umas coisas esquisitas dentro dela, como Neuza Sueli um dia, quem sabe, também deve ter sentido. É quando a protagonista, pela ausência de uma explicação razoável para fazer a moça desistir de seu intento, apela para o transcendente, recomendando que ela reze, que ore para que Deus a livre de tal beleza, de tal felicidade.

A reunião da ingenuidade da infância, do erotismo e da experiêcia mística, é o que vislumbro em "Notícia de ausência".

 

 

Notícia de ausência


— Dá-me a tua mão, pequenina. Vem escutar a palavra de Deus.


J.M., 09 anos incompletos, está desaparecida há 09 meses e 06 dias.
Na padaria em que trabalha, sua mãe chora enquanto confeita um bolo: J.M. faz aniversário semana que vem.

 

 

Nas palavras de Bataille, se por acaso as crianças têm o poder de esquecer por um momento o mundo dos adultos, a este mundo, entretanto, elas estão prometidas. A sedução de J.M. se realiza mediante a enunciação erudita do adulto, embebida de discurso religioso. A associação entre a lógica da palavra racional, consumada e legitimada pela palavra divina, não deixa dúvida, J.M. deve dar a mãozinha sim ao digno e confiável senhor que a chama de "pequenina". Inegável a remissão que ele faz à passagem em que Cristo, por razão diametralmente oposta a dele, diz: Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis, porque dos tais é o reino de Deus. Naturalmente que o digno e confiável e religioso senhor não se conformará apenas com a mãozinha ofertada por J.M., ele também possuirá o seu corpinho e, após, isso libertará a alminha que nelezinho está aprisionada. A mãe de J.M., como qualquer boa mãe, nove meses depois do desaparecimento de sua filha, vê nessa emblemática data, o tempo de ela renascer, para isso ela confeita o bolo, pois J.M. não há de faltar à comemoração de seus dez anos de vida. A mãe de J.M, como qualquer boa fazedora de bolos, acredita no milagre diário da semente que morre para nascer trigo, e no trigo que vive para morrer pão, como ensinou certa vez o baiano Gil.

 

 

II

 

A marca da Silvana, além dos apontados nos contos da Mariza: ironia, sarcasmo, zombaria, tragédia relatada com sórdida comicidade, erotismo e experiência mística, inclui também sadismo e pendor suicida. Veja-se, por exemplo, como isso se dá organicamente no conto "al punto".

 

 

al punto

 

Qualquer maneira letal serviria.

Mas escolheu lá, do alto do viaduto, às onze e meia do último dia.

Olhem ao menos uma vez para mim.

Um desconhecido tenta impedi-la.

Não me toca, meu bem, sou ferida aberta.

Faz o sinal da cruz, fecha os olhos e salta.

Embaixo a multidão espera, ávida: jantar para mil talheres.

 

 

A protagonista inominada afirma que qualquer tipo de morte lhe serviria. Mas trata-se apenas do sofisma de uma suicida sistemática, que não quer que sua morte se dê de forma vã (sic) e solitária, pois escolhe um lugar alto, abaixo do qual circula incontável multidão: Olhem uma vez para mim, e com hora bem estabelecida: onze e meia. Eis aí um sarcasmo declarado. A dor que a suicida padecia era de ser invisível para os seus pares, sua carência era de reconhecimento, por isso ela pede: Olhem uma vez para mim. Sua necessidade, portanto, não era a do toque físico. Se assim o fosse, o desconhecido a teria salvado, pois quis aproximar-se dela, porém, ela responde: Não me toca, meu bem, sou ferida aberta. Não posso deixar de notar a forte presença irônica do erotismo nessa fala da suicida. Bataille diz que o erotismo é a aprovação da vida até na morte. Ela rejeita o novo toque do estranho, talvez por já ter sido tocada por vários outros estranhos. Após o toque, eles continuaram assim, estranhos, inominados, pois que desaparecidos, e, em razão de suas inconstâncias, sem olhar para ela ao menos uma vez.  Não me toca, meu bem, sou ferida aberta. O estranho é chamado de meu bem, ao lado de uma recusa que é também uma oferta: sou ferida aberta. O estranho erra fatalmente em tentar tocá-la, ao invés de vê-la, falar com ela, tentar curar sua ferida aberta. O olhar desse novo estranho não era para ela em sua inteireza, mas, outra vez, para apenas uma parte dela: a sua pequena aberta ferida. O erotismo irônico desliza suavemente para o sadismo crônico, no sentido de que tocá-la é abrir mais sua ferida fartamente aberta. Ao erotismo irônico e ao sadismo crônico alia-se também a experiência mística, pois, a suicida, ao fazer o sinal da cruz, fechar os olhos e saltar, se entrega a um poderoso arrebatamento. Nas palavras de Bataille, O que é sempre reencontrado nesse movimento de ruptura e de morte é a inocência e a embriaguez do ser. O ser isolado se perde em outra coisa que não ele. Pouco importa a representação dada da "outra coisa". É sempre uma realidade que ultrapassa os limites comuns. Também tão profundamente ilimitada que antes de tudo não é uma coisa; é nada. Fez bem a suicida, portanto, em seu derradeiro instante, buscar o arrebatamento antes do reconhecimento, pois a multidão tinha sim olhares atentos para ela, porém não para vê-la pelo menos uma vez, mas para devorar a ferida aberta, no que ela se transformara, desde um sádico e antropofágico banquete noturno.

