cegueira

 

 

debaixo das unhas

tenho terra de cemitério

 

nas pontas dos dedos

cera de velas de sétimo dia

 

crianças corriam no parque

eu fazia a brincadeira do copo

 

coração de pedra lambido por ondas

que limam e deslizam

nos caracóis colados

— desgruda a concha e cutuca a carne mole

 

o pouco de amor ao próximo que me resta

gira enlouquecido num liquidificador

misturando Diet Shake e farinha de maracujá

 

sal grosso para me livrar das superstições

 

eu pego na sua mão como um espírito

 

outro dia se vai

 

ter de dormir me irrita mais

que os palhaços da Rua XV

 

 

 

 

 

 

despojo

 

 

afundo a adaga

nas cartas do tarô

 

você cospe sangue

vísceras eclodem

 

seu corpo

adubo de sementes ou ervas daninhas

engorda vermes com salmonela

 

danço de rosto colado com a pá que o enterrou

 

o lobo uiva sobre a lápide de Crowley

 

seu vodu imolado suscita a ira de Netuno sobre Castor e Pólux

 

 

 

 

 

 

cativa

 

 

flamingos engolem peixes prateados

a odalisca depena tiês-sangue machos

borda um vestido hemorrágico

 

sacoleja sua anca-amálgama

a bacia e os fêmures recrudescem

esquerda, direita, esquerda, direita

nádegas voluptuosas sibilam

 

ressuscitam mortos de Antares

um palco de aplausos putrefatos

joias lançadas à odalisca

 

bodes defecam nas coxias

a carência devora um abacaxi com casca

faz arruaça no Beco das Paixões

 

o retrato de Josephine Baker alimenta

a língua de fogo da vela de sete dias

Vênus de Ébano

 

a odalisca flameja no púbis de longos pelos

jamais depilado

 

dança, rebola

comprime e estufa o ventre

onde engorda o feto bastardo

que enrola o cordão umbilical no pescocinho

and dies blue

 

 

 

 

 

 

peixe fora d'água

 

 

com a facilidade de um soldado que esmaga

a queratina de um louva-deus

você pisoteou as promessas

 

chegou a hora de atinar

e despedir-me da entressafra

de crises existenciais

 

puxo o fôlego de uma travessia

no Canal da Mancha

e nado contra a maré

 

fingir-me de boi para pertencer ao rebanho me exaure

 

 

 

 

 

 

além-vida

 

 

o jabuti e a vira-lata descansam ao sol

 

o cheiro da grama cortada

é um lisérgico nostálgico

que tortura

 

em algum outono a alegria

deve ter habitado minhas falanges otimistas

— agora tão raras

 

as sardas alaranjadas da tartaruga

dão-lhe charme ancião

 

o olhar apaixonado da cadela

angaria-me motivos

para não me lançar à Morte

— essa dama bissexual que desfila

de vestido preto e perfume Givenchy

 

desejos secretos que o cobrador de ônibus não imagina

o próximo biarticulado a quase 100 km/h

uma das barcas de Hades

 

a sacada, que já abrigou amantes

clandestinos no colchão

bode expiatório de Ana Cristina Cesar

 

curiosidade felina de poder vivenciar sete mortes distintas

[paixão, cicuta, revólver, oceano, penhasco, trilho de trem, cianureto]

 

corpo humano frágil como as esposas do joão-de-barro:

nasce do sexo, respira do tapa

e morre, indubitavelmente, do coração

 

 

 

 

 

 

psicótica Perséfone

 

 

I

Plutão em Escorpião na primeira casa

(hospedeiro dos mortos)

dança tango no terraço do ascendente

Libra

que se veste de Perséfone para atender aos seus afetos

  mortais e imortais

 

com elípticas porcelanas chinesas e romãs

ela decora masmorras orgíacas

 

 

II

a fúnebre socialite transita entre uma mesa e outra

exibe seu raio-x de tórax

os alvéolos pulmonares esgarçados

e o último exame de beta HCG

o útero desabitado

— estão todos à vontade?

 

 

III

por trás do sorriso de Bardot, segredos

de dossel peçonhento, um alçapão

leva a um salão vitoriano de torturas

onde mantém enjaulados os efebos

— desafortunados que caíram

em seus encantos balzaquianos

 

 

IV

nas masmorras, psicótica Perséfone analisa

a cor da urina dos convidados

seus vassalos desfilam com tangas de leopardo

hipnotizando a todos com lança-perfume de secreção vaginal

 

flerta com um rapaz louro de olhos claros

(acende seu cigarro com a língua ofídica)

enquanto ele degusta endorfinas venusianas

 

a rainha vampiresca acaricia barba e bagos

depois pendura-os de ponta cabeça por um gancho afiado

como um porco no frigorífico

 

Taenia saginata

 

V

Hades antevê

a cena do abate

o vibrião da cólera mordisca sua úlcera

 

Perséfone, cujo coração pertence aos amores mortos

“fui eu quem cuidou da tua anorexia

— canja de fêmures, ovos de codorna e nervos de panteras —

sua puta, cadela, maldita!”

 

Plutão faz guisadinho de Vênus

 

 

VI

os sapatos de Hades transformam-se em coturnos marciais

ele marcha no terraço do ascendente

Libra

a balança entra em frangalhos

o criado derruba as duas bandejas de arsênico que tentava equilibrar

e os que se agacham para ajudá-lo têm seus dedos corroídos pelo ácido

 

(lembram-se dos negrinhos andando de joelhos

nas brasas de fogo dos senhores feudais?)

 

 

VII

Hades calca e estilhaça

as porcelanas das masmorras

Piazolla é triturado por uma máquina irlandesa de chope

os afetos de Perséfone paralisam epilépticos

cessa a música

 

(silêncio de alcova

— acompanhado por um coro de gemidos)

 

VIII

o zeus do inferno ordena aos seus servos-cadavéricos:

“invadam o local”

eles amarram com fios de cabelo resgatados do ralo da pia

os ânus de todos que amaram sádica Perséfone

— homens e mulheres

e chicoteiam seus lombos como se fossem equinos

 

 

IX

outra vez, sísifo fim

círculo dicotômico de luto e beleza

ele gargalha com escárnio

ela veste cinta-liga, espartilho Victoria’s Secret

 

e chora baixinho

 

 

X

lava o rosto com chá de artemísia

borrifa veneno de cascavel nos pulsos e seios e cóccix

entra no quarto de Hades e o seduz

 

o rapaz louro de olhos claros surge no umbral

mastiga uma planta carnívora

Perséfone sorri

— chegou atrasado para o ménage, benzinho.

 

 

 

[Poemas do livro Minimoabismo | no prelo | São Paulo: Patuá, 2014]

 

[imagens ©txema yeste] 

 

 

 

 

 
 
Priscila Merizzio. Curitibana, ventríloqua, nascida no Ano do Búfalo.
 
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