A filha do príncipe

 

        

Chamava-se Leididai. Contaram outro dia, em São Miguel Paulista, que esse não era o seu nome verdadeiro. O escrivão do registro civil, ciente da lei, não quis aceitar o que era desejo da família. Com o consentimento amuado do pai, o oficial marcou no papel Eva ou Maria Aparecida. Na morada à beira do riacho Jacuí, porém, a menina foi sempre chamada — e agora lembrada — do jeito que todos gostavam: Leididai.

Nascera em 1981. Três meses depois do casamento do século, aquele que uniu o Príncipe de Gales e a jovem Diana Spencer, a menina foi batizada numa cerimônia coletiva num galpão comunitário do Jardim Pantanal. O padre abençoou a todos e os pais da menina, Aírton e Ester Silveira Lima, se sentiram também nas graças de Deus, naquele domingo.

Ester era mulata, beirava os trinta anos, ágil como um demônio. Diarista de segunda a sábado, limpava com presteza e dignidade as sujeiras de um asilo para idosos ricos numa travessa da rodovia Raposo Tavares. Aírton era loiro, tinha ainda entranhado nas veias os resquícios das noitadas sexuais dos colonizadores holandeses no Ceará do século 17. Pelo porte, era chamado de Príncipe, apelido que o deixava orgulhoso, mas triste pela sua contínua e hereditária pobreza. Trabalhava de borracheiro numa travessa da avenida Guilherme Cotching, na Vila Maria, mãos calejadas de recauchutar precários pneus de caminhão.

— É a minha princesa — exaltava o pai quando passeava aos domingos com a menina já grandinha, toda arrumada pelas mãos da mãe que lhe fazia todas as vontades. — Veja... — e mostrava aos amigos os seus cabelos loiros e crespos, herdados dos dois, artisticamente trançados e bem penteados.

Embora fosse uma menina graúda, de aparência saudável, mostrava-se frágil com as mudanças do tempo. Nos meses de chuva, quando as águas do Tietê avançavam pela região insalubre, ela passava as noites com a respiração ofegante como se um ser fantasmagórico apertasse a sua garganta. No decorrer de sua vivência, a menina teve cachumba e outras doenças, e no primeiro aniversário quase morre de desidratação. Resistiu, no entanto. Quando completou cinco anos, já se virava sozinha na pequena moradia, apenas com a ajuda de uma vizinha prestativa. Enquanto os pais corriam por São Paulo durante o dia, ela brincava de boneca em frente à velha TV sempre ligada ou, em raras tardes, se juntava às dezenas de crianças de sua idade à beira de uma lagoa, onde se divertia com uma alegria inocente.

— Leididai não anda nada boa — disse a mãe num frio anoitecer quando Aírton pisou na soleira da porta.

Era sábado, tinha chegado de pouco. Cansado, dia inteiro no trabalho, ainda vinha com o corpo frio do chuvisquinho que pingava lá fora. Nesse instante, Ester correu para o cômodo dos fundos sem ninguém chamar, preocupada, apressada, limpando as mãos no avental claro e úmido.

O Príncipe só estranhou. Depois, correu para lá quando sentiu os gritos da menina. Assim mesmo pensou em gritos de medo ou podia mesmo ser divertimento em frente à televisão. Mas não, muito pior.

A menina, deitada no sofá que servia de cama, enrolada num cobertor grosso, se estrebuchava como se estivesse mordida de cobra. Gritava de fazer dó, chorava um choro pesado, choro sofrido de muita dor e fraqueza. O Príncipe então agarrou Leididai, jogou uma toalha por sobre sua cabeça, jeito de se livrar da chuva.

— Fique aí — ele disse para a mulher.

Correu pela rua se livrando das poças d'água e montes de lixo. Atravessou a estrada de ferro, cortando caminho entre fios elétricos e canos de água clandestinos. Seguiu pelos trilhos, ouvidos atentos para o barulho de uma noturna composição. Cruzou uma pinguela no riacho Jacuí e, em passos largos e encharcados, pisando forte agora nas manchas de chuva sobre o asfalto, alcançou a antiga estrada São Paulo-Rio.