Leiamos agora "aisthetike":

 

 

aisthetike

 

No parapeito, São Paulo enfim! a seus pés.

O pulo, a queda, o baque.

A pincelada violenta e definitiva do vermelho puro no preto e branco da calçada. A tragédia e a comédia no esgar de sorriso. As pernas em perfeito demi-pliés. As mãos retendo o último movimento do adagietto. O espanto — origem do poema — no olho.

Ainda assim leva a dúvida, se não seria a morte em Veneza mais bela.

 

 

Nesse conto, embora o relevo que ele evidencie dê continuidade ao tema do pendor ao suicídio, traz um aspecto da relação entre o mal, a morte e arte que Bataille traduz da seguinte maneira: Há um vontade de ruptura com o mundo, para melhor enlaçar a vida em sua plenitude e descobrir na criação artística o que a realidade recusa. Aisthetike é um termo grego que se traduz por "sensível" que culmina em aisthesis, "percepção", "sensação", que, etimologicamente, funda a Estética, a ciência do belo nas produções naturais e artísticas. O narrador, portanto, mediante um suicídio esteticamente premeditado, presta uma homenagem às várias manifestações artísticas: a) pintura: A pincelada violenta e definitiva do vermelho puro no preto e branco da calçada. b) Dramaturgia: A tragédia e a comédia no esgar de sorriso. Dança: As pernas em perfeito demi-pliés. Música: As mãos retendo o último movimento do adagietto. Poesia: O espanto — origem do poema — no olho. Romance e cinema [Thomas Mann e Luchino Visconti]: Ainda assim leva a dúvida, se não seria a morte em Veneza mais bela. Segundo, ainda, Bataille, Que esta liberação seja necessária a todo artista é incontestável; ela pode ser sentida mais intensamente naqueles em que os valores éticos estão mais fortemente arraigados. Em outras palavras, a realização artística manifestada pelo narrador de "aisthetike" cumpre-se como transgressão aos interditos morais que só mediante a arte podem ser rompidos, segundo a verdade do desejo, como diria Barthes.

Por fim, "ninharia".

 

 

ninharia

 

 

Órfã de pai e mãe, acidente, aos cinco anos. Perdeu o único irmão aos quinze, overdose. Aos vinte e cinco, enterrou o filho caçula, desnutrição. Aos trinta e sete, o marido, cirrose. Com quarenta e um, o primogênito, queima de arquivo. A filha do meio, aos quarenta e oito, aids. Não resistiu à morte do gato cinza, velhice, cinquenta e sete. Tomou veneno. No velório as pessoas lamentavam: tão cedo e por tão pouco.

 

 

Nesse conto, vemos o encontro entre o mal e a morte em sua relação com a passagem do tempo. O narrador de "ninharia" vai marcando a temporalidade da condição humana por meio da presença do mal, em suas várias facetas, conduzindo a morte em sua ceifa interminável: a dependência química, a fome, o crime, a doença, a velhice. Conforme o relato vai se dando, assistimos ao esvaziamento ontológico da protagonista, desde a ausência gradativa e definitiva dos pares que a rodeiam, à extinção mortal de si mesma: Tomou veneno., passando, é claro pela animalização do humano que nela habita: Não resistiu à morte do gato cinza, velhice, cinquenta e sete. O lamento final dos frequentadores de seu velório resume de forma lacônica a nossa humana condição: tão cedo e por tão pouco. Apesar de tudo, Bataille nos dá um inelutável consolo: A morte sendo a condição da vida, o Mal, que se liga em sua essência à morte, é também, de uma maneira ambígua, um fundamento do ser.

Mariza e Silvana, seguidoras da linhagem maldita, iniciada por Eva e Brontë, continuam a desobedecer, devorando sadicamente a maçã mordida, caída da árvore do conhecimento do bem e... do mal.

 

Notas

 

1Valinhos/SP) é escritora e advogada. Integra as antologias: Saciedade dos Poetas Vivos, Vol. VI, organizada por Leila Míccolis e Urhacy Faustino (2008); Dedo de moça – uma antologia das escritoras suicidas (2009); Coisas de Mulher, organizada pelo Conselho Estadual da Condição Feminina (2010); A poesia é para comer, organizada por Ana Vidal (2011) e Amar, Verbo Atemporal, organizada por Celina Portocarrero (2012). É Coeditora da Germina – Revista de Literatura e Arte e das Escritoras Suicidas. [ marizalourenco@uol.com.br ]


2(Belo Horizonte/MG). Foi pianista, socióloga, especialista em transporte público. Agora escreve. Pura vingança. Redatora publicitária, é fundadora e editora da Germina – Revista de Literatura e Arte e das Escritoras Suicidas. Tem contos e poemas publicados em revistas nacionais e estrangeiras. É uma das 8 Femmes, poesia (São Paulo: Papel de Rascunho, 2007). Participou das coletâneas Pitanga, de microcontos (Lisboa: Pitanga, 2008), Amar é abanar o rabo, poesia, org. Jovino Machado (Belo Horizonte: Excelente, 2009) e Dedo de moça — uma antologia das escritoras suicidas, org. Florbela de Itamambuca e Silvana Guimarães (São Paulo: Terracota, 2009). [ sil.guimaraes@gmail.com ]

 

 

 

 

[Publicado originalmente no blogue Le Mot Juste, de erre amaral, em maio/2012.]

 

 

 

 

julho, 2012