Uma xícara de chá

 

 

Fui até o forno e coloquei água para esquentar. Me distraí e só voltei dois milhões de anos depois; a água ainda estava lá. Derramei a água numa xícara de chá e dentro dela pus 250.000 quilos de chá preto, pois gosto do meu chá bem forte. Coloquei numa bandeja o meu chá, um recipiente com o resto da água quente, os 100 quilos de chá preto em saquinho que havia sobrado e mais 350 xícaras, caso alguém quisesse tomar também. Caminhei 10.000 metros até a minha sala, onde minha esposa se encontrava. "Quer chá?", eu berrei com toda a força em seu ouvido, "Oi?", "Eu perguntei se você gostaria de tomar chá", eu disse murmurando da outra ponta da sala, "Sim, eu quero". Coloquei o chá em uma xícara; ela tomou e disse que era o pior chá do mundo, e por isso ligou para o exército russo ordenando que bombardeassem a minha cabeça, mas antes que ela terminasse a frase acertei uma voadora no cabo principal da companhia telefônica, deixando toda a cidade sem telefone. Alguém acabou vendo e começou a atirar em mim com uma bazuca, para se vingar. Saí correndo até o outro continente e me escondi num buraco com 500.000 quilômetros de profundidade. "Aqui ninguém vai me achar", pensei assim que tranquei o portão de ferro com uma senha de 720 números e letras, mas assim que virei o rosto lá estava a minha esposa brandindo uma espada de aço em direção à minha cabeça. Por sorte, uma garça estava voando por ali no momento do golpe, fazendo minha esposa acertar o crânio da garça. Como o crânio era muito duro, a espada ricocheteou no crânio e começou a viajar em direção à cabeça de minha esposa. Antes que a espada a acertasse, o comandante do exército russo (que não compreendeu a mensagem de minha esposa, mas imaginou que estivesse em perigo) atirou uma bola de canhão na espada e a matou. Eu chorei e abracei minha esposa, dizendo que nunca mais faria o pior chá do mundo. Pegamos um teleférico e voltamos para casa. Após tomar um banho comecei a recitar de improviso para minha esposa um poema épico sobre uma grande batalha travada em nome de seu amor, contra todas as adversidades do universo. Quando terminei, ela já havia dormido, acordado, tomado banho, escrito um poema épico sobre um herói que não sabia fazer chá (e por isso afundou seu império), e ido trabalhar.

 

 

 

 

 

Jesus Cristo espancando Hitler

 

 

Jesus Cristo espancando Hitler. Espancando e gritando coisas horríveis, para que ele sofra. Falando como ele espancou e estuprou ambas as avós de Hitler, a materna e a paterna. Falando coisas horríveis e espancando. Espancando seus ouvidos e gritando, fazendo com que ele sofra com as palavras e com os socos. Com os socos e com o cano de ferro. Jesus Cristo usando um cano de ferro para acertar a cabeça de Hitler e para penetrar o seu ânus. Penetrando o seu ânus e gritando coisas horríveis no buraco do cano de ferro, gritando como ele pôs fogo na família toda de Hitler e depois a jogou do alto de um prédio em chamas, para que o ânus de Hitler sofra duplamente, com a penetração do cano e com as palavras dolorosas. Jesus Cristo pregando as mãos de Hitler na cruz. Pregando suas mãos e pregando seus pés, para que ele sofra pendurado na cruz, para que ele sofra como fez milhões de pessoas sofrerem. Para que ele sofra de forma concentrada todo o sofrimento de todas as pessoas que ele fez sofrer. Para que ele sofra como nunca ninguém sofreu. Para que ele sofra física e mentalmente. Para que ele sofra todas as dores possíveis, em todas as partes de seu corpo e de sua mente. Para que todos os seus prazeres se transformem em dor, e todas suas alegrias em tristeza. Para que cada vez que ele pensar em sua família ele queira morrer e queira matá-los. Para que ele queira se matar milhares e milhares de vezes, como única alternativa possível de existência, e queria matar sua família milhares e milhares de vezes, como única atividade possível em sua realidade. Jesus Cristo ejaculando em uma ferida aberta na barriga de Hitler. Ejaculando e gritando de prazer. Prazer de ejacular e de fazer Hitler sofrer. Jogando seu sêmen na corrente sanguínea de Hitler e o tornando impuro, com o sêmen divino. O tornando digno de ser espancado e humilhado. Humilhado com fezes. Jesus Cristo defecando e jogando suas fezes no rosto de Hitler. O fazendo comer suas fezes e o obrigando a defecar, para que ele também coma as suas próprias fezes, fazendo com que ambas as fezes se misturem em seu estômago, o fazendo duplamente humilhado. O fazendo duplamente humilhado e elevando a humilhação de maneira exponencial, chamando mais pessoas para humilhá-lo, e cada nova pessoa chamando outra, até que milhões e milhões de pessoas humilhem Hitler, todas juntas, em um coro uníssono, o humilhando como nunca ninguém foi humilhado, gritando coisas horríveis, para que ele sofra, falando como estupraram ambas as suas avós, a materna e a paterna, o socando e espancando com um cano de ferro, e enfiando o cano de ferro em seu ânus e dizendo que puseram fogo em sua família e a tacaram do alto de um prédio em chamas. Jesus Cristo e todas as pessoas pregando Hitler na Cruz e o fazendo sofrer, o fazendo sofrer por causa de todos nós, o fazendo sofrer para que nós possamos ser felizes, para que possamos, sempre que precisarmos, pensar em Hitler e em seu sofrimento, e possamos, assim, ficar um pouco mais felizes e confortados.