Entrou no hospital ao lado do Mercado Municipal, molambo molhado de gente. Na sala de espera, olharam para ele assustados. Parou. Depois, o Príncipe esperou zanzando de um lado para outro, filha no colo. Cadeiras ocupadas, tremura nas pernas. A enfermeira, sentada, cega para eles, parada. Ele chamou um doutor que passava apressado, roupa branca de cima a baixo, que pusesse na frente sua filha, Leididai.

— É doença da brava — o Príncipe implorou. — Veja... — mostrando as manchas que começavam no pescoço e desciam, cada vez mais vermelhas, até os dedos nas unhas.

Ficou ali segurando a menina com a mão e, com outra, suplicando que dessem um jeito rápido, levassem logo ela para dentro.

De repente, sentiu o coração de Leididai palpitar no seu peito, descobriu a toalha do rosto dela, suor marejando. Enxugou o rosto da menina, que nem abriu os olhos, ficou tresvariando, mexendo a boca. Calada. A respiração foi ficando mansinha como se tivesse dormindo. Depois, sumindo de vez. O corpo dela se esfriando, gelando, mais um óbito de sarampo na abandonada cidade de São Paulo.

Eva ou Maria Aparecida? A princesinha estava morta.

 

 

 

 

 

 

Depois da tempestade

 

 

LEILA

 

O avião girou para o lado direito como se fosse riscar a asa direita sobre o azul do mar, mas depois tomou o rumo certo da cabeceira da pista, preparando-se para descer no aeroporto de Salvador. Era uma manhã quente e, do alto, o homem avista com nitidez terrenos desabitados e dunas de areias brancas próximos à área de pouso.

Sentado numa poltrona próxima à cabine, ele vê ainda avisos iluminados para não fumar e apertar os cintos, escuta pneus em atrito no asfalto, a força dos reversos das turbinas — termina assim o tranqüilo vôo São Paulo-Salvador.

Ele traz apenas uma bolsa de mão e, dentro, uma troca completa de roupa branca, afinal a estada ali era de apenas uma noite, a passagem do ano de 1971.

O homem pergunta a si mesmo, o que vim fazer num lugar tão longe para, numa viagem corrida, voltar no dia seguinte?

Ele mesmo responde bem devagar, enquanto percorre os corredores envidraçados, o amor.

Conheceu Leila no final de 1969. A primeira vez que a viu ela estava sentada numa velha canoa de pescador na praia da Boa Viagem, numa tarde de pôr-do-sol luminoso que caía pelos lados da Ilha de Itaparica. Os lábios grossos realçavam a pele bronzeada de sol. Vestia um maiô azul com pintinhas vermelhas, que ampliava a robustez dos seios.

Na época, ele servia o exército no Forte de São Joaquim, de frente para a antiga Feira de Água de Meninos, bem ali perto, e ia àquela praia nos domingos de folga. Trajava um calção de banho meio desbotado. Aproximou-se dela com suave timidez.

Leila morava numa travessa da rua Roma, perto da praia. A partir daí, quando folgava no quartel, ela era uma companhia agradável e festeira.

Por precisão, ele quis fazer a vida em São Paulo. A despedida dos dois foi numa noite já bem alta, na frente da casa de Leila, um mês depois das festas de fim de ano. Na rua morta de gente e iluminada por uma lua crescente de início de janeiro, prometeram se encontrar dali a um ano, na virada de outro janeiro, naquele mesmo lugar.

Ele caminha agora pelo aeroporto de Salvador e pensa que quando se é jovem e apaixonado, fazemos as mais absurdas promessas e, mais absurdo ainda, quase sempre as cumprimos.

Ele vai de ônibus para o centro, até o Elevador Lacerda. Na Cidade Baixa, segue noutra condução rumo ao bairro da Ribeira. Quando chega em frente à casa da rua Roma, às onze horas do dia 31 de dezembro de 1970, Leila estava à sua espera.

Ele voltou a São Paulo no começo da tarde do dia seguinte. Nunca mais viu Leila. A distância, dizem, é muitas vezes inimiga do amor. Anos depois, um amigo lhe contou que viu Leila uma vez no barco que faz a travessia para a Ilha. Estava bem mais gorda e acompanhada de três crianças.

Era uma escadinha, disse brincando, e as crianças pareciam pertencer à sua imensa prole.

Disse ainda que Leila o cumprimentou de longe com um breve aceno de cabeça e, depois, ela e a criançada se perderam no meio da multidão.

 

 

JANICE

 

Ele era um faz-tudo. Aprendeu no mar a fazer o badejo ou a corvina assados na brasa. Viera de uma cidadezinha do litoral do Ceará, onde ainda vivia a família. O pai era pescador, a mãe cuidava da casa e de uma turma de filhos. Chegou de ônibus e desceu no Brás. Seu primeiro emprego foi na padaria do bairro, serviço que nunca tinha feito antes em sua terra. Não ganhava muito, mas gostava do lugar quentinho nas noites frias na cidade.

Anos depois, seus pratos simples, preparados com apuro num boteco do Itaim Bibi, eram disputados entre meio dia e duas da tarde por esfomeados peões da construção civil e até mesmo metidos executivos engravatados. Se tivesse um pouco de sorte, dividiria a sociedade com o dono do boteco e, em pouco tempo, talvez pudesse figurar entre os donos de restaurante de origem nordestina que começaram como lavadores de pratos e se deram bem na metrópole.

Ele conheceu Janice numa confeitaria. Seis meses depois, entre risos e beijos, casaram se na igrejinha localizada ao lado da avenida Santo Amaro.

A mãe da moça foi a grande ausência na cerimônia.

A gente já é pobre e você vai se casar com um rapaz mais pobre ainda?, disse à filha na época apaixonada.

Veio a resposta inevitável, ele é trabalhador.

Sem dinheiro ninguém vale nada hoje, afirmou a mãe com suave crueldade, casar com gente pobre hoje não é bom negócio.

Não era. Janice o deixou numa véspera de Ano-Novo. Arrumou suas coisas e sumiu no mundo.

Ele voltou ao trabalho no Itaim Bibi cada vez mais dedicado à profissão. Tomou gosto pela gastronomia. Sabia que tinha outro futuro. Leu até Michel Onfray. Nunca comentou das dificuldades de viver sob o mesmo teto com uma sogra que vivia cobrando para que ele fosse rico.

Num fim de tarde, ele encontrou um amigo na rua Joaquim Floriano. Na esquina com a Bandeira Paulista, o amigo perguntou por Janice. Ele não respondeu e, sem olhar para trás, atravessou cauteloso a via tomada de trânsito. Deu para entender que Janice era, realmente, coisa do passado.

 

 

LUIZA

 

De repente, os dois se deixaram de ver.

Ela, atarefada pelo trabalho, chegava sempre tarde da noite no apartamento alugado. Ouvia música na sala em volume bem baixo, ora buscava com raiva os destroços do silêncio.

Ele, também cheio de compromissos, esquecia ou queria esquecer de tudo e tardava na hora de chegar em casa.

Também nos fins de semana, os dois não mais se viam.

Ela ficava no apartamento e, quando cansava de ler ou ficar em frente à televisão, cuidava das plantas medicinais que cultivava num vaso de madeira na sacada do apartamento.

Ele pegava o carro bem cedo e, nas manhãs de sábado, dirigia pela rodovia Ayrton Senna, depois Dutra, até o centro de Jacareí. Sentava-se à mesa do restaurante Beira-Rio, ao lado do Paraíba do Sul, e ficava observando a paisagem já urbana, mas tranqüilizadora pela presença do curso d'água. Embora já mostrando sinais de poluição — teria peixes? —, o rio possuía uma vegetação rasteira de moitas de capim e flores, onde às vezes surgiam filhotes de capivaras brincalhonas, mas arredias com a presença humana. Corriam pela beirada do rio. Depois, apareciam mais à frente, ainda na margem, para tomar sol. 

Ele voltava já de madrugada e dormia até o começo da tarde de domingo. Ela havia tomado o rumo da casa materna e, na segunda-feira, ia direto para o trabalho.

Toda manhã, fazendo sol ou chuva, ele acompanhava pelas marginais a trajetória do rio Tietê e, depois, do Pinheiros. Embora com águas tão sujas quanto as do Tietê, o Pinheiros sempre tinha sinais de vida. Ele sabia que à sombra de uma torre de energia elétrica na Usina da Traição viviam centenas de preás, espécies de mamíferos roedores da família dos cavídeos, conforme aprendeu na enciclopédia. Antes, habitavam em tocas do outro lado do rio. Migraram todos, buscando o sossego da Usina. No outro lado, os meninos de uma antiga favela os caçavam para comer.