 

 

 

 

 

Certo dia, em algum lugar

 

 

Certo dia foi assim. Eu não existia e então passei a existir. Não existe uma explicação muito clara. Do nada, apareci. Mas acho que é o normal. As coisas aparecem no mundo e depois desaparecem, sem nenhuma explicação. Eu estou aqui e depois não estou mais. Deixo de existir e em algum momento volto a existir outra vez.

Do nada, meu pai aparece. Ele diz "Oi" e depois desaparece. Isso quer dizer que num dado momento eu não tenho nem pai, nem nada, e que, durante três segundos, eu passo a ter pai, que me olha e diz "Oi", para logo depois sumir e as coisas voltarem a ser como antes.

Volta e meia surge alguma outra coisa, como uma árvore ou um poste, mas essas coisas somem logo depois. Até o chão faz isso; passo a maior parte do tempo caindo num espaço branco vazio; diria que é complicado saber se estou caindo para cima ou para baixo, uma vez que não existe nada aqui, não dá pra ter muita noção desse tipo de coisa. Volta e meia, quando surge algum objeto, eu penso algo como "Ah, ele está vindo lá de baixo, portanto, estou vindo de cima". Mas logo depois surge outro objeto "caindo" numa outra direção, como se estivesse vindo da direita para a esquerda em relação ao objeto anterior, me confundindo novamente. Algumas raras vezes, o chão aparece. Caio nele, mas não me machuco. Geralmente não há nada, é um chão branco, muito limpo, aparentemente. Caminho um pouco sobre ele, aproveitando enquanto há chão para se andar. Até que, de repente, o chão some e passo a cair em alguma direção indefinida outra vez.

Não sinto muita fome, uma vez que quase não gasto energia. Alimento-me das comidas que esporadicamente surgem perto de mim: frutas, carnes, ovos, doces.

Sinceramente, às vezes me pergunto como sei o nome das coisas e suas funções. Desde que me dou por gente estou aqui caindo neste espaço branco, nunca ninguém me ensinou nada; aliás, nunca conversei direito com ninguém, pois as pessoas surgem e desaparecem misteriosamente — não há tempo de criar qualquer tipo de intimidade. Devo ter aprendido a falar (e pensar) com esses breves episódios de interação humana, além de alguns poucos livros que vieram parar por acaso em minhas mãos. Tive a oportunidade de ler algumas gramáticas e dicionários, de forma que pude juntar as coisas todas e começar a formular pensamentos lógicos, pois antes disso apenas pensava em palavras e ideias embaralhadas, e nos objetos errantes, até então sem nome, que passavam por mim.

Gostaria de saber como vivem as outras pessoas: o que fazem, o que pensam... Será que vivem como eu, transitando de forma errante em sua solitária dimensão, isoladas umas das outras?