Nesse tempo, ele viu uma capivara, também da família dos preás, e considerada o maior dos roedores atuais, enfrentando as águas poluídas do Tietê. Depois, o animal descansou nas proximidades da ponte do Piqueri. Fugidia, mergulhou no rio em direção ao Pinheiros. O jornal divulgou na manhã seguinte que um casal de capivaras e quatro filhotes viviam às margens do rio na altura da ponte Cidade Jardim, mas seu habitat natural era no Oeste paulista, onde costumavam multiplicar-se nas barrancas dos rios.

Ao ler a notícia, ele se perguntou o que há muito vinha à mente, o que buscam em São Paulo?, fogem em busca de melhores dias?

Sozinho, sentado à mesa do café da ampla cozinha do apartamento, olhar fixo na página impressa do diário, ele desconhece o nível de inteligência das capivaras, mas o que vem em seu pensamento são algumas mulheres que se foram depois da tempestade.

Agora, pensa em Luiza, já separados há anos. Ele tem apenas uma vaga idéia de que ela mora na Vila Madalena, junto com a mãe, e aos sábados freqüenta a feira da praça Benedito Calixto, em Pinheiros, onde compra bugigangas e coleciona réplicas de cavalos-marinhos.

 

 

 

 

 

 

A mão esquerda

 

 

Ruas, todas no Brás, cheias de vai e vem no fim da tarde: Rangel Pestana, Joaquim Nabuco, Gomes Cardim e a Cavalheiro cheia, também, de ônibus que vão cruzar estradas, Estados e, gente nas ruas, aqui, bestando, correndo pra estação do trem da Central procurando rumo de São Miguel Paulista, Guaianases, Moji, passando homens, mulheres, crianças, todos com seus sonhos, sem sonhos e sonolentos, que partem, que chegam, que trazem esperanças, que voltam vazios de fé, bem vestidos de roupas coloridas, jaquetas compradas a prestações, já liquidadas na Rua Oriente, Maria Marcolina, que apreciam violeiros no Largo da Concórdia e discos ouvidos nas portas das lojas, que compram elixir milagroso de um homem apregoando o remédio para todos os males do corpo.

Você, parado, olhando as rodas de gente observa os passos dos homens neste começo de noite e o movimento da rua, lhe xingam por atrapalhar o rebuliço na calçada apertada, você nem liga e só chega mais pra perto do meio-fio dando passagem. Continua olhando o motorista de um ônibus quando ele começa a receber as passagens, depois, quando coloca as malas no bagageiro. Pra você tudo aquilo por ora é importante, parece ser, depois você descobre que existe na calçada do outro lado da rua um homem parado, calado, que olha o ônibus, aí, ele vai se aproximando devagar, devagarinho no rumo do ônibus, vai se esforçando em carregar a mala com a mão direita. A mão esquerda, você vê, aparece dentro das suas vistas como uma volumosa mancha branca. A mancha, agora, cresce dentro destes olhos seus.

No homem: existe uma história, uma linguagem que é parecida com a sua, uma magreza na face que é a magreza sua, e você se sente como se fosse ele. E assim é.

Não há dúvida que o ônibus é aquele. Nada mudou: o azul tomando toda a lataria, faixas brancas correndo pelo azul, o cavalo empinando e querendo galopar desenhado na porta, o motorista outro, nestes anos. Hoje, assim como o motorista mudou, não há na calçada da Rua Cavalheiro aquele menino que chorava medroso agarrado às calças brancas do homem, deixando as marcas de suas mãos meladas de doce, que havia na vinda, quatro anos contados nos dedos firmes, bem assim cheguei. Havia o medo da rua que eu olhei, conferi um lado da rua, o outro, e senti tudo estranho no que eu via, esse mundo de São Paulo, de sonhos sonhados nas beiras do rio me empapuçando de jaca mole ou rezando com o pensamento nessa terra, lá, nas novenas de janeiro com o olho gordo nas formas das moças: Deolinda, Mila, Tonha, todas.

Tento me esforçando segurar a mala com a mão direita, a mão canhota me dói, me arde, queima como se brasa corresse a pele, desisto, confiro a passagem. Não sinto os dedos ou restos de dedos da mão esquerda que estão escondidos nesta faixa de pano branco, agora, pardo sujo de poeira que balança ao menor movimento do meu corpo, o braço procurando apoio, doendo. Levanto a mala e saio arrastando o peso no rumo dos ônibus, pessoas passando apressadas, como um coro barulhento de vozes, deles, e se perdem, os vultos, nas ruas atrás dos postes e das cores dos carros. Agora, volto no acompanhamento das notícias que já foram, há dias, avisando.

Fico lembrando a mesa da prensa pintada de tinta recente, azul, o molejo dela no sobe e desce e minha mão que ficou parada como mão de morto, mão de morto pois nem veio no pensamento da cabeça aquela vontade e ligeireza de puxar a mão, fiquei na frieza de um homem morto, a mão recebeu a força das toneladas de peso, ainda vi a cor do sangue, os dedos esmagados, esfolados numa cor só, e fui vendo a morte, o medo de morrer que se fez sentir com os gritos que soltei, gritei, gritei de dor, raiva de acontecer aquilo, o grito ecoando nas outras prensas, homens correndo, vi, homens me segurando nos braços, segurando agarrando minha cabeça que começava a pender de banda, vi, o assoalho lavado de sangue, fui vendo, vendo, sumindo, se apagando os homens, neblinando nas vistas os dedos sujos, nada mais vi. Depois, vi a roupa branca do enfermeiro, o olhar dele de dó, a minha mão parada, quieta ao lado do corpo, sem dor na hora agora, só pesada sem se bulir, um frio em todo o corpo de vento gelado. E foi passando na cabeça o meu choro, o sangue melando a máquina, o azul dela, fui sentindo vergonha, não me veio um tico de nada de ódio da prensa, da prensa que me deixou com tocos de dedos, um homem aleijado, inutilizado como dizem por aí, não, não senti raiva cega da máquina, só da minha fraqueza, do meu medo, do descuido, do choro, essa mão, agora, pois vê, pesada e quieta como se não parecesse minha.

Natanael Martins, filho de Elias e Marta Martins, solteiro, vinte e três anos... assim preenchi a ficha na fábrica, rabiscando, desenhando as letras bem como dona Zilda tinha ensinado. Empregado, fichado, carimbo estampado em azul nas páginas da profissional, na primeira semana de serviço na fábrica, beirada de linha Santos-Jundiaí, na Lapa. De pouco tempo, aqui, ficava achando impossível escutar, pois escutava, o barulho da bigorna na ferraria do meu pai, aquele barulho de lá, zunindo, se indo pelas frestas da casa, os ouvidos de mãe acostumados, nem ligando mais, o zunir de ferro contra ferro, ferro saindo em labaredas, se queimando, vermelho em brasa, e aquele toque se pondo em choque na rua, se escutando ao longe, eu na ajuda, repicando, aprendendo.

Uma semana, duas semanas, três semanas, fui dizendo isso pra casa, informando a família que nesse tempo, agora passado, já tinha a carteira profissional fichada, no primeiro pagamento, que não é muito, mando alguma coisa, um adjutório. Uma carta que queimava a mão, que me suava entre os dedos, que foi seguindo por mão própria e daqui a três dias mãe ia sair pela noite, ia cruzar a rua com um candeeiro em cima da cabeça alumiando os seus passos, o vento ia zunir de leve no tempo morno fazendo tremular a labareda e ia aí alguém ler pra ela essas linhas que escrevo neste quarto.

Terceira semana aqui em São Paulo é o começo de tudo. Segunda-feira me levantando no chegante da manhã e me indo como todo mundo vai no rumo da Lapa. Tudo em volta, a viagem de trem que me atrai sempre, atraindo mais, desço do trem, caminho pela rua da fábrica, confiro a profissional no bolso da calça, pergunto as horas ao primeiro passante, seis e quinze, o homem me responde assustado e caminha apressado pela rua coberta de fumaça branca de neblina, encosto na parede esburacada da fábrica e fico esperando o horário das sete que vai fazer acordar o movimento do prédio que, agora, parece tão morto, tão triste e silencioso.