Passo a maior parte do tempo pensando em como escapar daqui. Alguém que passou por mim, certa vez, disse que existem passagens para outras dimensões, e que se deve estar atento a elas. Também ouvi histórias de como é viver nelas, das suas cores, cheiros, objetos, leis. Existem algumas onde o chão é constante, pode-se caminhar sempre, ao invés de ficar caindo no vazio a maior parte do tempo, como no meu caso. Dizem que nessas dimensões é possível construir uma sociedade — algo que nunca pude ver de perto — onde pessoas convivem e, juntas, podem construir suas vidas e progredir.

Já em outras, as pessoas nascem coladas. Cada pessoa possui outra colada nas suas costas; não necessariamente elas se dão bem, deve-se aprender a conviver em harmonia. As duas devem negociar a que lugares ir e que atividades realizar, uma vez que uma terá, obrigatoriamente, que participar do que quer que a outra decida.

Também existem as dimensões saturadas. Na minha, as coisas aparecem e desaparecem, de forma que existem, de fato, poucos objetos físicos. Nas saturadas, as coisas aparecem e nunca mais somem — os objetos vão surgindo e se amontoando, fazendo com que as dimensões se transformem num aglomerado de massa. Nessas dimensões, apenas alguns seres microscópios conseguem sobreviver; a tendência nelas é a extinção da vida por completo.

Disseram-me que existem dimensões onde os seres nascem sempre dentro de outros. Alguns conseguiram se adaptar, mas no caso dos seres humanos isso não funciona. Quando um ser humano surge, ele causa a morte de outro. Dessa forma, a população humana dessas dimensões é extremamente reduzida, algo como três ou quatro pessoas apenas.

Na minha dimensão é difícil dizer a quantidade de habitantes. As coisas são extremamente inconstantes por aqui. Como se pode obter dados estatísticos de um lugar onde a existência das coisas é instável? Algo que existe agora pode não existir daqui a cinco minutos; onde vivo não se pode contar com nada.

Estou me aproximando de um portal que atravessa dimensões. Esforço-me para me aproximar dele. Se houvesse chão agora, poderia caminhar até lá; ficar nadando no ar não está adiantando de muita coisa. Vejo que atrás de mim uma pessoa se aproxima em alta velocidade. Nos chocamos e sou lançado para bem longe do portal, enquanto que ela se aproxima; mas para seu azar o portal some diante de seus olhos; ele fica realmente triste e desesperado. Para a minha surpresa, logo depois a pessoa desaparece.

Me pergunto para onde vamos quando não estamos aqui. É um pouco como se estivéssemos dormindo ou desmaiados; não consigo lembrar o que acontece quando sumo. Será que apareço em outra dimensão? É bem possível, pois li num livro que, em algumas dimensões, não existe a memória, ou pelo menos ela é muito curta, como a lembrança de um sonho que esquecemos logo após o despertar. De onde esses livros vieram? Não seria possível fabricar um livro por aqui, certamente vieram de outro lugar. Provavelmente esses livros desapareceram em outras dimensões e aqui ressurgiram — a não ser que alguém tenha cruzado um dos portais segurando um desses livros, o que é muito improvável, uma vez que, fazendo isso, aparecemos nus na outra dimensão; foi o que li certa vez. O problema é que não conheço ninguém que tenha cruzado um portal. Nem ninguém que tenha conhecido uma outra pessoa que já tenha feito isso. Sendo assim, é possível que a história dos portais seja apenas uma lenda, que eles não sirvam pra nada mesmo, e, quem sabe, que nem existam outras dimensões; talvez as pessoas necessitem de crenças injustificadas como essa para se manterem sãs...

Os anos passam, nada me acontece. E nada posso fazer para que algo aconteça. Penso qual será o meu sentido de existir, tendo em vista que tudo que faço é apenas vagar nesse espaço vazio. Já estou quase morto; eternamente solto. 

 

 

[imagens © shine red type]

 

                                                         

 
 
 
 
Rafael Sperling (Rio de Janeiro/RJ, 1985). Compositor e produtor musical, estuda Composição na UFRJ, além de escrever no blogue Somesentido [www.somesentido.blogspot.com]. Já publicou em jornais e revistas literárias e, em 2011, lançou seu primeiro livro, Festa na usina nuclear (Ed. Oito e Meio).