Você vai indo sentado de olhos parados e encostado ao vidro da janela do ônibus e vê a rua. Nada pra você é estranho: a rua, a fábrica que você vê todo dia, o mendigo encolhido tremoso de frio coberto de jornal naquela esquina, o vento que sopra dos trilhos como soprado pelas locomotivas que passam pegando velocidade e você passa dentro do ônibus olhando a rua, quem sabe até me vê caminhando nessa hora da manhã no rumo da fábrica nesse primeiro dia de trabalho ou me vê já parado quieto aqui na frente esperando a hora, sete horas. Não lhe aceno nem você também, somos estranhos e desconhecidos.

Às sete horas, faça sol ou chuva, a fábrica começa a se movimentar, vou caminhando entre as máquinas, muitas máquinas que tomam os cantos, o meio e os lados do grande terreno construído há muito tempo. Pouco converso, logo não conheço ninguém, faço só o que me mandam. Gostaria de falar de pai, do trabalho dele na ferraria de sol a sol com dias entrando na noite, sei, aqui ninguém conhece ele. Nem o lugar de onde vim, como é mesmo o nome?, isso quando pude falar, repeti, não conheço não, dizem. Quem iria conhecer o Elias Ferreiro?, fico me achando bobo por achar que esses homens que trabalham nessas máquinas tão cheias de vida, tão ligeiras que sobem e descem no simples apertar do botão, depois no pedal, sobem e descem com as peças saindo de lado, prontas, certinhas como se Elias Ferreiro tivesse trabalhado, suado na forjaria, suando na bigorna três semanas pra fazer uma, uma só peça tal e qual, tivessem ciência da vida dele.

Dias, sempre, ficava, entre uma labuta e outra, olhando as chapas de aço fino seguras nas mãos de seu Ismael, vendo seu Ismael apertar nos botões, o pé no pedal, botar a chapa uma por uma na mesa da prensa e a prensa descer, subir, descer, consumindo as chapas e fazendo delas peças e mais peças. Eu ficava como dormindo, esquecia o outro serviço, depois me lembrava, corria fazendo a obrigação, voltava e me postava junto da prensa com o corpo parado, quieto, quase não se movendo, as vistas descendo e subindo como o movimento da máquina, no acompanhamento dela. Seu Ismael me olhava com cara de pai, sorria do meu interesse e dizia que olhando se aprende, ele tinha aprendido assim, vai vendo, vai gravando na cabeça os botões, o pedal, quem sabe um dia precisem de alguém pra ficar no meu lugar, não lhe aconselho esse serviço de doido, completava. Não gosto de falar nesse homem, o caso do seu Ismael como falam por aí, que me ensinou, me fez ver as artimanhas da prensa, resumia os perigos dela — cuidado!, depois, a máquina alcançou a sabedoria dele, alguns dizem que ele já era velho, não achava, foi descuido, cochilo na hora que a prensa desceu e encontrou a mão dele, os dedos no caminho, cortou fora só um, muita sorte, disseram.

Todos os dias, o movimento das máquinas que batem e rebatem, as peças ficando prontas, o barulho das prensas fazendo com que a gente pouco converse dentro da fábrica, pouco se fale, a zoada escondendo as nossas vozes ou fazendo entender as palavras muito mal. Pouco ligava pra conversa. Ficava era olhando querendo aprender. Queria aprender a apertar aquele botão verde na hora certa, ver a chapa fina se transformar naquela peça que se esconde em todos os carros.

E toda noite de domingo escrevia pra casa contando dessa vitória, que um prensista disse que ia me ensinar, estava quase aprendendo, ia me fazer prensista igual a ele. Querendo aprender a apertar aquele botão vermelho que segura a máquina, a prensa fica parada no ar esperando o outro botão, o pedal ser apertado, ficava só olhando, tudo aquilo ia entrar no juízo não ia demorar muito, contava imaginando.

Durante as noites ficava rabiscando no papel uma maneira de aprender mais ligeiro, que aquela idéia toda me entrasse na cabeça, que aqueles botões não se embaralhassem nesse juízo de pouco estudo e, quando eu novamente escrevesse pra casa e contasse pra pai que trabalho naquela máquina, o nome dela é prensa, diria o modelo, a tonelagem da força dela, aquela máquina que faz o serviço de um ano dele em poucas horas, ele não vai acreditar e vai pedir pra dona Zilda, que é quem escreve as cartas respondendo as minhas, pra sondar como é a máquina, se é grande, como ela trabalha, quantas pessoas lidam com ela. E de noite quando estiver lá no quarto da pensão na Rangel Pestana, que rasgar o envelope, que começar a ler as palavras dele, sei que vou rir da pouca sabedoria dele, dele nem imaginar nada daquela máquina que tem lá na fábrica. Sei, sim, que vou rir.

E vou continuar a rir, amanhã no trem, no primeiro trem da manhã, me rindo e me perguntando por que todo mundo que anda ali no trem, encostado na porta, respirando o vento frio e molhado dessa hora fica com a tristeza estampada no rosto, olhos pesados, sanados, pouco conversa. Como gostaria de contar pra alguém, dizer da máquina, da prensa pintada de azul com os botões azuis, vermelhos, verdes e que faz vencidades de peças por dia. Mas todos dentro do trem parecem dormir.

No domingo, pego na caneta e escrevo pra casa. Vou contar que já tomo conta da máquina sozinho, vou dizer que a sorte me ajudou, não vou contar do acidente, do dedo de seu Ismael perdido, conto que seu Ismael adoeceu, assim não preocupo o juízo fraco de mãe, escrevo que faltou gente pra botar a máquina pra funcionar, me ofereci, ninguém, acho que nem eu acreditava, coloquei a máquina pra virar, no começo o movimento da prensa foi devagar, devagarinho, depois, já quase no final da tarde, ela descia e subia na ligeireza do meu pé que tocava o pedal de comando.

E no trem no fim da tarde aparecia a minha prensa, toda azul me aparecendo perfeita como era lá na fábrica, pelo vidro sujo da janela. Olhava para os lados, uma vontade crescente de pegar alguém pelo braço e pedir pra ele ver também na janela até a marca da máquina que aparecia completa no fosco do vidro. Ninguém acreditaria, mesmo, me chamariam de doido ou ririam da minha cara, achava. Quietava num canto. Ficava sozinho com esta minha visão que sabia não ser verdade, mas acreditava nela.

Não via a hora do domingo passar, escrevia a carta no fim da tarde ou ficava vendo as pessoas passarem em direção aos bares do Brás, no rumo do Cine Piratininga, nada disso me animava, como ia dizendo, escrevia a carta que na segunda-feira iria para o correio, e ficava torcendo que o resto do domingo se fosse mais rápido, que o domingo desaparecesse logo, que o dia findasse, que a noite aparecesse e no sono da noite as horas corressem ligeiras. E chegasse a segunda-feira. Pulando da cama antes do toque alto do relógio despertador. Pegando o primeiro trem da manhã, descendo na estação e me indo devagar pela rua que já se movimenta de gente, chegando em frente à fábrica faltando meia hora pras máquinas começarem a funcionar no trabalho diário, não vendo a hora que os relógios apontassem o ponteiro nas sete horas. Aí, vendo a máquina, a prensa, como viva na minha frente, parecendo gente de corpo, de alma, a máquina que fazia o trabalho de mil Elias, meu pai, Ferreiro, parado e lento Elias, bem comparado.

O motorista do ônibus vê a minha mão enfaixada enrolada de pano e segura na mala me ajudando. Ele pega a passagem. Subo no ônibus. Parece que mudei nesses derradeiros dias, devo ter mudado. Quando comecei a trabalhar na prensa, na máquina de seu Ismael, esqueci do mundo e dele que tinha me ensinado, achava que aquilo era tudo que queria na vida. Sem os dedos não vai ser mais prensista, dizem, agora. E contei nas mesmas linhas da carta essa história toda pra Elias e Marta. E quando minha mãe subir a ruazinha de candeeiro na cabeça, carta amassando no escuro da noite, a luz apaga não apaga no rumo da casa de dona Zilda, quando dona Zilda começar a ler a carta, esta carta que escrevi há quatro dias, ela vai enrugar a testa, dar uma parada na leitura, olhar pra minha mãe, meu pai vai tossir forte naquela tosse forte dele limpando a garganta e vai lá fora pra dar uma cuspida no terreiro, enquanto isso dona Zilda vai ficar olhando pra minha mãe, vai dizer estranho, vai saltar as linhas em que eu falo da minha mão e dos dedos perdidos e, quando meu pai novamente entrar na casa limpando o nariz na manga da camisa curta, dona Zilda vai esperar ele sentar na cadeira, ela vai enrugar e desenrugar a testa e vai dizer que seu filho Natanael já vem quase chegando.

Mais tarde, não vai ter ninguém naquela hora acordado, mas o massacre daquela bigorna vai encher o silêncio da noite de um som alegre de chegada acordando meio mundo.

Mãe vai dizer: Elias vai dormir!

Ele vai responder: não, o repique na bigorna, a brincadeira de repicar no ferro do homem aqui e Natanael, meu filho, logo vai recomeçar.

E parece que você sentado na poltrona do ônibus vai vendo o velho Elias forjar a ferradura vermelha em fogo sobre a bigorna e olha o ferro em brasa que esfria sobre a mesa, esperando o retoque final, o retoque final seu.

E você no pensamento pergunta respostando:

 

Ferreiro Natanael onde andou teu corpo?

Sei que andou andou;

Prensista Natanael onde andou tua mão?

Sei que andou andou:

Homem Natanael onde andou teu sonho?

Sei que andou andou

Ferreiro, Prensista, Homem Natanael onde andou tua vida?

Desandou desandou

 

E Elias, teu pai, Elias Ferreiro, esperando, de longe, grita:

 

Filho Natanael, pois retoque e repique este ferro em brasa na bigorna tua.

 

 

 

 

 

 

 

[imagem ©jérôme]

 

 

 

 

Roniwalter Jatobá (Campanário/MG, 1949). Jornalista e escritor. Vive em São Paulo, desde 1970. Trabalhou como operário na Karmann-Ghia, no ABC, enquanto morava ao lado da Nitroquímica, em São Miguel Paulista. Entrou para a Editora Abril no final de 1973, na área gráfica, e cinco anos depois,  formou-se em jornalismo. Foi redator das publicações infantojuvenis desta editora e da Rio Gráfica (hoje Globo) e colaborou em "Versus", "Folha de S. Paulo", "Movimento", "Escrita", "Ficção" e outros. No final dos anos 70, viveu sete meses na Europa, num exílio voluntário. De volta ao Brasil, foi redator do "Nosso século", editor de textos de "Movimento" e "Retrato do Brasil" (fascículos), editor executivo de "Saúde", "Boa Forma" e de publicações especiais da revista "Corpo a Corpo"; criou e dirigiu ainda a revista "Memória" e editou livros históricos na Eletropaulo. Entre 1997 e 2003, atuou também como cronista semanal do jornal paulistano "Diário Popular". Publicou, entre outros, os livros Sabor de química (contos, 1977, Prêmio Escrita de Literatura), Crônicas da vida operária (contos, 1978, finalista do Prêmio Casa das Américas, em Cuba), Viagem à montanha azul (infantil, 1982), O pavão misterioso e outras memórias (crônicas, 1999, finalista do Prêmio Jabuti), Paragens (novelas, 2004, finalista do Prêmio Jabuti), Trabalhadores do Brasil: histórias do povo brasileiro (contos, 1998, organizador). Pela editora Nova Alexandria, publicou Rios sedentos (2006), voltado para o público infantojuvenil, Contos Antológicos (2009), Cheiro de chocolate e outras histórias (2012) e, para a coleção "Jovens sem fronteiras", O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008), O jovem Luiz Gonzaga (2009) e O jovem Monteiro Lobato (2012). Publicou ainda dois livros pela Editora Positivo: Viagem ao outro lado do mundo (infantil, 2009) e Alguém para amar a vida inteira (novela juvenil, 2012). Seus contos foram incluídos em diversas antologias brasileiras e estrangeiras; com traduções para o alemão, inglês, sueco e italiano. Em 1988, traduziu o livro de contos A cavalaria vermelha, de Isaac Babel, editado pela Oficina de Livros.